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CAPÍTULO III: ANÁLISE E INTERPRETAÇÃO DOS DADOS DA PESQUISA

3.2 DOCUMENTOS DA UFABC: RUPTURAS, INOVAÇÕES OU CONTINUIDADES?

A UFABC, fundada em 2005 (Lei Federal nº 11.145), localizada em Santo André, no grande ABC paulista, apresenta-se como um novo modelo de educação superior em ruptura com os paradigmas elitistas de universidade. Logo pela apresentação do Plano de Desenvolvimento Institucional (PDI, 2013-2022, p. XIV) se pode entender que o Projeto UFABC ultrapassa o âmbito local e regional. Pretende ser uma referência de excelência e inovação tecnológica em níveis nacional e internacional. Revisitamos o texto, numa perspectiva mais analítica, já referenciado na caracterização da instituição: ―a edição de um PDI para uma década se reveste de muitos significados. Através deste documento a instituição se apropria do seu próprio projeto, ao qual imprime o seu próprio ritmo e direção de maneira a assegurar-lhe conformidade com seus valores e missão. (...) No âmbito externo é através do PDI que a Nação e a Região tomam conhecimento das perspectivas e rumos da UFABC, das oportunidades que a universidade abre para os indivíduos que a ela se juntam e para a coletividade que a sustenta. No âmbito interno, ela representa o acordo, provisório que seja, em torno do qual servidores, docentes, técnico-administrativos e alunos uniremos nossas forças para avançar. Em 1822, o Brasil descobria a sua identidade como Nação. Em 1922, proclamava a sua autonomia cultural na Semana de Arte Moderna. Conduzindo-nos até o Bicentenário da Independência, o PDI 2013-2022 haverá de contribuir para colocar o País em novo patamar de protagonismo e soberania.‖ Como referem os autores que nos guiam na perspectiva analítica, estamos perante um discurso institucional que pretende produzir uma

hegemonia discursiva configuradora das práticas institucionais e, ao mesmo tempo, de caráter nitidamente político.

A comparação do PDI com marcos fundamentais da história brasileira representa a pretensão de uma hegemonia só possível a nível de um discurso retórico, como se uma única instituição pudesse ―colocar o País em novo patamar de protagonismo e soberania.‖ Como referia Foucault (1997, pp. 9-10), ―a produção do discurso é, ao mesmo tempo, controlada, selecionada, organizada e redistribuída por um certo número de procedimentos que têm por função esconjurar os seus poderes e perigos, dominar o seu acontecimento aleatório, esquivar a sua pesada e temível materialidade.‖ Um discurso que manifesta ou oculta um objeto de desejo e, simultaneamente, um empoderamento precoce.

Do ponto de vista da sua organização, a instituição fundamenta-se numa concepção nova de ensino superior, estabelecendo rupturas com alguns paradigmas tradicionais:

A organização da UFABC está baseada numa nova concepção de ensino superior, na qual a flexibilidade curricular se faz presente, assim como a atuação multicampus, o que apresenta grandes desafios à gestão universitária. Também por ser uma Universidade jovem, além de inovadora, a UFABC tem em suas mãos grandes desafios, que são sua implantação plena, seu desenvolvimento e sua consolidação, criando, ao mesmo tempo, novos paradigmas de ensino, pesquisa e extensão, assim como de gestão. (PDI, p. 133)

Indiscutivelmente, estamos perante a quebra de diversos paradigmas resultante das lutas dos diversos grupos sociais que, historicamente, foram excluídos dos processos civilizacionais.

Do ponto de vista dos fundamentos conceituais, a UFABC defende ―a excelência acadêmica, interdisciplinaridade e a inclusão social‖. Este tripé conceitual representa a diretriz de todo o desenvolvimento da instituição. A excelência acadêmica abrange a pesquisa, ensino, extensão e gestão. Ainda do ponto de vista dos fundamentos conceituais defende-se o princípio ético do respeito acadêmico ―como condição imprescindível para o convívio humano e profissional‖ e o princípio da interdisciplinaridade como uma ―efetiva interação entre as diversas áreas do conhecimento‖. O princípio da interdisciplinaridade dissolve os departamentos disciplinares como forma de possibilitar e estimular ―o livre trânsito e a interação entre todos os membros da comunidade acadêmica.‖ A superação das barreiras disciplinares, permite, de acordo com o PDI, uma ―interpenetração entre ciência e sociedade‖ e a ―inseparabilidade entre produção e transmissão do conhecimento‖. (p. 19).

O novo modelo pedagógico que serviu de exemplo a outras instituições criadas nos governos Lula e Dilma, ―visa revolucionar a estrutura acadêmica tradicional do ensino superior brasileiro, abrindo caminho e disseminando os aspectos bem sucedidos de seu PDI por todo o país.‖ (PPI, p. 45). A interdisciplinaridade, como referimos anteriormente, constitui um dos pilares do PDI da instituição. Ela é identificada como ―a interação entre áreas e a integração de conhecimentos e apontada como caminho para resolução das grandes questões do século XXI, que exigem a atuação e intercomunicação de profissionais de diferentes formações e visões‖ (...). ―Diferentemente das universidades tradicionais, em que cada curso possui seu conjunto de disciplinas, na UFABC todas as disciplinas ofertadas compõem um catálogo unificado.‖ (p.58). Os alunos de qualquer um dos cursos existentes podem matricular-se em qualquer uma das disciplinas. Verifica-se, assim, que as matrizes curriculares da instituição possuem uma flexibilidade que não se encontra nas universidades tradicionais.

Reconhece-se que a prática pedagógica ainda não se coaduna com estes princípios: as técnicas didáticas são ainda tradicionais, as aulas expositivas e um excesso número de alunos por sala. Faltam projetos de natureza interdisciplinar que ponham em prática e consolidem estes princípios, ―intercursos e intercentros que mobilizem a comunidade acadêmica para o exercício destes princípios‖ estruturantes. Dado tratar-se de um projeto em construção, instituiu-se um Observatório da Interdisciplinaridade que tem como tarefa a organização de formas de acompanhamento e aprimoramento do projeto e das respectivas práticas pedagógicas.

A questão da interdisciplinaridade tem-se afirmado, ao longo do tempo, como a solução para todos os problemas do ensino. Seguimos, nesta matéria, a perspectiva crítica de Tavares (2016). O próprio tempo tem mostrado que é uma questão impregnada de múltiplos equívocos. O primeiro equívoco diz respeito à partilha de poder que a interdisciplinaridade exige. O segundo equívoco prende-se com a ilusão de que a interdisciplinaridade tem um caráter inclusivo. O terceiro diz respeito à tendência para ajustar a realidade a um modelo interdisciplinar.

Genericamente, poderemos inferir que a interdisciplinaridade, a ser possível, seria, apenas, um diálogo entre disciplinas. Por si só, já se apresenta como uma visão excludente em relação aos saberes não disciplinares. Não parece, também, que a interdisciplinaridade seja capaz de dissolver as hierarquias que existem entre as disciplinas pelo fato de o poder se concentrar, essencialmente, nas áreas das chamadas ciência exatas e naturais. O que, nesta

perspectiva, coloca a questão da partilha do poder disciplinar como uma mera retórica. A questão da interdisciplinaridade parece não promover a interculturalidade, o diálogo horizontal entre os diversos saberes, mas, pelo contrário, pode conduzir ao aprofundamento da exclusão de saberes, irredutíveis às dimensões disciplinares. Dado tratar-se de um diálogo interdisciplinar, a dimensão de colonialidade epistémica é ampliada pela interdisciplinaridade. Se a ausência de departamentos pode, numa primeira análise, dissolver as estruturas de dominação de longa duração e contribuir para a decolonialidade da educação superior, a ausência de um discurso intercultural representa a continuidade da colonialidade do poder e do saber.

No que diz respeito à formação discursiva de ingresso e permanência, a UFABC criou políticas de ações afirmativas com a intenção de ―garantir as condições de acesso e permanência no ensino superior público, gratuito e de qualidade a uma parcela da população que foi historicamente alijada desta possibilidade.‖ (p. 70). Estas políticas de ações afirmativas têm o objetivo de reforçar o papel da universidade pública na formação de cidadãos críticos, transformadores da sociedade e fazendo representar no seu espaço de formação acadêmica todos os segmentos sociais, étnico-raciais e acelerar ―a oportunidade de igualdade aos segmentos mais vulneráveis da população‖. (p. 70). O discurso institucional, para além da sua dimensão ideológica caracterizada pela clara tomada de posição em relação à inclusão ―dos mais vulneráveis socialmente‖ e de segmentos étnico-raciais, promove uma das dimensões da identidade da instituição.

Uma instituição que apresenta um diferencial relativamente às universidades tradicionais, quer na sua organização e modelo acadêmicos, quer nas matrizes curriculares e na sua flexibilidade quer ainda no sistema quadrimestral de ensino, que possibilita ao aluno maior dinâmica e variedade na escolha das disciplinas, e, ainda, na gestão participada dos vários organismos que a constituem. Por outro lado, nos documentos em análise encontram-se discursos que se cruzam, se contradizem sem horizontes de consenso: a universidade adota um discurso neoliberal e hegemônico no que diz respeito às questões da qualidade e da excelência, querendo afirmar-se nos rankings nacionais e internacionais como uma instituição de referência. ―A UFABC pode e deve usar os rankings e as avaliações como ferramentas na busca da excelência, mas sem abrir mão, (...) da sua individualidade e de seu perfil único que a diferencia de outras universidades nacionais e internacionais.‖ (p. 28)

O discurso social e de inclusão, por sua vez, parece estar na contramão dessa hegemonia discursiva. Como incluir as populações mais pobres, suas culturas e saberes no

âmbito de um paradigma epistemológico dominante? São estas intertextualidades que, parece- nos, nas suas contradições, revelam uma enorme distância entre o que é a instituição, o que quer ser e o que realmente poderá ser, encerrando as políticas institucionais em diversos dilemas difíceis de resolver. Isso mesmo se revela na seguinte unidade discursiva:

Para construir consensos sobre o perfil institucional é preciso guiar-se por respostas a algumas grandes perguntas. Quais são os grandes temas que hoje representam os principais desafios a ser enfrentados? A universidade deve ser um espaço de pluralidade de temas e de conhecimentos, ou deve dar ênfase a grandes temas que representem os principais desafios do Século XXI? É possível combinar as duas perspectivas? Como fazê-lo? Quais são as oportunidades e os constrangimentos que o atual contexto do país em geral e da organização científica e universitária, em particular, colocam para uma universidade em formação como a UFABC? No contexto brasileiro e no enfrentamento destes temas situados na fronteira do conhecimento científico é possível conciliar a necessária inclusão social com a busca pela excelência acadêmica? Há um dilema entre estas duas perspectivas ou é possível conciliá-las?(PDI, p. 19)

É verdade que um dos princípios fundamentais da instituição é a afirmação da diversidade e da pluralidade no ambiente acadêmico, quer de público quer de culturas e saberes. Do ponto de vista discursivo, parece não haver incompatibilidade nem dicotomias entre a busca e afirmação da excelência em determinadas áreas científicas e tecnológicas e a inclusão da diversidade. A fuga à excessiva especialização é um dos caminhos e a relação dos projetos de pesquisa e extensão interdisciplinares com os problemas sociais e ambientais parece ser outro percurso a trilhar: ―A universidade deve dar conta das demandas sociais colocando os valores acadêmicos como a pedra angular da vida universitária.‖ (p. 22)

O cumprimento das metas estabelecidas no PDI exige profissionais qualificados e, sobretudo, que se ajustem ao perfil da instituição. Reconhece-se que os professores, formados em instituições tradicionais, atuam ainda no âmbito da sua especialidade disciplinar manifestando ―alguma dificuldade em atuar fora dos limites de seu tópico de estudo, ou mesmo em trabalhar na integração de seu conhecimento com o de colegas de outras áreas.‖ (p. 46) Para além dos projetos de pesquisa, em consonância com as determinações das agências financiadoras, os documentos analisados não referem nenhum modelo institucional de formação contínua dos seus professores no sentido de promoverem e se ajustarem, nas suas práticas pedagógicas e de pesquisa, aos princípios e perfil da instituição. Construir um modelo inovador de educação superior exige a superação da contradição enunciada. Cremos que a UFABC, desde que obedeça aos grandes princípios fundacionais e não seja asfixiada

financeiramente, poderá ser, como se refere no PDI, (2013-2020, p. 10) ―com o seu modelo pedagógico de ensino interdisciplinar uma referência para as universidades brasileiras e influenciar uma reforma do sistema de ensino superior, com difusão de novas práticas e formas para a construção, difusão e transmissão do conhecimento.‖

Se tivermos em consideração os discursos das agências internacionais, sobretudo do Banco Mundial, poderemos inferir que a dimensão de inclusão no ensino superior proposta pela UFABC se situa na contramão das pretensões do Banco Mundial. É verdade que pretende promover o acesso ao ensino superior de estudantes de baixa renda a ―instituições do setor privado de ensino pós-secundário (…) por meio de financiamento direto de faculdades ou do patrocínio de fornecedores de empréstimos para estudantes.‖ (p. 28) A proposta do BM não visa a inclusão de estudantes de baixa renda no setor púbico de educação superior mas, pelo contrário, conceder financiamentos à iniciativa privada responsável pela ―democratização‖ do ensino superior. Por outro lado, as diretrizes do BM vão no sentido da expansão do ensino vocacional e técnico tendo em consideração as exigências do mercado de trabalho. Na década de 1990, com algumas alterações de incremento das políticas sociais na década de 2000, as reformas educacionais difundidas no Brasil estão pautadas pelo ideário neoliberal, com uma menor participação do Estado, por meio da concepção de um Estado mínimo.

A influência das agências de financiamento internacionais referente ao ensino superior aponta para a diminuição dos gastos dos setores públicos com as instituições federais, assinalando um movimento de privatização das mesmas. Os financiamentos estão dependentes do cumprimento das orientações do BM. Os documentos do Banco Mundial apresentam uma tese de separação entre instituições de ensino e pesquisa e as instituições destinadas somente ao ensino, a finalidade seria concentrar essas duas atividades apenas em algumas universidades públicas, devido ao alto custo, criando, assim, algumas instituições de excelência. Pode concluir-se que o destaque educacional do Banco Mundial não é direcionado à Educação superior, mas, essencialmente para a educação básica no sentido de diminuir os índices de pobreza, justificando a retirada da responsabilidade do Estado com a educação superior, que, consideramos ser um direito de todo o cidadão. Segundo o Banco Mundial, os países em desenvolvimento apresentam um gasto elevado com a educação superior, dessa forma não devem investir em subsídios como ―alojamentos e comida aos estudantes; propondo também a cobrança de taxas dos alunos já graduados.‖ (BANCO MUNDIAL, 1995, p. 3). Neste sentido, parece haver uma contradição entre as pretensões de inclusão social da UFABC e as propostas do Banco Mundial.

Por sua vez, a UNESCO (1999, p. 13) reconhece a necessidade de investimento na qualidade do ensino superior apostando no treinamento e na atualização dos docentes tendo em vista a melhoria do ensino-aprendizagem. Significa, do nosso ponto de vista, o reconhecimento, ainda que sutil, da necessidade de formação continuada dos docentes para que possam responder e corresponder às exigências impostas pelas transformações céleres das sociedades. No que diz respeito ao acesso, e revisitando o texto já referido anteriormente (3.1.), o mesmo documento considera o acesso ao nível superior de ensino ―de categorias menos representativas, como mulheres, minorias étnicas e estudantes de famílias de baixa renda ou de áreas rurais‖ (UNESCO, 1999, p. 32), fatores que, indubitavelmente, aumentam, consideravelmente, a responsabilidade docente sobre o que se ensina e como se ensina. Todavia, a própria UNESCO (1998) refere que a educação superior deverá ser acessível a todos com base no respectivo mérito e, conclui-se, não como um direito!