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2. Elementos de Semiótica e Retórica Introdução

2.1. Estruturas sêmio-narrativas

O nível das estruturas fundamentais, mais simples e abstrato, abriga a oposição semântica elementar que se encontra na base da construção do sentido do texto, por exemplo, capitalismo vs. comunismo. Os termos dessa categoria semântica estabelecem entre si uma relação de contrariedade, o que implica uma pressuposição recíproca e um conjunto de semelhanças, a partir dos quais surgem as diferenças. Note-se que, tanto comunismo como capitalismo representam sistemas econômicos.

Aplicando-se uma operação de negação aos termos contrários, estes podem projetar os seus contraditórios, o que, em nosso exemplo, resultaria em não-capitalismo e não-

comunismo. A contradição indica a impossibilidade do termo e o seu contraditório

aparecerem juntos, pois estes se caracterizam pela presença ou ausência de um traço; por exemplo, não podem ocorrer simultaneamente capitalismo e não-capitalismo. As relações como não-capitalismo e comunismo são complementares, pois se entende que o primeiro termo aponta para o segundo, configurando um eixo de sentido ou dêixis. A estrutura elementar da significação encontra-se representada no quadrado semiótico, que reproduzimos a seguir:

S2 S1 S2 S1 Relação de contrariedade Relação de contradição Relação de complementariedade

A sintaxe fundamental abrange relações de asserção e negação, em operações orientadas que, ao negar um conteúdo e afirmar outro, geram a significação e possibilitam a narrativização. Em nosso exemplo, o percurso de um texto poderia ser: afirmação do capitalismo → negação do capitalismo → afirmação do comunismo. Por fim, na semântica fundamental, as categorias recebem qualificações fóricas, que se desdobram em /euforia/ e /disforia/, sendo a primeira valorizada positivamente, e a segunda, negativamente. A determinação de um termo como eufórico ou disfórico não é pré-estabelecida, podendo variar de um texto para outro. Assim, capitalismo pode ser considerado tanto eufórico quanto disfórico, a depender da axiologização do discurso em que esta categoria estiver inserida. Recentemente, surge um desdobramento da teoria greimasiana, a semiótica tensiva, que se dedica ao estudo do contínuo, do intervalo, do processo, das gradações, etc. Trata-se de uma tentativa de apreender o dinamismo interno do texto e seu movimento oscilatório entre o inteligível e o sensível, como afirma Zilberberg ao definir a tensividade, conceito-chave para sua teoria: “a tensividade é o lugar imaginário em que a intensidade – ou seja – os estados de alma, o sensível – e a extensidade – isto é, os estados de coisas, o inteligível – unem-se uma à outra”. (ZILBERBERG, 2006, p. 55)3. Para isso, o percurso analítico idealizado pelo autor não opera com categorias de asserção e negação, mas de intensidade e extensidade. Esse desdobramento teórico traz contribuições para o estudo do processo da enunciação, ao possibilitar a exploração dos sentimentos e da percepção do sujeito enunciativo.

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« [...] la tensivité est le lieu imaginaire où l'intensité, c'est-à-dire les états d'âme, le sensible, et t'extensité, c'est-à-dire les états de choses, l'intelligible, se conjoignent l'une à l'autr ». A tradução que apresentamos foi feita pelos professores Ivã Lopes e Waldir Beividas.

O nível narrativo propõe uma gramática que explique as estruturas narrativas, instância intermediária entre as estruturas fundamentais, mais abstratas, e as discursivas, mais concretas. A sintaxe do nível narrativo encontra-se bem definida por Barros:

[...] entende-se a sintaxe narrativa como o simulacro do fazer do homem que transforma o mundo. Desvendar a organização da narrativa consiste, portanto, em descrever e explicar as relações e funções do espetáculo, assim como em determinar seus participantes (BARROS, 2001, p. 28)

O movimento estruturalista, buscando as estruturas subjacentes aos conteúdos de superfície, preocupava-se, entre outras coisas, em desvendar a organização das narrativas. Nesse sentido, pesquisas bastante relevantes foram desenvolvidas, como as de Lévi-Strauss e de Propp. Este, estudando os contos maravilhosos russos, observou que, apesar das mudanças de personagens e de circunstâncias, algumas ações sempre se repetiam e, muitas vezes, suas sequências permaneciam as mesmas. Propp classificou essas ações por funções, e apresentou trinta e uma delas como frequentes na constituição dos contos analisados. Com esses estudos, uma nova metodologia de análise começa a se esboçar: a busca das estruturas constantes nas narrativas.

Nessa direção, Greimas imprime maior abstração ao modelo proppianno e alarga o alcance de sua aplicação, ao tomar a narratividade como uma sucessão de transformações que se encontram na base da constituição da significação de qualquer tipo de texto. Para o autor, uma narrativa seria um enunciado global que poderia ser decomposto em uma série de enunciados narrativos, unidades sintagmáticas elementares da sintaxe narrativa. O enunciado narrativo define-se pela relação entre os actantes que o constituem. Tomando como base, principalmente, os estudos de Propp, a semiótica define duas classes principais de relações actanciais: sujeito-objeto, destinador-destinatário.

O primeiro par define-se pela transitividade: o sujeito procura estabelecer uma relação com o objeto, que pode ser de conjunção ou de disjunção4. Por exemplo, um homem que compra um carro passa do estado de disjunção para o de conjunção com o objeto5. Esse exemplo permite observar a existência de dois tipos de sujeito, o de fazer, que

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Landowski (2004, p. 62-66) considera limitadas as noções de conjunção e disjunção, pois, segundo ele, estas apresentam os actantes apenas do ponto de vista da relação que ocupam no percurso narrativo – em conjunção ou em disjunção, ou seja, restringem-se ao “antes” e ao “depois” da transformação. Buscando preencher a lacuna do “durante”, o pesquisador francês desenvolve o conceito de união, que seria um modo de interação, de construção.

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Vale ressaltar que sujeito e objeto não significam necessariamente um homem e uma coisa, trata-se de funções sintáticas, que podem ser cumpridas por homens, animais, coisas, etc.

age, e o de estado, passivo, que antecede a ação e/ou decorre dela. Assim, temos inicialmente um sujeito de estado, que se encontra em disjunção com o objeto carro e deseja mudar essa situação; em seguida, um sujeito de fazer, que realiza a transformação (comprar o carro), e, por fim, há novamente um sujeito de estado, mas, dessa vez, com a condição transformada, pois ele se encontra em conjunção com o objeto desejado. Ressalte-se, portanto, que o sujeito, para a semiótica, se define pela relação com o objeto.

A passagem de um estado para o outro, ou seja, da disjunção para a conjunção ou da conjunção para a disjunção, representa o sintagma elementar, o programa narrativo. Uma narrativa é composta normalmente por uma sequência desses programas.

O segundo par actancial da semiótica, destinador-destinatário, apresenta uma relação de comunicação, como revela esta definição:

[...] o Destinador é aquele que comunica ao Destinatário-sujeito (do âmbito do universo imanente) não somente os elementos da competência modal, mas também o conjunto dos valores em jogo; é também aquele a quem é comunicado o resultado da performance do Destinatário-sujeito, que lhe compete sancionar (GREIMAS; COURTÈS, s.d., p. 115)

O destinador pretende levar o destinatário-sujeito a fazer o que ele lhe propõe e, para isso, procura manipulá-lo. Caso o sujeito realize a ação, caberá ao destinador julgá-la no final, o que será feito a partir de um código de valores que poderá ou não corresponder àquele da manipulação inicial.

Cada um dos actantes, por sua vez, pode desdobrar-se em dois, conforme sejam pertencentes à dêixis positiva ou negativa que, como dissemos no nível fundamental, correspondem a eixos de sentido com valores opostos. Assim, temos o seguinte esquema actancial:

sujeito positivo vs. sujeito negativo (ou anti-sujeito) destinador positivo vs. destinador negativo (ou anti-destinador) destinatário positivo vs. destinatário negativo (ou anti-destinatário)

Os programas narrativos organizam-se sintagmaticamente por meio de percursos, segmentos autônomos que se interligam para a constituição de uma narrativa mais complexa. Recorrendo novamente às contribuições de Propp, a semiótica define três trajetos essenciais, que compõem juntos um esquema narrativo canônico:

[...] foi a iteração das três provas, - qualificante, decisiva e glorificante - que se apresentou como regularidade, situada no eixo-sintagmático, reveladora da existência de um esquema narrativo canônico (GREIMAS; COURTÈS, s.d., p. 297)

Assim, o esquema narrativo canônico divide-se em manipulação (prova qualificante), ação (prova decisiva) e sanção (prova glorificante). Essa estrutura ternária acompanha o percurso dos actantes destinador-destinatário (primeiro e terceiro percursos) e sujeito-objeto (segundo percurso). Na manipulação, ocorre um contrato no qual um destinador age sobre um destinatário-sujeito com a finalidade de levá-lo a querer ou dever fazer algo; a partir desse contrato, o sujeito busca adquirir competências para realizar a sua ação. Por fim, na sanção, um destinador-julgador avalia a ação realizada pelo sujeito, sua

performance.

Paralelamente, há os percursos oponentes (anti-destinador, anti-sujeito, etc.) que, embora se desenvolvam em eixos opostos, caracterizam-se por visarem ao mesmo objeto- valor, fazendo emergir, assim, a estrutura polêmica.

Na semântica narrativa, as categorias tímicas do nível fundamental convertem-se em valores, que se dividem em dois tipos:

[...] os valores descritivos (objetos consumíveis e entesouráveis, prazeres,

estados de alma, etc), cuja aquisição pelo sujeito pressupõe o

estabelecimento de sua competência, e os valores modais (querer, dever, saber, crer, poder ser ou fazer), cuja aquisição institui essa competência. (BERTRAND, 2003, p. 27, grifos no original)

Dessa forma, de acordo com o valor investido, o enunciado pode ser definido como descritivo ou modal.

O destinador-manipulador instaura-se como um modalizador que busca instituir o fazer-fazer. O primeiro passo dessa persuasão é convencer o sujeito a querer ou dever fazer o que está sendo proposto. Para isso, o destinador procura fazer parecer verdadeiro o seu dizer, atitude que não tem como objetivo alcançar uma verdade referencial, mas conquistar a adesão do destinatário que, ao realizar seu fazer interpretativo, deverá reconhecer o enunciado como verdadeiro. O ato de “re-conhecer” corresponde a uma operação de comparação entre o que foi proposto e o universo de conhecimentos e de crenças do sujeito, sendo bastante tênue a linha que separa o saber do crer:

Interpretar para o sujeito é, por excelência, confrontar a proposta recebida com seu universo do saber e do crer, com os sistemas de valores que atribuem sentido aos fazeres e aos estados. Distinguir a adesão “fiduciária”, que envolve sobretudo o crer, da adesão “lógica”, que recorre ao saber, é separar tipos de racionalidade que, no ato de interpretar, se misturam e se confundem na certeza ou na dúvida da verdade, na verdade ou na falsidade da certeza. Afirma-se, com isso, o caráter ideológico da interpretação, no seu “reconhecimento da verdade” (BARROS, 2001, p. 58)

Por outro lado, deve-se considerar que toda comunicação humana repousa sobre um mínimo de confiança mútua; assim, para que o destinatário creia verdadeiro o que foi enunciado, é preciso que ele confie no destinador. Vale ressaltar que este, em seu fazer persuasivo, não opera com a realidade axiológica do destinatário, mas com seu simulacro. A relação de confiança que leva à adesão, contrato fiduciário, constrói-se, portanto, com base em valores, e, sobretudo, em imaginários socialmente existentes.

Se bem sucedido, o destinador-manipulador instaura o percurso do sujeito do fazer que, modalizado pelo querer ou pelo dever, procura realizar sua performance. Cabe ao destinador-manipulador transmitir-lhe a competência modal (saber, poder) necessária para essa realização.

O fazer persuasivo do destinador e o fazer interpretativo do destinatário, ou, em outras palavras, as questões de persuasão e de adesão demonstram que a análise semiótica do texto engloba questões culturais, contextuais e situacionais. Nessa perspectiva, Landowski afirma que as modalidades participam do que ele denomina de nível pragmático, possibilitando a depreensão da situação na qual o enunciado se produz:

A especificidade do procedimento semiótico [...] não deve, evidentemente, ignorar esse tipo de determinações [psicológicas, institucionais, etc.], mas, ao contrário, procurar definir um princípio de pertinência que permita integrá-las no âmbito de uma teoria global, e não mais tratá-las como variáveis ad hoc ou sobredeterminações externas. A questão é, pois, a da “semiotização” do contexto, ou, melhor, da elaboração de uma semiótica das situações. [...] o papel principal de tão vasta empresa é assumido pelo conceito sêmio-narrativo de modalização (LANDOWSKI, 1992, p.150)

Para o sujeito de estado, as modalidades incidem sobre o valor do objeto e da relação que se estabelece com o mesmo. Assim, um objeto pode ser, por exemplo, desejável e impossível, ou desejável e possível, o que resulta em estados passionais

distintos. No primeiro caso, pode-se ter um sujeito amargo, desiludido, etc., no segundo, alguém confiante, feliz, esperançoso, etc. Nesse sentido, dos estudos sobre o sujeito de estado deu-se origem na semiótica aos estudos das paixões, como afirma Barros:

O sujeito de estado [...] mantém laços afetivos ou passionais com o destinador, que o torna sujeito, e com o objeto, a que está relacionado por conjunção ou disjunção. O estudo das paixões reabilita, no seio da semiótica, o sujeito de estado (BARROS, 2001, p. 62)

A semiótica das paixões considera as modalidades um recurso privilegiado para o estudo da configuração passional do sujeito de estado, podendo revelar os chamados percursos da paixão. Outros elementos que contribuem para a depreensão dessa configuração passional são o aspecto e a intensidade, pois as paixões podem variar de acordo com a maneira como se desenrolam ou conforme o valor que o sujeito de estado atribui a si mesmo, ao destinador, ao objeto, à modalidade, à junção, etc. Nesse sentido, o primeiro caso pode ser ilustrado com a nostalgia, que marca a persistência duradoura na memória do sujeito de uma conjunção terminada; quanto à intensificação, essa atua, por exemplo, na diferenciação entre o sujeito econômico e o avaro. Essa perspectiva de ampliação na abordagem das configurações passionais encontra-se bem resumida nas seguintes palavras de Bertrand:

A narratividade já não se reduz apenas às operações de transformação dos enunciados de ação, mas se desdobra em percursos actanciais implicando a temporalidade e o devir; a dimensão afetiva e passional do discurso não depende mais somente dos conteúdos modais que definem o estado do sujeito, seus estados de alma, mas levam em conta as modulações do campo de presença que esse sujeito ‘sente’ e que o afetam (BERTRAND, 2003, p. 108)

Na tentativa de sistematizar o funcionamento dos percursos das paixões, Greimas e Fontanille (1993), baseados no esquema narrativo canônico, apresentam o esquema

passional canônico, o percurso do “ser”, que viria complementar o percurso do “fazer”:

Disposição – sensibilização – emoção – moralização

A disposição, como o próprio nome indica, corresponde à (pré) disposição de um sujeito para acolher uma paixão e não outra, uma espécie de “competência modal patêmica” (Cf. BERTRAND, 2003, p. 374-378). Na sensibilização, há uma sobremodalização dessa competência pelo aspecto ou pela intensidade. A emoção representa a patemização propriamente dita, o momento da “reação somática”, do “corpo sentindo”. Finalmente, a moralização é a avaliação da paixão, qualitativa (má ou boa) e quantitativamente (na medida ou excessiva), no espaço social em que foi vivida. Trata-se da reinserção na coletividade de um sujeito que, provisoriamente, afastou-se dela, vivenciando as tensões de seu mundo interior. Esta última etapa mostra que, para a semiótica, as paixões são abordadas em uma perspectiva social e intersubjetiva, não individual e subjetiva.

Observa-se, desse modo, que, apesar de abstratas, encontram-se nas estruturas sêmio-narrativas (níveis fundamental e narrativo) elementos, tanto do âmbito do inteligível quanto do sensível, que participam da constituição do enunciado e da imagem do sujeito da enunciação.