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Szmul: o caso dos meninos calados

No documento A Zona de Interesse - Martin Amis.pdf (páginas 108-111)

IV. NEVE PARDA

3. Szmul: o caso dos meninos calados

Vou fazer trinta e cinco anos em setembro. Essa oração declarativa é das mais simples, eu sei, mas contém dois erros factuais. Em setembro ainda terei trinta e quatro anos. E estarei morto.

A cada amanhecer, eu penso: “Ótimo, não foi na noite passada”. E a cada pôr do sol, eu penso: “Ótimo, não foi hoje”. Ocorre que há um elemento de infantilidade em relação à vida contingente. Existir de hora em hora é, de algum modo, pueril.

Que espantoso é dizer: não posso me defender da acusação de frivolidade. Se é frívolo, se é tolo, perdurar num paraíso de

idiotas, que dirá num inferno de idiotas.

Uma calmaria perplexa se instalou no Lager depois da derrota alemã na frente oriental. Foi como uma crise — e de novo admito o anticlímax — de constrangimento mortal. Eles se deram conta do tamanho de sua aposta na vitória: os crimes fantásticos legalizados pelo Estado, eles entenderam enfim, continuam sendo ilegais em outros lugares. Esse estado de espírito durou cinco ou seis dias, e agora não passa de uma lembrança relativamente agradável.

Há seleções em toda parte — na estação, claro, e na Ka Be, claro, mas também nos blocos, também na chamada e també no portão. No portão, os kommandos de trabalho às vezes enfrentam duas seleções por dia, na saída e no regresso. Homens com o formato de ossinhos da sorte roídos — com o formato de ossinhos da sorte roídos e sugados — estufam o peito e sae correndo.

Os alemães não podem vencer a guerra contra os anglo-saxões e os eslavos. Mas é provável que tenham tempo para vencer a guerra contra os judeus.

Doll, agora, está diferente na estação. Foi feito um esforço. Ele se mostra menos desmazelado e, com muito menos frequência, evidentemente bêbedo ou de ressaca (ou ambas as coisas). Sua dicção (isto é estranho) se tornou mais confiante e sua linguagem também está mais floreada. O que eles podem fazer a não ser aumentar o volume da insanidade? Doll passou por um novo processo de convencimento; comungou com seu eu mais profundo e descobriu que, sim, matar todos os judeus é a

coisa certa a fazer.

Os Sonders padeceram de Seelenmord — a morte da alma. Entretanto, os alemães também sofreram desse mal; eu sei; não poderia ter sido de outro modo.

Não tenho mais medo da morte, embora ainda tenha medo do processo da morte. Tenho medo de morrer porque vai doer. Isso é tudo o que me prende à vida: o fato de que deixá-la vai doer. Causará dor.

A experiência me diz que morrer nunca dura menos de cerca de sessenta segundos. Mesmo quando se trata de um tiro na nuca e a pessoa cai como uma marionete cujos cordéis foram cortados, o processo real de morte nunca dura menos que cerca de sessenta segundos.

Eu ainda tenho medo desse minuto de assassinato.

Quando Doll voltou a me procurar, eu estava no necrotério, supervisionando o Kommando de barbeiros e o Kommando oral. Os homens do Kommando de barbeiros trabalham com tesouras; os do Kommando oral com um formão ou um martelo pequeno, mas pesado, numa das mãos, e, para controlar o maxilar e a mandíbula, um gancho rombudo na outra. Sentado nu

“Sonderkommandofuhrer. Venha cá.” “Senhor.”

Com a Luger na mão, mas não erguida (como se o peso da arma baixasse sua mão direita), Doll me fez entrar, com ele atrás, no depósito onde guardamos as mangueiras, as vassouras, as escovas e a água sanitária.

“Quero que você anote uma data em seu diário.”

Se há um pedaço de salsicha à sua frente e você o come, a salsicha se torna passado. Se há uma dose de schnapps à sua frente e você a bebe, o schnapps se torna passado. Se há uma cama quente à sua frente e você dorme nela, a cama se torna passado. Se há um dia ou uma noite à sua frente, o dia ou a noite se torna passado.

* * *

Antes eu tinha um enorme respeito pelos pesadelos — por sua inteligência e nível artístico. Hoje acho os pesadelos patéticos. Como eles são incapazes de evocar, mesmo que remotamente, qualquer coisa tão terrível quanto o que eu faço o dia

todo, eles pararam de tentar. Hoje só sonho com limpeza e comida.

“… Trinta de abril. Anote isso em sua mente, Sonderkommandofuhrer. Walpurgisnacht.” Hoje é 10 de março. É como se me tivessem concedido a vida eterna.

“Onde?”, ele continua. “No Chalezinho Pardo? No Muro das Lágrimas? E por quanto tempo? Mil horas? Mil e quatrocentas? E de que jeito?… Você parece oprimido, Sonder, por todas essas escolhas.”

“Senhor.”

“Por que você simplesmente não confia em mim?”

É provável que no passado esses homens, osSS Cabeça de Morto, fossem muito comuns, noventa por cento deles. Comuns,

desinteressantes, banais, corriqueiros — normais. Antes eles eram muito comuns. Agora, porém, não são mais.

“Você não está indo embora de mão beijada, Sonder. Você vai ter de fazer um serviço para mim antes de se despedir. Não se preocupe. Deixe tudo com o Kommandant.”

Naquele dia fazia tanto frio em Chełmno que nossos ouvidos não escutavam nada. E talvez seja essa a causa, a explicação, do caso dos meninos calados.

Mas não. O vento zunia entre as árvores, e isso a gente ouvia. Das cinco da manhã às cinco da tarde, os guardas alemães usavam chicotes, e isso a gente ouvia. Os três caminhões utilizados para asfixiar prisioneiros não paravam de descer do Schlosslager e descarregar no Waldlager, depois voltar a subir, e isso a gente ouvia.

Em 21 de janeiro de 1942, a quantidade foi tão grande que aSS e a Orpo escolheram outros cem judeus para ajudar os

Sonders a arrastar os cadáveres para as covas comuns. Esse Kommando suplementar era formado por meninos adolescentes. Não lhes deram nem comida nem água, e eles trabalharam por doze horas — sob açoites, nus na neve e na lama endurecida.

Quando a tarde começou a escurecer, o major Lange levou os meninos para junto dos buracos e os baleou um a um — e isso a gente ouvia. A partir de certo ponto, ele ficou sem munição e passou a bater a coronha da pistola no crânio deles. E isso a gente ouvia. Mas os meninos, se acotovelando e disputando entre si para serem o próximo, não emitiam um som.

E depois disso, is to.

“Ela tem cabelo preto, a sua mulher, com uma faixa branca no meio. Como um gambá. Nicht?” Dou de ombros.

“Ela está trabalhando e sendo paga pelo que faz, a sua Shulamith. É uma costureira hábil e enfeita as fardas da Wehrmacht com suásticas. Na Fábrica 104. À noite, volta para o sótão em cima da padaria na rua Tlomackie. Não é isso, Sonder?”

Dou de ombros.

“Ela vai ser apanhada em 1o de maio. Databoa essa, Sonder: o terceiro aniversário do fechamento do cortiço judeu”, diz

ele, mostrando seus dentes superiores de animal. “Ela será apanhada em 1o de maio e acabará vindo para cá. Você está

impaciente para ver sua Shulamit?” “Não, senhor.”

“Bem, eu vou poupar você. Estou ficando um velho bobo e sentimental. Vou fazer com que a matem naquele dia em Łódź. 1o

de maio. Isso vai acontecer, a menos que eu revogue minha ordem naquela manhã. Entendido?” “Senhor”, eu digo.

“Diga-me uma coisa. Você foi feliz com sua Shulamith? Foi amor num maio eterno?” Dou de ombros.

“Hum, imagino que você teria de explicar por que, na ausência dela, passou a proceder mal. Deteriorou-se um pouco. Ach, não existe nada pior do que o desprezo de uma mulher. A sua, Shulamith, é uma mocetona, não é? Shulamith gostava de foder com você?”

O dia 31 de agosto de 1939 foi uma quinta-feira.

Ao sair da escola, caminhei para casa com meus filhos, debaixo de um sol sem jaça e não muito firme. Depois, o jantar da família foi canja de galinha e pão preto. Amigos e parentes deram uma passada rápida, e todos faziam a mesma pergunta: teríamos nos mobilizado tarde demais? Reinava uma atmosfera de muita ansiedade e até de medo (afinal, éramos a nação que, dezenove anos antes, tinha derrotado o Exército Vermelho). Houve ainda uma longa partida de xadrez e a conversa fiada de sempre, os mesmos sorrisos e olhares, e naquela noite, na cama, possuí, desafiador, minha mulher. Seis dias depois, a cidade arrasada estava cheia de cavalos putrefatos.

Quando viajei naquele primeiro transporte, supostamente para a Deutschland, esperando encontrar trabalho remunerado, levei meus filhos comigo — Chaim, de quinze anos, Schol, de dezesseis, ambos altos e corpulentos como a mãe.

Eles estavam entre os meninos calados.

E depois de tudo aquilo, isto.

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