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Doll: a punição suprema

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VI. A NOITE DE VALPÚRGIS

2. Doll: a punição suprema

Passei a acreditar que aquilo foi um erro trágico.

Deitado na cama ao amanhecer e preparando-me para mais uma imersão nos ritmos brutais doKL (alvorada, banheiro,

Dysenterie, trapo de pé, chamada, Stucke, estrela amarela, Kapo, triângulo preto, Prominenten, turmas de trabalho, Arbeit Macht Frei, banda de música, Selektion, lâminas de ventiladores, tijolos refratários, dentes, cabelo) e para enfrentar 1.000 desafios ao meu estilo reservado de comando, penso nas coisas e, sim, passei a acreditar que tudo foi um erro trágico — casar-me com uma mulher tão grande.

E também com uma mulher tão jovem. Porque a verdade amarga é…

Não desconheço, claro, o combate corpo a corpo, como demonstrei, creio, na frente iraquiana durante a Grande Guerra. Naqueles casos, entretanto, meus adversários estavam quase sempre gravemente feridos ou incapacitados devido à fome ou a doenças. E mais tarde, no meu período em Rossbach, embora houvesse escaramuças em pequena escala und so, não

aconteciam choques violentos, nenhum choque com sangue, a menos que se considere assim a história com o mestre-escola e

Parchim, e naquele caso eu gozava de uma clara vantagem numérica (5 contra 1, ne?). Seja como for, tudo isso foi há 20 anos, e desde então, na realidade, tenho sido um burocrata sentado diante de uma mesa com uma bunda que aos poucos vai suando e molhando a cadeira de encosto duro.

Não que um sujeito precise ser um gênio para entender aonde eu quero chegar. Não posso fazer o necessário — aquilo que

restauraria a ordem e a satisfação, além de segurança no emprego, àvilla alaranjada: não posso bater nela (e depois dar na

bruxa gigante uma boa bimbada no quarto). A porra da mulher é grande demais.

E a pequenina Alisz Seisser — Alisz não mete mais medo do que Paulette. Ela conhece seu lugar e recua para ele no instante em que o Sturmbannfuhrer começa a olhar feio!

“Pare já com essa choradeira. Ouça, isso acontece o tempo todo e no mundo inteiro. Não é preciso dar um espetáculo por causa disso.”

O tamborete, o banheiro químico, o caldeirão de água finalmente começando a ferver sobre o fogareiro do escritório… “Ah, Alisz, anime-se. Estamos oferecendo a você uma solução limpa. É uma coisa que você deveria comemorar… Com uma garrafa de gim e um banho quente. Nicht? Vamos, dê um sorriso… Ach. Buá-buá-buá. Tudo bem. Já passou ½ do processo. Buá-buá-buá-buá-buá. Será que você consegue se controlar sozinha, moça? Ou precisa levar outro tapa?”

Ela trouxe uma boa quantidade de equipamento, essa Miriam Luxemburg.

1o armou uma bancada portátil (parecia uma mesa cirúrgica em miniatura) e arrumou seu material em cima de um pano azul:

seringa, espéculo, pinça e uma vareta de madeira comprida que tinha na ponta um aro de metal com recortes. Os instrumentos pareciam ser de razoável qualidade e eram muito, muito melhores do que os da bolsa de ferramentas de jardinagem, aos quais

até os cirurgiões daSS de vez em quando recorrem.

“Só eu senti”, perguntei, com toda calma, “ou havia mesmo no ar, hoje, uma leve sensação de primavera?”

Um pouco aborrecida, talvez, por causa das minhas repetidas protelações do procedimento, Luxemburg deu um sorriso desanimado, e Alisz, que a essa altura estava com uma espécie de tira de couro na boca, nada respondeu (claro que fazia um bom tempo que ela não saía para o ar livre). Usando uma camiseta branca, a paciente estava deitada na cama de armar, com

toalhas servindo de colchão, com as pernas separadas e os joelhos erguidos. “Quanto tempo mesmo vai demorar?”

“20 minutos, se tudo correr bem.”

Eu tinha decidido dar o fora assim que o procedimento começasse, pois sou muito sensível a tudo que diz respeito a mulheres e seus órgãos. Mas fiquei ali enquanto Luxemburg aplicava a solução antisséptica e a anestesia local. E continuei enquanto ela realizava o processo de dilatação com o espéculo e seu efeito de pinça invertida. E permaneci durante a curetagem.

Achei minha reação muito esquisita. Busquei em meus sentidos sinais de mal-estar, mas nada encontrei.

No carro, ao levar Luxemburg de volta ao Instituto Higiênico (e lhe dar a sacola de papel que continha os 400 Davidoffs adicionais), perguntei-lhe quanto tempo demoraria para a pequena Alisz voltar a ser o que era.

* * *

Em 20 de abril, claro, comemoramos o 54o aniversário de uma certa pessoa. Uma festa meio desanimada no Rancho dos

Oficiais, com Wolfram fazendo as honras da casa como mestre de cerimônias.

“Dem Prophet der den Deutschen Status, Selbstachtung, Prestige, und Integritat restauriert!” “… Einverstanden.”

“Der Mann der seinen Arsch mit dem Diktat von Versailles abgewischt!” “… Ganz bestimmt.”

“Der Grosster Feldherraller Zeiten!”

“… Richtig.”

A única pessoa que respondia com algum entusiasmo, além de mim e do jovem Wolfram (o bom rapaz acabou meio imprestável), era minha mulher.

“Veja só”, murmurei, “você entrou no espírito da festa de aniversário.” “Entrei”, ela murmurou.

Hannah chamava demais a atenção, como sempre. Vestida como uma prostituta de rua, ela respondia às intermináveis saudações (em voz muito mais alta do que o necessário) e depois se entregava a risadas satíricas, dirigidas à solenidade circunspecta da ocasião. Fechei os olhos e agradeci a Deus: Fritz Mobius estava de licença.

“É, eu entrei no espírito do aniversário”, disse ela, “porque com alguma sorte este será o último dele. Agora, como será que esse babaca de merda vai dar fim à vida? Imagino que ele tenha algum comprimido nojento… Você sabe, guardado para tempos difíceis. Deram 1 a você também? Eles dão esses comprimidos a todos os babacas importantes? Ou você não é tão importante assim?”

“Alta traição. E sem dúvida merecedora”, retruquei com autocontrole, “da punição suprema… É o que você merece. Para parar de rir.”

Eu só quis ver a expressão no rosto dela.

Agora é aspergilose: fungo nos pulmões.

Já que a Academia de Hipismo não quer nem ouvir falar de receber Meinrad de volta, propus vendê-lo ao tropeiro schmierig, para nos livrar dele. O resultado? Santo Deus, um sem-fim de lamúrias juvenis. Nesse sentido, Sybil não é nada melhor do que Paulette. Elas praticamente passaram a morar no puxadinho imundo de Meinrad, afagando-o enquanto ele jaz de lado ali, ofegante.

Sabe de uma coisa? Eu sinto falta de Dieter Kruger!

Eu e meus muckers nos divertimos demais com ele em 1933, em sua cela em Dachau; depois disso ele se tornaria a fonte de mais diversão improvável no período 1934-40. Ach, mandei o amigo Kruger de prisão em prisão e de um campo a outro — eu o punha onde minha imaginação mandasse. Assim que a guerra se aproximou, eu o fiz aplainar dunas em Stutthof, extrair pedras em Flossenburg e trabalhar nas barreiras de argila em Sachsenhausen. Ah, eu o mantinha esfarrapado e quebrava a

cabeça para intensificar seus sofrimentos (solitária, Kommando penal, rações de fome, uma experiência médica aqui, 75 chibatadas ali). De qualquer forma, ao que parece, eu me deixei levar; exagerei, evidentemente, e deixei de gozar de crédito.

O destino de Kruger era a única coisa que exercia alguma influência sobre Hannah. Antigamente, podia-se até, a muito custo, arrancar dela, de vez em quando, uma trepada sofrida usando-se o nome do amigo Kruger. Ach, como esses estratagemas extáticos parecem distantes hoje!

Eu sinto falta de Dieter Kruger.

“Você vai ver os fogos de artifício?”, perguntou Fritz Mobius. Estávamos indo para a sala dele, passando pelos funcionários curvados sobre suas mesas. Bunker 11: Gestapo.

“As moças vão. Eu vou ver do meu jardim.”

Nenhuma referência a Hannah, nenhuma referência à disciplina conjugal: Fritz estava sério e preocupado com o assunto e pauta.

“Como foi sua licença?”, perguntei (a residência da família ficava no que tinha sobrado de um bloco de apartamentos no centro de Bremen). “Só cerveja e boliche na grama?”

“Ah, pare com isso”, ele respondeu, cansado, enquanto corria os olhos pela 1a página do relatório de Rupprecht Strunck.

“Quer dizer que esse puto é o coordenador na fábrica?”

“Exatamente. O suboficial, Jenkins, dedurou esse sujeito e depois Strunck achou o cronograma na casa de ferramentas.” “Ótimo. Ach, Paul. O apartamento está sem vidraças, sem eletricidade, sem água… Só na hora do almoço a gente acaba de organizar a cagada da manhã. É preciso caminhar 4 quarteirões para encher o balde da descarga.”

“Ja?”

“Hum. E todo mundo só fala debatatas.” Ele passou uma página e sublinhou alguma coisa. “Minha mulher me enche o saco

querendo que eu me vire em… batatas. A mãe dela é a mesma coisa. E a irmã. Batatas.” “Batatas.”

“E no abrigo, Jesus Christus, você precisava ver o jeito como eles olham para os sanduíches dos outros. Elescomem co

os olhos, Paul. Hipnotizados. É patético.” Mobius bocejou. “Tentei descansar um pouco. Até parece… Vamos lá.”

Mobius seguiu na frente, descendo os degraus de pedra, que rilhavam, para o subsolo do 2o nível.

“E há quantos dias esse cavalheiro está sob nossos cuidados?” “Ah, 6 dias”, respondi. “Quase uma semana.”

“Isso mesmo, Paul”, ele disse por cima do ombro (eu podia adivinhar que ele estava sorrindo), “6 dias são quase uma

semana. E então? Quem foi a pessoa da Farben que deu a ele o cronograma de 1o uso?”

“Ele não diz.”

Fritz parou de repente, fazendo o degrau rilhar ainda mais. “O que você quer dizer com ele nãodiz? Entendo que já jogara

os cachorros nele, não é? E o eletrodo na racha?” “Ja, ja.”

“É mesmo? E Entress?”

“Naturlich. Entress esteve com ele. Duas vezes. Horder disse que esse puto é um masoquista. Bullard. Bullard parece que gosta do que fazem com ele.”

“Ah, Deus tenha piedade de nós.”

Mobius correu os ferrolhos. Na cela havia 2 homens, Michael Off meio adormecido num tamborete, com um lápis na boca, e Roland Bullard deitado de lado no chão. Notei, fascinado, que a cabeça de Bullard parecia uma romã cortada ao meio.

Mobius suspirou e disse: “Excelente trabalho, Agente”. Suspirou de novo. “Agente Off, um homem que esteve na cela surda

por 72 horas, um homem que por duas vezes sentiu o toque do bisturi do professor,no rosto. O senhor pode ficar de pé ao menos quando fala comigo?” não vai ver a luz por causa de mais 1 chute

“Ortsgruppenleiter!”

No meu modo de entender, Fritz estava se expressando muito bem. Um homem que… “Alguma imaginação? Um pouco de criatividade, Off? Ah, não.”

Com a ponta da bota, Mobius cutucou o capitão Bullard debaixo do braço.

“Agente. Vá à Kalifornia e me traga de lá alguma Sarinha bem bonitinha. Ou você já fez tanta merda que nemenxerga mais?

colchão de palha. Bullard estremeceu. “Muito bem. Ele não está enxergando. Mas está escutando.”

Mais uma vez, achei o raciocínio de Fritz fundamentalmente correto. Muito bem, ele não enxerga, mas enquanto puder… “Os britânicos são irremediavelmente sentimentais. Até com os judeus. Paul, eu garanto que isso estará acabado em 2

piscadelas de olhos. Um homem como Bullard… há muito tempo deixou de se importar com o que acontececom ele.”

O que foi que encontrei no Clube dos Oficiais nesta alegre sexta-feira senão um exemplar de Der Sturmer? Na primeira

página, como de hábito, vemos uma concepção artística de como seria um ataque libidinoso de Albert Einstein a uma sonolenta Shirley Temple…

Não me canso de insistir no seguinte: Julius Streicher fez um enorme mal a tudo que há de mais judicioso no nosso

movimento, e Der Sturmer pode ser a única razão pela qual, diferentemente do plano inicial do Redentor, o antissemitismo

exterminador não “pegou” no Ocidente.

Afixei no quadro de avisos do Clube uma advertência a todos os oficiais (claro que não se pode fazer muito sobre os soldados rasos). Quem for encontrado com esse pasquim imundo vai 1) deixar de receber um mês de soldo e 2) perder a licença anual.

Somente com as mais rigorosas medidas, impostas sem medo nem favor, consigo convencer certas pessoas de que sou um homem que não volta atrás no que diz.

“Venha ao jardim, Hannah.”

Ela estava ½ enrodilhada na poltrona diante da lareira, com um livro e uma bebida, e suas Beine mais a seu lado do que sob ela, nicht?

“Venha ver os pistolões explodindo no céu. Ah, sim… Faça o favor. O KlempnerkommandofuhrerSzmul , logo ele, quer lhe

dar um presente. É seu admirador.” “Ah, é? Por quê?”

“Por quê? Você não me disse que um dia deu bom-dia a ele? É o bastante para uma pessoa do nível dele. Mencionei sem querer que era seu aniversário e ele quer lhe dar um presente. Venha, está agradável aqui fora. Não me importo se você fumar. E preciso lhe contar uma coisa sobre o nosso amigo Herr Thomsen. Vou pegar seu xale.”

O céu tinha uma tonalidade rosa-escura comum, cor de manjar branco com um pouco de café. Lá embaixo, as chamas da fogueira subiam e rodopiavam. Percebia-se no ar enfumaçado o cheiro penetrante das batatas assadas.

“Me dizer o que sobre Thomsen?”, ela perguntou. “Ele voltou?”

Respondi: “Hannah, espero sinceramente que não tenha havido nenhum tipo de aproximação entre vocês 2. Porque ele é u traidor, e temos prova disso, Hannah. Um sabotador imundo. A mais pura escória. Ele andou destruindo algumas máquinas da maior importância na Buna-Werke”.

Percebi a carga de desagravo, feita ½ de alegria e ½ de desafogo estoico, na reação de Hannah: “Ótimo.”

“Ótimo, Hannah?”

“Isso mesmo, ótimo. Eu o admiro e o aprecio ainda mais por isso.”

“Bem, ele está em muito maus lençóis”, eu disse. “Tremo ao imaginar o que o amigo Thomsen vai enfrentar nos próximos meses. A única pessoa capaz de aliviar seus sofrimentos sou eu.”

Eu estava sorrindo, e Hannah sorriu também e disse: “Ah, claro”.

“Pobre Hannah. Sente uma atração fatal pela ralé das nossas prisões. O que aconteceu, Hannah? Você foi molestada sexualmente na tenra idade? Quando era criancinha, brincava demais com sua xoxotinha?”

“Nicht? Você não diz semprenicht ? Depois de 1 de suas piadas?”

Eu ri: “Só quero dizer que você não parece ter muita sorte com seus namorados. Vamos, Hannah. Isso poderia levar a uma investigação. Sobre você. Garanta-me uma coisa. Você se envolveu, de alguma forma, nas atividades dele? Pode jurar, com a mão no coração, que não fez nada para prejudicar o nosso projeto aqui?”.

“Obrigado por me dizer isso, Hannah. Está muito bem… Agora pare de rir. Está apreciando seu cigarro?” Eu só queria ver a expressão no rosto dela.

“Por que você pegou sua pistola?”

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