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2. Elementos de Semiótica e Retórica Introdução

2.4. O páthos do enunciatário

2.4.1 Páthos aristotélico

Do ponto de vista retórico, para persuadir o auditório, não basta apresentar bons argumentos, é necessário despertar sentimentos que o coloquem em disposição favorável em relação ao orador. Assim, o livro II da Retórica é dedicado ao auditório e às suas paixões. Aristóteles define paixões como “todos aqueles sentimentos que, causando mudança nas pessoas, fazem diferir seus julgamentos”, e explica: “para as pessoas que amam, as coisas não parecem ser as mesmas que para aquelas que odeiam, nem, para os dominados pela cólera, as mesmas que para os tranquilos” (Cf. II, 1). Castellani, em seu estudo sobre a retórica das paixões, apresenta uma definição do termo páthos que traz algumas informações complementares às palavras do Estagirita, contribuindo para uma maior compreensão das mesmas:

Como definir esse páthos? A palavra grega, para a qual o latim apresentará diversos termos equivalentes, entre os quais, evidentemente,

perturbatio, adfectus, ou motus animis, designa o estado de alma, sua

disposição, sobretudo quando agitada por alguma causa exterior; a qualidade de uma substância ou sua propriedade; mas também um acontecimento que se produz, uma mudança, uma alteração. (Castellani, 2000, p. 49, tradução nossa)21

Percebemos uma constante: nas duas definições anteriores, despertar sentimentos corresponde a agitar, alterar estados de alma. Mas Castellani (2000), ao afirmar que as paixões podem ser despertadas por um “acontecimento que ocorre”, introduz uma nova informação, desenvolvida por meio da comparação22 entre éthos e páthos. O primeiro seria uma emoção comedida, um estado contínuo, durável; o segundo, uma emoção forte, de movimentos vivos, um estado momentâneo, que comanda o outro. O éthos desenrola-se no tempo de modo constante e estável; o páthos surge momentaneamente, como uma irrupção emotiva (CASTELLANI, 2000: 51-52). Traçando um paralelo entre o comentário da autora e os conceitos propostos pela semiótica tensiva, diríamos que o éthos é extenso, e o

páthos, intenso.

Voltemos à questão central do páthos para Aristóteles, a da comoção do auditório. Para alcançar esse objetivo, o filósofo grego aponta a necessidade de distinguir três pontos de vista a respeito de cada paixão - quem a sentiria, contra quem, em quais circunstâncias - e realiza a descrição desses sentimentos sempre em função da idade (juventude, maturidade, velhice) e da condição social dos homens que potencialmente podem experimentá-los. Como se pode perceber, a abordagem do tema não é psicológica e subjetiva, mas social e “objetiva”. Segundo Barthes (1975), a psicologia de Aristóteles representa a reprodução do senso comum, do imaginário popular. Assim, não se trata das paixões como elas são, mas de como o público crê que elas são e se manifestam e, a partir daí, de como utilizar esse conhecimento para despertar no auditório as paixões desejadas e alcançar os resultados pretendidos. O estudo das paixões revela-se objetivo na medida em que o autor, ao investigar cada uma das paixões a partir de um conjunto de questões fixas, busca uma coerência, uma lógica interna para elas.

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« Comment définir ce pathos? Le mot grec, dont le latin donnera plusieurs équivalents, et notamment

perturbatio, adfectus, ou motus animi, désigne l’état de l’âme, sa disposition, en particulier lorsqu’elle est

agitée par quelque cuase extérieure; la qualité d’une substance ou sa propriété; mais aussi un événement qui se produit, un changement, une altération » (CASTELLANI, 2000, p. 49).

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Segundo afirmação da própria autora, a comparação estabelecida entre éthos e páthos toma como base a

A prova do páthos constrói-se a partir de um jogo de representações envolvendo a imagem que o orador possui de seu auditório e aquela que acredita que este possui dele. Partindo desses simulacros, o destinador, visando a persuadir os seus destinatários, desenvolve argumentos específicos de maneira peculiar. Assim, a transmissão e a captação das paixões relaciona-se diretamente à imagem do enunciador, sobretudo à sua corporalidade, como indica a seguinte passagem: “segue-se que necessariamente os que animam suas palavras com gestos, vozes, vestimentas e, em geral, com a capacidade teatral são mais dignos de compaixão” (Retórica, II, 1386a). A corporalidade parece ser uma instância privilegiada para o estudo do páthos, pois os sentimentos se expressam, em grande medida, pelo corpo. O impaciente movimenta-se sem parar; o amedrontado empalidece; o envergonhado enrubesce; etc.

Assim como o éthos, o páthos também possui uma natureza tridimensional (as emoções constroem-se no discurso, pela imagem do orador). Discorrendo sobre o tema, Castellani (2000, p. 178-179) enfatiza a intrínseca relação entre éthos e páthos. Para a pesquisadora, as virtudes morais impõem limites às paixões, funcionando como “rédeas”.

Muitos estudiosos da Retórica Antiga, como Eggs (2005) e Meyer (1999), ressaltam o caráter interdependente e complementar das três provas oratórias (logos, éthos e páthos) e defendem a necessidade de estudá-las de modo interligado, posição com a qual concordamos. Vale destacar, porém, que adotar essa perspectiva não significa negar a possibilidade de predominância de uma das provas no discurso.

2.4.2 Apropriações e reinterpretações do páthos

Juntamente com o resgate do conceito de éthos, as teorias do discurso têm-se debruçado, mais timidamente, é verdade, sobre a questão do páthos. Esse conceito foi retomado sobretudo a partir da década de 90 e seus estudos encontram-se ainda em fase de delimitação de fronteiras. Ressaltemos, de início, que não se trata de pesquisar sentimentos vivenciados empiricamente, mas de sua manifestação pela linguagem, como “paixões de papel”. Outro delineamento importante consiste na abordagem metodológica, pois, como se sabe, as teorias discursivas ocupam-se basicamente do discurso, podendo depreender os processos de produção ou de recepção apenas por pressuposição. Assim, “ao descrever e categorizar [...] lugares de inscrição da emoção ou da informação nos limitamos a supor que os dados apresentados representam o modo como a instância de produção se representa a instância de recepção (EMEDIATO, 2007, p. 294).

Nessa perspectiva, investiga-se a mobilização do público por meio do discurso do orador, pois, como dissemos anteriormente, este realiza suas escolhas enunciativas a partir da imagem do enunciatário, buscando prever suas reações passionais, o que faz com que seu discurso contenha muitos traços desse co-enunciador.

É preciso mencionar, ainda, algumas dificuldades acerca da depreensão do páthos no discurso. Embora alguns recursos sejam utilizados recorrentemente para exprimir emoções – intensificadores, exclamações, repetições, etc. – não existem determinações prévias de manifestação de sentimentos na linguagem. De modo semelhante, os estudos da semiótica não consideram a existência de um lugar específico da paixão no percurso gerativo do sentido, apenas indicam aqueles lugares em que podemos encontrar, com maior frequência, a sua manifestação, como as modalizações, o aspecto, os percursos temáticos, figurativos, etc. Tanto no primeiro quanto no segundo caso acima, o que temos são apenas possibilidades, que deverão ser confirmadas pelo analista. Observamos, desse modo, que, assim como o éthos, o páthos também envolve todo o ato enunciativo, e para depreendê-lo é preciso contar com certo grau de “intuição”.

Apesar das dificuldades, os estudos avançam e, aos poucos, encontram alguns consensos. Tanto a semiótica quanto a análise do discurso associam as emoções23 a um sistema de crenças e representações. As paixões não são meras pulsões instintivas, alheias à realidade social, elas se manifestam em indivíduos de acordo com seus valores, suas expectativas, etc.; assim, dificilmente poderíamos imaginar a existência de sentimentos como dó, raiva ou inveja sem esses elementos. A segunda associação significa que as paixões representam o lugar do Outro, nossa “consciência social”, o ponto de encontro do indivíduo com o mundo. Elas são reversíveis, interativas, relacionam-se à percepção que temos do outro, à que queremos que o outro tenha de nós, às respostas que produzimos à imagem que cremos que o outro faz de nós, etc, sempre em função de nosso sistema de valores. Observamos, desse modo, que, da perspectiva do discurso, as paixões resultam de contratos enunciativos.

Semioticamente, o páthos se constrói como a imagem do enunciatário do ator da enunciação. Como já foi dito, o sujeito da enunciação, responsável pelo enunciado, desdobra-se em enunciador e enunciatário. Esse sujeito é um ator, isto é, possui pelo menos um papel actancial e um papel temático, aos quais se soma, com os estudos sobre o

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Trataremos nesta pesquisa do que Charaudeau (2000) chamou de patemização, termo derivado de páthos que engloba sentimento, paixão, emoção, etc., pois consideramos que o desdobramento desses conceitos é assunto de outras áreas de conhecimento, como a psicologia ou a filosofia.

páthos, um papel patêmico, que aborda as características passionais do sujeito da

enunciação. Fiorin (2004 b, p.15) considera a apreensão da imagem desse ator da enunciação bastante relevante para a compreensão do conjunto das escolhas enunciativas:

Os atores da enunciação, imagens do enunciador e do enunciatário, constituem simulacros do autor e do leitor criados pelo texto. São esses simulacros que determinam todas as escolhas enunciativas, sejam elas conscientes ou inconscientes, que produzem os discursos. Para entender bem o conjunto de opções enunciativas produtoras de um discurso e para compreender sua eficácia é preciso apreender as imagens do enunciador e do enunciatário, com suas paixões e qualidades, criadas discursivamente

Ainda de acordo com o autor, a noção de páthos corresponde a um importante instrumento para desenvolver reflexões sobre o modo de depreender a imagem do enunciatário no discurso.

Como dissemos na introdução, esta pesquisa tem por objetivo depreender a imagem do(s) ator(es) da enunciação dos discursos da ALN e da VPR. Para atingirmos esse fim, optamos pelo uso do suporte teórico-metodológico anteriormente exposto, ou seja, tomaremos como base a semiótica greimasiana, por considerá-la uma teoria de alta capacidade heurística, mas faremos uso também de alguns conceitos de outras teorias. Acreditamos que o diálogo entre diferentes teorias, quando feito de maneira complementar, com a manutenção de uma linha teórica bem definida, pode ser uma ferramenta bastante enriquecedora para a análise.