3. O discurso da ALN
3.1 Primeira fase
3.1.1 Documentos internos
Consideramos documentos internos o conjunto de textos produzidos pela ALN que apresentam as seguintes características:
• têm três funções principais: conquistar a adesão, entre os militantes de esquerda, para a luta armada; organizar a guerra revolucionária e formar seus membros;
1 Vale ressaltar que essas divisões são meramente metodológicas, pois sabemos que na prática os públicos se
• os temas mais recorrentes são: conjuntura política; organização, luta e militantes armados;
• os textos possuem extensão variada, entre 01 e 26 páginas, sendo a maioria com mais de 05 páginas;
• os textos são construídos com linguagem predominantemente formal.
Observa-se, pelas características gerais, que os documentos internos da ALN não compõem um gênero, pois, apesar de apresentarem muitas semelhanças em suas funções e no conteúdo temático, estes não mantém a mesma forma composicional.
A leitura do material revela a recorrência de três grandes eixos temáticos, em torno dos quais estruturamos nossa análise. No primeiro, menos desenvolvido, encontra-se uma avaliação da conjuntura nacional e das condições de surgimento da luta armada no Brasil; no segundo, aborda-se o perfil do guerrilheiro e sua formação, sobretudo prática, isto é, para a ação; no último eixo temático, discorre-se sobre a guerra revolucionária, suas características e seu modo de preparação. Antes de prosseguirmos, gostaríamos de fazer duas ressalvas. Primeiro, os temas não surgem explicitamente separados, mas diluídos ao longo dos textos. Segundo, nosso objetivo não é realizar um estudo exaustivo de cada um desses eixos temáticos, mas tecer uma análise que nos permita depreender as características relevantes para a constituição do éthos do enunciador e do páthos do enunciatário desse discurso.
Título Responsável Data Nº de páginas Referência 1. Algumas
questões sobre as guerrilhas no Brasil
Carlos Marighella 1967 14 páginas MARIGHELLA, 1979, p. 117-130
2. Alocuções sobre
a Guerrilha Rural Carlos Marighella 1969 4 páginas CARONNE, 1984, p. 57-60 3. As perspectivas
da revolução brasileira
Carlos Marighella 1969 5 páginas AEL/BNM, anexo 5335
4.Características de nossa atual estrutura
Carlos Marighella 1969 2 páginas AEL/BNM, anexo 5812
5 .Mini-manual do guerrilheiro urbano
Carlos Marighella 1969 26 páginas In: DHnet. Rede de Direitos
Humanos e Cultura. Disponível em:
<http://www.dhnet.org.br>.
Acessado em: 15 fev. 2007 6. O guerrilheiro,
nº 1 Agrupamento Comunista 1968 4 páginas Cedem-Cemap 7. O papel da ação
revolucionária na organização
Carlos Marighella 1969 18 páginas AARÃO; SÁ, 2006, p. 264-281
8. Operações e táticas
guerrilheiras
Carlos Marighella 1969 10 páginas AEL/BNM, anexo 75
9. Sobre a organização dos revolucionários
Carlos Marighella 1969 3 páginas CARONNE, 1984, p. 61-63
10. Sobre problemas e princípios
estratégicos
Carlos Marighella 1969 5 páginas AEL/BNM, anexo 5812
Discurso guerrilheiro e interdiscurso
A análise de conjuntura da ALN prioriza dois alvos, a esquerda não armada e a ditadura. Esse fato não causa grandes surpresas, pois, como mencionamos no capítulo referente às condições de produção, a esquerda, surpreendida pelo golpe, entra em crise e apatia, não esboçando as reações esperadas. Além disso, o PCB havia adotado uma linha
política pacífica. Por outro lado, diante da ausência de oposição, os militares abusavam de atos e medidas arbitrárias e inconstitucionais.
Para analisar esse primeiro eixo temático, selecionamos algumas passagens do discurso da ALN onde se verificam críticas diretas aos discursos mencionados.
Crítica à ditadura
Observemos os fragmentos abaixo:
1. [...] a inflação não foi dominada, a moeda nacional desvalorizou-se até ao limite mais inexpressivo. Os preços, os aluguéis, os impostos são exorbitantes. Os salários agravaram-se. Os problemas de estrutura agravaram-se. O país está mergulhado numa crise crônica e a crise política é permanente. [...] As cadeias estão cheias de presos políticos. O Brasil tem campos de concentração. A ditadura militar transforma quartéis em sedes da Gestapo brasileira e em câmaras de tortura. Com a atividade dos grupos revolucionários armados, estes fatos acabaram por tornar-se conhecidos do povo (3, p. 1-2)2;
2. A ditadura militar brasileira, por sua vez, representa os interesses da oligarquia, violentamente opostos aos do proletariado e dos camponeses, bem como aos das camadas médias e da nação em geral.
Daí por que a ditadura militar brasileira não tem outra política a seguir senão a entrega do Brasil aos Estados Unidos. É um governo de traição nacional (6, p. 1);
3. Os militares brasileiros no poder fazem o jogo dos interesses norte-americanos. Eles respeitam a ideologia do imperialismo. Sua política é a do Pentágono. [...]
É ilusão crer que estes militares se revoltarão contra os EEUU, porque esta nação imperialista, seus governos e seus monopólios são a fonte de abastecimento do aparelho militar às ordens gorilas (8, p. 2);
4. Implacável e impiedosa a ditadura recorreu à violência brutal. Ela persegue, bate e atira nas ruas; o medo e a insegurança prevalecem. No cárcere, as torturas são indescritíveis. Assassina e fuzila prisioneiros e suspeitos.
Ao terrorismo que a ditadura emprega contra o povo nós contrapomos o terrorismo revolucionário (8, p. 7);
5. Prisões, espancamentos, assassinatos, a negação das liberdades e dos direitos dos brasileiros sob todas as formas é a constante da ditadura que há quatro anos se instaurou no Brasil. [...]
Agora, o governo ameaça o povo com novas medidas de aprofundamento da ditadura, enquanto outros setores especulam com possibilidade de manobras e golpes liberalizantes. Uns e outros o que pretendem, na realidade, é manter a velha e carcomida estrutura que infelicita os brasileiros.
Os acontecimentos das últimas semanas deixaram ainda mais claro que devemos responder à violência da reação com a violência do povo, que o lema é olho por olho, dente por dente (6, p. 1).
2 O primeiro número entre parênteses corresponde ao documento em que a passagem citada se encontra. Essa
numeração tem como base a lista de documentos apresentada no quadro da página 73. Nesse caso, trata-se da reprodução de um trecho de “As perspectivas da revolução brasileira”. É possível também consultar a lista de documentos analisados pela ALN e os respectivos números a eles atribuídos no final da tese.
A crítica à ditadura se realiza sob diferentes aspectos, sempre na tentativa de desmoralizar o adversário. Inicialmente, tem-se a acusação de má gestão, sobretudo da economia, o que podemos verificar explicitamente no início do primeiro exemplo. Tal crítica é construída com o uso de recursos que produzem um efeito de sentido de intensificação dos problemas apresentados, como é o caso do emprego dos vocábulos
exorbitantes, agravaram-se e crise crônica. Acusa-se também a ditadura de defender a
ideologia das classes dominantes e prejudicar a população desfavorecida, o que fica claro no segundo exemplo. Uma terceira crítica feita ao regime militar está relacionada ao fato de o governo manter uma relação de subserviência com os Estados Unidos, o que indicaria traição nacional. Como veremos posteriormente, um dos objetivos da esquerda armada é tornar o Brasil uma “nação independente” política e economicamente, portanto, de acordo com esses valores, um projeto político como o desenvolvido pelo regime militar, de estreitamento dos laços políticos com os norte-americanos, é considerado uma traição.
Outro ponto fundamental no discurso da ALN consiste na condenação da face violenta e repressora da ditadura, realizada por meio do emprego de uma série de substantivos, adjetivos e verbos que, reunidos, constroem a cena de uma guerra injusta e injustificada: persegue, bate, atira, medo, insegurança, impiedosa, violência brutal,
torturas indescritíveis, prisões, espancamentos, assassinatos, campos de concentração e câmaras de tortura.
O enunciador mostra-se nitidamente insatisfeito e fortemente modalizado pelo
querer fazer, querer mudar a situação. Ao fazer alusão ao Pentágono e à Gestapo, apenas
pelo nome, sem maiores explicações sobre o que esses organismos significam, nem a que se referem, além de associar a ditadura brasileira a órgãos historicamente conhecidos por sua eficiência nos trabalhos de dominação, repressão e censura, esse enunciador se coloca como um sujeito conhecedor da política mundial, capaz de emitir julgamentos sobre a gestão nacional, o que implica também na existência de um enunciatário politizado, ou que queira se politizar, apto (ou disposto) a interpretar os enunciados. A presença desse enunciador é reforçada por meio do emprego dos verbos na terceira pessoa do singular, produzindo um efeito de sentido de distanciamento em relação ao enunciado, e do uso de expressões explicativas (“Daí por que a ditadura militar brasileira não tem outra política a seguir senão”; “porque esta nação imperialista, seus governos e seus monopólios são a fonte...”),
que imprimem no enunciado um “tom professoral”. Por outro lado, quando se trata de defender a luta contra a ditadura e buscar conquistar adeptos para essa luta, emprega-se, muitas vezes, o “nós” inclusivo, ou seja, aquele que inclui também o enunciatário, produzindo um efeito de sentido de proximidade, como mostram os exemplos 4 e 5.
Outro aspecto que reafirma a imagem do enunciador como alguém que detém o saber verifica-se nas passagens “É ilusão crer” ou “o que pretendem, na realidade”, nas quais a leitura dos fatos se apresenta como dividida em dois planos, o real e o ilusório, o que o enunciador não apenas sabe distinguir, mas também revela aos enunciatários.
A combinação de elementos como a imagem de um enunciador politizado e detentor do saber, a pressuposição de um enunciatário também politizado, o efeito de sentido de intensificação dos problemas do país, a busca em fazer crer que o enunciatário está sendo enganado e a isotopia de guerra produz efeitos de sentido passionais que contribuem para a conquista de adeptos às posições do discurso produzido e para a apresentação da luta armada como uma obrigação: “Os acontecimentos das últimas semanas deixaram ainda
mais claro que devemos responder à violência da reação com a violência do povo, que o lema é olho por olho, dente por dente”; “Ao terrorismo que a ditadura emprega contra o povo nós contrapomos o terrorismo revolucionário”.
Diante do exposto, verificamos que o discurso da ALN se insere em uma lógica de guerra e a ditadura representa o inimigo a ser combatido. A análise permite ainda reunir alguns traços constitutivos da imagem do enunciador e de seu oponente. Com relação ao primeiro, tem-se um sujeito politizado, que detém o conhecimento e esclarece a verdade àqueles que não podem apreendê-la sozinho. Um sujeito inconformado com as ações da ditadura e com a realidade do país; fortemente modalizado pelo querer fazer, querer reagir a essa situação, que se mostra competente (sabe e pode) para isso. Tal imagem se constitui em oposição a uma anti-imagem, atribuída ao anti-enunciador, um sujeito política e economicamente incompetente, traidor nacional, defensor de uma ideologia que favorece as classes dominantes e o imperialismo. Além disso, um sujeito cruel, que age com uma violência injusta contra o povo. Para que o discurso seja eficiente, é preciso que o enunciatário valorize o conhecimento, se importe com os indivíduos pertencentes às camadas menos favorecidas, como camponeses e operários e esteja disposto a se politizar.
Crítica à esquerda não armada
6. Entre as várias maneiras de crescimento das organizações revolucionárias há duas que se destacam. Uma delas é levada à prática através do proselitismo. [...]
Esta maneira, já tradicional no Brasil, era própria das organizações que buscavam soluções políticas, acordos e entendimentos com personalidade e grupos burgueses, visando enfrentar o inimigo dentro do quadro do regime vigente e sem pretensão de o modificar na prática.
Na maior parte das vezes, o militante recrutado através do proselitismo abandona as fileiras em que ingressou, ao sentir que foi enganado com palavras (7, p. 269);
7. Nossa estratégia é partir diretamente para a ação, para a luta armada. O conceito teórico que nos guia é que a ação faz a vanguarda. Seria imperdoável que perdêssemos tempo organizando uma nova cúpula, lançando os chamados documentos programáticos e táticos, inaugurando novas conferências, de onde surgiria outro Comitê Central com os vícios e deformações já conhecidos (6, p. 3);
8. Os dirigentes de nossa Organização não podem provir de eleições. Os dirigentes surgem da ação e da confiança que despertam pela sua participação pessoal nas ações. (9, p. 2);
9. Os que dizem que só falamos em guerrilha e que, por isso somos exclusivistas, dificilmente podem