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IDENTIDADE – A CONSTITUIÇÃO DE SI NO AMBIENTE PROFISSIONAL

6. A ESCUTA DOS SUJEITOS DA PESQUISA – Categorias desvendadas

6.1 IDENTIDADE – A CONSTITUIÇÃO DE SI NO AMBIENTE PROFISSIONAL

Cada um contém uma solidão inacreditável, uma pluralidade extraordinária, um cosmo insondável Edgar Morin A identidade, como categoria analítica, foi a primeira a emergir a partir da escuta dos professores readaptados participantes da pesquisa. Trata-se, portanto, neste espaço, da consideração das vivências profissionais daqueles que, em determinado momento, passaram pelo processo da readaptação funcional, sem desconsiderar que estes continuam a ser profissionais e professores.

A noção de identidade, em qualquer dos espaços em que seja considerada, pressupõe a existência de um sujeito biológico e cultural, membro de uma espécie e de uma cultura.

Edgar Morin (2002) ao tratar da identidade individual refere-se ao âmago do sujeito que, de forma recursiva, supõe o indivíduo.

Ser sujeito supõe um indivíduo, mas a noção de indivíduo só ganha sentido ao comportar a noção de sujeito. A definição primeira do sujeito deve ser bio-lógica. Trata-se de uma lógica de auto-afirmação do indivíduo vivo, pela ocupação do centro do seu mundo, o que corresponde literalmente à noção de egocentrismo. Ser sujeito implica situar-se no centro do mundo para conhecer e agir. (p. 74-75)

Assim sendo, para tratar da identidade do professor readaptado, enquanto profissional que é, a presente abordagem parte do sujeito professor centrado em sua relação com a profissão, antes, durante e após a readaptação.

Em um primeiro momento a análise busca levantar os motivos para a escolha da profissão de professor. Procura abordar, ainda, em outra subcategoria, a percepção do cotidiano profissional pelos sujeitos participantes, assim como dos conflitos vividos no ambiente de trabalho. Tais aspectos visam abordar a relação do professor com a profissão antes da readaptação, por considerar que tal fenômeno o afastará de sua vivência profissional em sala de aula, espaço onde, para o senso comum, se concretiza o exercício da profissão.

6.1.1 A escolha da profissão

A primeira questão levantada junto aos professores readaptados participantes da pesquisa foi acerca da escolha da profissão, uma vez que a relação com o fazer pedagógico, bem como com as pessoas dos diferentes segmentos da escola, numa profissão essencialmente relacional como a de professor, se inicia com a definição do nicho profissional.

Para Dubar (1997, p.114) “não se trata somente de uma situação de ‘escolha do ofício’, ou de obtenção de diplomas, mas da construção pessoal de uma estratégia identitária que põe em jogo a imagem do eu, a apreciação das duas capacidades, a realização dos seus desejos”.

A indagação sobre a decisão pela profissão de professor faz parte da construção que busca identificar possíveis relações entre fatores subjacentes à constituição do sujeito-professor e o adoecimento crônico que leva à saída da sala de aula pela readaptação, bem como ao processo de reinserção no espaço escolar do professores, já na condição de readaptado.

Os depoimentos colhidos apontam, de um lado, para fatores de natureza subjetiva, revelando a existência de uma ligação prazerosa com aspectos relacionados à profissão (espaço escolar, livros, família...) desde a infância, motivando a opção de forma clara e deliberada:

Eu adorava! Fui para o Jardim de Infância por opção [...]. Eu acho

que professor decide ser professor desde pequeno, não é? Eu

acho que sempre tive vontade de ser professora. (MARIA)

Eu costumo dizer que sou professora desde criança. Minha fascinação pela escola, pelas letras, vem de pequena (...) eu

cresci num meio que tinha muita história, muito livro, muita preocupação com a educação. (...) Eu sempre gostei muito de ser professora. (LEITORA)

São também apontados fatores que remetem a uma ausência de identificação com a profissão, gerando a intenção de permanecer por pouco tempo na carreira;

Me tornei professor por acaso [...]. Comecei a fazer artesanato aos 16 anos. [...] Eu não me via como educador, tampouco me via por

vinte e poucos anos na Fundação [...]. Tinha uma relação boa com

todo mundo, mas descomprometido em relação à visão que eu fui ter mais tarde do que era a Fundação Educacional, do que era o ensino. (RICARDO)

Passa, ainda, pela construção de uma relação de prazer a partir do exercício da profissão e da convivência no espaço da escola:

Só que com o passar do tempo virou uma paixão. Quando eu passei a trabalhar só com o Ensino Médio... marcou a escolha da profissão. Porque até então era só um emprego... com Ensino Médio

eu me realizei totalmente. Eu trabalhava diretamente com um grupo de adolescentes, essa coisa de fazer você despertar para as suas capacidades de criação, de produção, de independência, foi um marco. (MANUELA)

[...] eu queria sair de lá da minha cidade [...]. Eu resolvi vir para Brasília. E aqui comecei a dar aula e fui gostando, sabe. (ANA PAULA)

Por outro lado, para o presente estudo, foram também levantados fatores denominados objetivos e que apontam a opção pela profissão como tendo sido motivada por aspectos relacionados à estabilidade, salário e facilidade de ingresso na carreira, assim como a interessante perspectiva do magistério com a única oferta local de qualificação “naturalmente” vinculada ao universo feminino:

A partir do momento que eu tentei vestibular para Processamento de Dados e não consegui passar eu resolvi tentar para Matemática,

então na realidade foi num momento de decepção, por não ter

conseguido Processamento de Dados. Eu pensei “Eu posso tentar ser professora porque todo mundo gosta quando eu falo, eu ensino e ajudo as pessoas”. (CARLA)

Eu não escolhi ser professora. Fiz vestibular para Artes e caí na

licenciatura, depois eu comecei a fazer concursos públicos... eu

estava louca atrás de emprego [...] (MANUELA)

[...] quem estava pagando bem era a Fundação [Educacional]. Era praxe terminar Matemática e fazer [concurso] para a Fundação. (DULCE)

Olha, na verdade eu acho que não tive muitas opções. Eu morava numa cidade pequena e lá só tinha magistério, o único curso que

tinha pra mulher, porque os rapazes saíam, iam fazer fora, e a gente

não tinha. Aí fiz magistério. (ANA PAULA)

Este último relato, que remete à relação da escolha da profissão como estritamente relacionada ao universo feminino, revelando um aspecto considerado fundamental na análise baseada em uma ecologia do ser. A questão de gênero no exercício da profissão docente merecerá uma reflexão mais aprofundada, adiante.

Juntos, os fatores subjetivos e objetivos apresentados representam a diversidade e, ao mesmo tempo, a complementaridade que configuram a tomada de decisão pela profissão.

Barbosa (2007), ao abordar o engajamento de professores na profissão, ressalta:

A decisão pela profissão de professor traz em si a história de vida do indivíduo, o processo da constituição de sua identidade – individual e social, a partir de suas relações sociais e sentimentos de identificação vividos ao longo de sua vida. (p.90)

A autora ressalta que a tomada de decisão em relação a qual profissão seguir, por si, não define a escolha da profissão. Este é um processo cotidiano e passível de alterações, conforme destacado pelos sujeitos da pesquisa Ricardo e Manuela, em afirmação registrada acima sobre o despertar da consciência e da paixão pela profissão, promovidos pelo cotidiano escolar.

Os diferentes motivos apontados pelos professores readaptados escutados, para a escolha da profissão, remetem a uma identidade profissional construída a partir de fatores de natureza diversa. Parte, basicamente, do confronto entre suas aspirações pessoais, sejam de ordem ideal ou pragmática, para encontrar seu lugar no mundo das realizações.

Implica, ainda, reconhecer que o mito da “vocação” tão aclamado na profissão, que chega a ser comparada ao sacerdócio, se relativiza diante de tais manifestações.

É no dia-a-dia que se configura a identidade profissional do sujeito.

Em outro momento de seu estudo Barbosa (2007) ressalta que não se pode falar em uma, mas em várias identidades colocadas para cada contexto. A identidade estará sempre em processo de constituição.

E acrescenta

E assim também é, certamente, com os professores, (...) que têm os seus conceitos a partir de sua leitura do contexto e têm a dinâmica de, a todo momento, revê-los, alterá-los, mantê-los em função de sua vivência, de sua relação com a profissão, com os demais profissionais, com os seus alunos, com a comunidade, com a sociedade. A identidade profissional do professor releva diversas interações na sua esfera de trabalho: chefias, colegas professores, alunos, pais, Estado. (p. 22)

6.1.2 O cotidiano – prazer e conflitos na profissão

Dentro da análise relacionada à identidade profissional do professor readaptado emergiram ainda questões relativas ao cotidiano profissional, ou seja, como os diferentes sujeitos, no exercício da profissão no período anterior à readaptação, percebiam seus afazeres e como se sentiam em tais situações.

A escola pública para mim era um espaço democrático. Um espaço que eu teria autonomia [...] E eu sonhava com uma estrutura de escola que desse liberdade ao aluno, ao professor, que a gente pudesse decidir juntos o que fazer. [...] E eu achava que na escola pública eu teria condição de fazer isso e tive, durante muitos anos. Na época que eu trabalhava no Gama eu cansei de ir aos finais de

desenvolver o que durante a semana a gente não dava conta.

(LEITORA)

Esse período foi [...] o de maior realização, que eu realmente vivi aquilo que eu imaginava que era a escola pública. Autonomia em

sala de aula, projetos, interação com a equipe de professores, interação com os alunos, a prática na escola era diferenciada, o clima era muito bom. (LEITORA)

[...] eu sou muito exigente. Exijo muito de mim, exijo muito das

pessoas e exijo muito dos meus alunos. Tudo tinha que ser

perfeito, os meus planejamentos, as minhas aulas, os meus alunos. Eu trabalhava muito. Uma época eu só trabalhava, não fazia mais nada. (LEITORA)

Eu participei do Concurso de Remoção e vim para o Plano Piloto. Em uma [escola] diminuiu uma turma e eu peguei a parte da coordenação. 20 horas como coordenadora e na outra na sala de aula. 5ª [séries] A, B e C, que são meus anjinhos até hoje. Turmas

maravilhosas. Foi um período muito feliz. (CARLA)

Aí eu fui trabalhar com estimulação precoce e assim, eu amava o trabalho. Trabalhei vinte e poucos anos. [...] (ANA PAULA)

Observam-se, neste momento, relatos de vivências de prazer relacionadas ao exercício da profissão. De modo geral os professores escutados referiram-se, em algum momento, de forma positiva, ao cotidiano do trabalho. Mesmo aqueles cuja decisão pela profissão deu-se de forma aleatória apontaram para a construção de uma identificação com o trabalho na escola.

Desta forma o trabalho, definido por Dejours como categoria psicológica que, “além de atender a necessidades básicas de segurança, é um dos caminhos para o prazer porque cria identidade social e pessoal, uma vez que o ser não é dissociado do fazer” (apud SOUSA 2002, p.28), proporciona condições de concretização, em seu fazer, de aspectos prazerosos presentes na subjetividade do indivíduo, no caso o trabalhador-professor.

Sousa (2002, p.30) ressalta, ainda, que “o prazer no trabalho é fonte de equilíbrio e o próprio trabalho é um dos caminhos para o prazer, posto que cria identidade social e pessoal.”

Na seqüência são apresentadas falas das professoras Manuela e Leitora que remontam ao período do exercício da profissão em sala de aula, agora se referindo a situações de conflito.

Em muitos momentos foi muito complicado lidar com essa parte dos “superiores”. Eu acho que o sistema... vem muito quebrado,

muito cheio de imposições para a gente. Um número de alunos excessivo, um número de turmas excessivo [...]. (MANUELA)

Nessa época eu comecei a sentir que o magistério não era o sonho, a alegria, o idealismo que eu acreditava que era [...] os

meus alunos tinham muitos problemas. Eu achava que eles precisavam mais de alguém que cuidasse deles do que uma professora. Aí eu fazia as duas coisas. (LEITORA)

Na escola da Asa Sul [...] eu era muito cobrada. O coordenador preparava as aulas para mim “você tem que fazer assim, assim”...

pela primeira vez eu senti que eu não tinha autonomia.

(LEITORA)

Não havia confronto direto, era um confronto diário, mais sutil,

que não era propriamente com a direção, era com a escola: direção, colegas, com o sistema. [...] uma coisa muito desestimulante e é óbvio que isso mexeu comigo e aí minou minha saúde... (RICARDO)

Observa-se claramente que as situações de conflito descritas se estabelecem, prioritariamente, com a instituição. Os relatos referem-se, ainda que nas considerações interpessoais, à organização do trabalho concebida institucionalmente.

As falas aqui apresentadas, de vivências de prazer e conflito por parte de professores readaptados quando de sua atuação em sala de aula, configuram a relação estabelecida por estes profissionais com a profissão até o momento do adoecimento e readaptação. Momento este de impacto sobre sua identidade, não só profissional como pessoal.