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III. NEVE CINZENTA

2. Doll: Stucke

Se coisas miúdas podem ser comparadas com coisas grandes e se um gato pode erguer os olhos para um rei, nesse caso parece que eu, Paul Doll, como o Kommandant (o líder desse grande programa nacional de higiene aplicada), tenho certas

afinidades com quem fuma em segredo!

Vejam só Hannah. Sim, ela serve muito bem, acredito, serve à perfeição, imagino, como exemplo de quem fuma escondido. E o que Hannah e eu podemos ter em comum?

Em 1o lugar, ela precisa descobrir um local isolado para a gratificação de sua necessidade “secreta”. Em 2o, precisa

desaparecer com os sinais: sempre existe a guimba, sem dúvida manchada por algum batom berrante, a bagana, a bituca (para

ser absolutamente sincero, os cadáveres são o veneno da minha vida). Em 3o, ela se vê obrigada a enfrentar o cheiro, não só

da fumaça como também de seu resíduo, que gruda nas roupas e, em especial, no cabelo (e, no caso dela, prejudica seu hálito, pois, enquanto o aroma de um charuto caro confere autoridade aos odores internos do Cavalheiro, o fedor de um Davidoff de

vintém profana o perfume salutar da Dama). Em 4o lugar, e por último, se a honestidade for um conceito que ela ao menos

reconhece, sem esperarmos que entenda, ela tem a obrigação de explicar a si própria acompulsão de fazer o que faz —

tresandar a sarro e se sentir culpada como uma putinha vagabunda saindo, repugnante, de um embate extenuante numa tarde quente…

Aqui nós 2 nos separamos, e a analogia termina. Isso mesmo, nos separamos aqui.

Porque ela faz o que faz por improbidade e fraqueza. E eu faço o que faço por retidão e força indômita!

“Você está usando a maquiagem da sua mãe.” Sybil levou a mão, depressa, ao rosto.

“Você achou que tinha lavado a maquiagem toda, não foi? Mas eu ainda estou vendo restos de ruge. Ou você está corando?” “Eu não fiz isso!”

“Não minta, Sybil. Você sabe por que as moças alemãs não devem usar cosméticos? É que isso afeta a moral delas. Elas começam a mentir. Como sua mãe.”

“Que quer dizer com isso, Vati?”

“Você está feliz com o pônei? Melhor do que uma tartaruga velha e boba, nicht?”

Mesmo o mais ardoroso nacional-socialista, creio eu, seria obrigado a admitir que a tarefa que aSS impôs a si mesma e

Kulmhof, em janeiro deste ano, constituiu um enorme risco. Yech, aquilo foi uma medida um tanto extremada, que beirou, talvez, o exagero — a Aktion que levou ao recrutamento e à indução do Sonder, Szmul. Até hoje, o incidente é um tanto quanto

famoso; as pessoas acham que ela constitui uma rara curiosidade comportamental, quem sabe a 1a de sua natureza.

Informalmente, nós a chamamos de o caso dos meninos calados.

(Lembrete: a mulher de Szmul continua em Litzmannstadt. Descobrir onde.)

A propósito, se ainda existem alguns fantasistas que de alguma forma se solidarizam com nossos irmãos hebreus, eles deveriam examinar com cuidado — como fui obrigado a fazer (em Varsóvia, em maio passado) — os Bairros Judeus nas cidades da Polônia. Observar essa raça em massa, e entregue a si mesma, afugentará qualquer sentimentalismo humanitário, e também bastante pronunciado, como não é de espantar. Aparições de pesadelo, indigentes abjetos, homens e mulheres indistinguíveis uns dos outros superlotam as vias públicas coalhadas de cadáveres. (Como pai carinhoso, achei particularmente difícil aguentar a forma como negligenciam as crianças seminuas que gritam, suplicam, cantam, gemem e

tremem, amarelas como pequeninos leprosos.) Em Varsóvia ocorre uma dúzia de novos casos de tifo todas as semanas, e do ½ milhão de judeus, cerca de 5-6.000 morrem todos os meses, tamanha é a apatia, a degeneração e, para ser bem franco, a ausência sequer de rudimentos de amor-próprio.

Para desanuviar, vou descrever um pequeno incidente com o qual eu e meu companheiro de viagem (Heinz Uebelhoer, um

encantador “jovem turco” do gabinete do Reichsfuhrer-SS) demos um jeito de aliviar o clima pesado. Estávamos no cemitério

udeu, conversando com o famoso cineasta Gottlob Hamm (ele estava fazendo um documentário para o Ministério da Propaganda), quando chegou um ônibus da Kraft durch Freude, e toda a Jugend desembarcou. Bem, Gottlob, Heinz e eu interrompemos o ofício fúnebre que estava em andamento para tirar algumas fotografias. Procuramos produzir algumas cenas mais artísticas: sabe como é, Judeu Idoso Contempla o Cadáver de uma Menina. Os colegiais da Força pela Alegria riam às gargalhadas (contudo, esses “instantâneos” infelizmente vieram à luz enquanto eu estava visitando Hannah em Abbey Timbers, e isso causou muita encrenca. Moral da história: nem todo mundo é abençoado com “senso de humor”).

No entanto, no entanto… A mulher de Szmul está borboleteando pelas ruas de Litzmannstadt — ou “Łódź”, como os

poloneses chamam a cidade (pronunciando o nome comoUudje, ou alguma coisa assim).

Shulamith pode vir a ser necessária.

Acho que vou enviar uma comunicação ao chefe do Conselho Judeu de lá, cujo nome — onde foi que pus aquele relatório? — é “Chaim Rumkowski”.

É claro que este otário aquiteve de ir a Katowice em busca de mais restos de óleo queimado. Fui lá (com 2 guardas) no

meu Steyr 600 de 8 cilindros, a diesel, encabeçando um comboio de caminhões.

Terminado o negócio, tomei um chá da tarde na sala do nosso empreiteiro civil, 1 certo Helmut Adolzfurt, um Volksdeutscher de meia-idade (com seu pincenê e seu bico de viúva). Depois, como sempre, Adolzfurt trouxe uma garrafa e tomamos uns goles. De repente, ele disse o seguinte:

“Sturmbannfuhrer. O senhor sabe que mais ou menos das 6 da tarde até as 10 da noite, aqui na cidade, ninguém consegue engolir nada?”

“Mas por quê?”

“Porque a essa hora o vento vira e passa a soprar do sul. Por causa do cheiro, Sturmbannfuhrer. O cheiro vem do sul.” “Até aqui? Ah, impossível”, respondi, com um riso despreocupado. “São 50 quilômetros.”

“Essas janelas têm vidraças duplas. São 20 para as 7. Vamos lá fora. Por aqui, por favor.”

Descemos a escada e saímos para um pátio (onde meus homens estavam quase terminando o trabalho). Perguntei em voz

alta: “É sempre assim tão forte?”.

“Há um mês estava pior. Agora melhorou um pouco porque está mais frio. Qual é acausa disso, Sturmbannfuhrer?”

“Bem, a verdade, Adolzfurt”, respondi (porque estou acostumado a pensar depressa), “a verdade é que temos na estação agrícola uma criação de porcos bastante grande, e houve uma epidemia. De septicemia suína. Causada por vermes. Por isso não tivemos alternativa, entende, senão matar e incinerar. Nicht?”

“Todo mundo está comentando, Sturmbannfuhrer.”

“Bem, então conte isso a todo mundo. Sobre a criação de porcos.”

O último tanque de benzeno estava sendo posto num caminhão. Fiz um gesto, indicando aos motoristas que estávamos de saída. Logo depois, paguei os 1.800 zlotys, recebendo em seguida o recibo correspondente.

Na volta, enquanto os guardas cochilavam (eu mesmo, é claro, dirigia o veículo prestigioso), a todo instante eu desviava o carro para a margem da estrada, metia a cabeça para fora e procurava sentir o cheiro. Estava tão ruim como sempre, e só piorava cada vez mais…

Eu me sentia como se estivesse num desses sonhos asquerosos que todos nós temos de vez em quando — aqueles sonhos e que parece que nos transformamos num gêiser espumante de imundície quente, como uma estupenda descoberta de petróleo, e a sujeira não para de jorrar e se amontoar por toda parte, por maiores que sejam nossos esforços.

“Eles passaram 2 ou 3 minutos conversando, Herr Kommandant. No cercado atrás da fazenda.”

Ele se referia à escola de equitação. Meu Kapo, Steinke (um assassino trotskista na vida civil), se referia à escola de equitação — a Academia de Hipismo… Portanto, 2 encontros: nas Cabanas de Verão e na Academia de Hipismo. E agora 2

cartas.

“Você quer dizer a escola de hipismo. A Academia de Hipismo, Steinke. Jesus, isto aqui está um forno… Eles conversavam à vista de todo mundo?”

“Isso mesmo, Herr Kommandant. Havia muita gente por perto.”

“E você diz que eles só conversaram. Houve alguma passagem de documentos de uma mão para outra?” “Documentos? Não, Herr Kommandant.”

“Material escrito?… Houve. Veja bem, você não está olhando com atenção suficiente, Steinke. Houve, sim, transferência de

material escrito. Só que você não viu.”

“Eu perdi os dois de vista por alguns segundos, quando todos aqueles cavalos passaram, Herr Kommandant.”

“Certo. Bem, em escolas de equitação os cavalos passam”, eu disse. “Steinke, você viu os letreiros que os doidos usa

aqui? Que dizemdumm? Ou então Ich bin ein Kretin? Acho que devemos encomendar 1 desses para você.” É, e aproveitando

a oportunidade, 1 também para o Prufer. “Steinke, em escolas de equitaçãoexistem cavalos… Escute uma coisa. De agora e

diante, não se preocupe com ele. Vigie só ela. Klar? “Sim, Herr Kommandant.”

“Como foi que eles se cumprimentaram?” “Com um aperto de mão.”

“Com um aperto de mão, Herr Kommandant. E como se despediram?” “Com um aperto de mão, Herr Kommandant.”

Fomos para um canto quando um grupo de poloneses (implausivelmente sobrecarregados) passou por nós. Steinke e eu estávamos em 1 dos armazéns anexos ao curtume. É ali que ficam as quinquilharias dos evacuados antes de eles sere eliminados e usados como combustível, na fornalha do curtume — sapatos de papelão, bolsas de plástico, umas porcarias de uns carrinhos de bebê feitos de madeira, e assim por diante.

“Quanto tempo duraram os 2 apertos de mão?”

“O 2o foi mais longo do que o 1o, Herr Kommandant.”

“Quanto tempo durou o 1o?”

Embora eu seja indiferente a todos os aspectos da “decoração de interiores”, sempre soube usar bem uma caixa de ferramentas. Trabalhando sozinho na primavera deste ano, enquanto Hannah se demorava em Rosenheim, completei com êxito

um projeto que eu acalentava: a instalação de um cofre na parede do quarto de vestir do 1o andar. É claro que posso usar o

armário com chave do meu escritório (e sempre há a caixa-forte doEAP). Entretanto, a função desse cofre no andar de cima é

bem diferente. Sua face visível, com fechaduras e alavancas, é pouco mais do que uma fachada. Ao abri-lo, o que se vê? Um espelho de duas faces que permite uma visão parcial do banheiro. A verdade é que com o passar dos anos, minha mulher se tornou um pouco tímida fisicamente, o que foi de lamentar, pois gosto de vê-la trajada como nasceu — como decerto é meu

direito conjugal. Peguei esse “vidro especial” (e esse é omot juste, nicht?) no Bloco 10, onde ele era empregado para

aprimorar o monitoramento de certas pesquisas médicas. Uma placa estava sem uso e pensei: Epa, vou ficar com ela. Bem, ontem Hannah tinha acabado de voltar da Academia de Hipismo (o pônei), e lá estava eu, em posição de sentido para o espetáculo da noite. Normalmente, Hannah abre as torneiras e em seguida se despe sem atentar muito para o que está fazendo. Enquanto ela espera a banheira encher, curvando-se repetidamente para verificar a temperatura da água — essa é a melhor parte (também vale a pena vê-la sair da água, embora ela tenha o hábito irritante de se enxugar junto do toalheiro térmico, que não fica à vista). Mas ontem não foi assim… Ela entrou, trancou a porta, se recostou nela, tirou o vestido pela

cabeça e pegou na calcinha 3 folhas de papel azul-claro. Leu atentamente o que diziam; em seguida, leu-as pela 2a vez; não

satisfeita, leu-as de novo. Por um instante, pareceu devanear. Depois foi para a esquerda, rasgando a carta em pedacinhos; deu descarga na privada e, depois do intervalo necessário, deu uma nova descarga.

Enfrento agora o dever de registrar uma verdade desagradável. À medida que Hannah lia, seu rosto 1o revelou horror, a

seguir uma concentração perplexa, até… Perto do fim, a cada vez, sua Hand livre tocava a Kehle, mas depois de algum tempo descia um pouco e parecia afagar a área do Brust (além disso, seus Schultern achavam-se tensos e voltados para dentro). Pode-se facilmente imaginar o que eu, como marido, senti ao ser confrontado com isso. E não ficou nisso. Apesar do fato

óbvio de que ela estava excitada — apesar dos óbvios efeitos que os fluidos femininos tinham provocado nela (as umidades, as estimulações, os rebrilhos secretos) —, Hannah não teve a decência de tomar banho.

E desde então ela tem esta expressão no rosto. Satisfeita, serena: numa palavra, insuportavelmente orgulhosa. Ademais, está

fisicamente florescente. Está com a expressão que tinha no 3o mês de gravidez. Cheia de força.

Mobius, da Politische Abteilung, considera que devemos fazer alguma coisa a respeito dos poloneses. “Quantos poloneses?”

“Ainda não determinamos. Eu diria que na faixa de 250.” Bateu na pasta que estava em sua mesa. “Um trabalho de envergadura.”

“250.” A quantidade não me pareceu grande — mas a essa altura eu me sentia quase demente com os números astronômicos que Szmul me transmitira na Campina. “É, parece mesmo bastante amplo.”

“E de certa forma é culpa nossa.”

“Como foi que você chegou a essa conclusão?”

“Aquelas coisas no curtume.” Ele suspirou. “Um pouco de ingenuidade, não é?” “Desculpe, meu caro, mas não estou entendendo.”

“Todas aquelas miudezas que nunca deveriam ter saído da Kalifornia.” “Que miudezas?”

“Vamos, Paul… Acorde.” A seguir ele disse com energia: “Aquelas porcarias produzidas pela pacificação da área em

torno de Lublin. Roupas de camponeses. Chinelinhos. Rosários grosseiros. Missais”.

“O que são missais?”

“Não sei ao certo. Estou apenas citando palavras do relatório de Erkel. Algum tipo de porcaria de livro de orações, acho. Eles são muito católicos lá. Você já viu o estado desses homens? É um escândalo. Como foi que deixamos isso acontecer?”

“Prufer.”

“Prufer. Isso não pode esperar. Do jeito que a situação está, vai ser uma operação delicada. Eles não são judeus, Paul. Não são velhinhas e menininhos.”

“Eles sabem, os poloneses?”

“Ainda não. Têm suas suspeitas, é claro. Mas não sabem.” “O que eles esperam que aconteça?”

“Que vão apenas ser dispersados. Mandados a um lugar ou outro. Mas é tarde demais para isso.” “Pois bem. Me passe a lista esta noite. Certo?”

“Zu befehl, mein Kommandant.”

Detentor de 2 Cruzes de Ferro (2a classe e 1a), tenho plena certeza de minha virilidade, obrigado, e não preciso de

gabolices nervosas sobre a força da minha libido. No que tange aos desejos carnais, como em tudo o mais, sou completamente normal.

A trágica frigidez de Hannah se revelou logo no começo do nosso casamento, pouco depois que a mandei a Schweinfurt para nossa lua de mel (antes disso eu tinha atribuído sua falta de receptividade, à medida que nossa intimidade crescia, a

questões médicas, que não prevaleciam mais). Eu culpava Dieter Kruger. No entanto, confrontava o desafio à minha espera com o proverbial e autoconfiante otimismo da juventude (ou da relativa juventude, pois eu tinha 29 anos). Estava seguro de que, com o tempo, ela começaria a responder à minha delicadeza, à minha sensibilidade e à minha extraordinária paciência — um estoicismo fortalecido pela pureza do meu amor. No entanto, ocorreu outro fato.

Nós nos casamos no Natal de 28. Passada uma semana, depois de voltarmos às cercanias de Rosenheim, a intuição de Hannah foi oficialmente comprovada: ela estava com 6 semanas de gravidez. E isso mudou tudo. Entenda, sou adepto da doutrina exposta por aquele grande escritor e pensador russo, o conde de Tolstói, que, numa obra cujo título não recordo (tinha um nome alemão, o que despertou meu interesse… Ah, lembrei! “Kreutzer”!), exorta o abandono de toda atividade

Os processos naturais de uma mulher não me deixam particularmente nauseado. Trata-se apenas de uma questão de princípio: reverência à nova vida, à formação inestimável e inviolável de um novo ser humano… Debatemos tudo isso de

maneira muito franca, e Hannah, com um sorriso tristonho, logo aceitou a superioridade de meus argumentos. Paulette e Sybil nasceram no verão de 29, para nossa imensurável alegria! E a partir daí minha mulher passou a amamentar as gêmeas, o que durou 3½ anos.

É justo que eu diga que a atmosfera entre nós tornou-se cada vez mais tensa. Por isso, na época em que as relações

conjugais deveriam enfim ser retomadas, na prática éramos — como dizer isto? — estranhos um para o outro. Aquela 1a noite,

apesar do jantar à luz de velas, das flores, da luz difusa, da música suave e de nos recolhermos cedo, aquela 1a noite esteve

longe de ser um sucesso. Depois de algumas dificuldades preludiais, eu estava por fim perfeitamente habilitado ao exercício do meu papel — Hannah, porém, mostrou-se incapaz de dominar sua tensão. Nada melhorou na noite seguinte, nem na outra, nem na terceira. Implorei-lhe que voltasse à sua medicação (ou ao menos a consultar o médico, para obter algum tipo de solução), mas em vão.

Era início de 1933. E a Revolução Gloriosa estava prestes a vir ao meu socorro. Perdoem-me se sorrio — do mesmo modo que Clio, a musa da história, deve ter sorrido ao saborear a ironia. Depois do Incêndio do Reichstag (27 de fevereiro) e da enorme quantidade de prisões que se seguiram, o próprio homem que havia trazido tal dissabor à minha alcova tornou-se a fonte de alívio erótico. Refiro-me ao amigo Kruger. Ach, mas essa é outra história.

Será de admirar que, entrementes, como um jovem saudável, com necessidades normais, eu tenha sido obrigado a satisfazê- las alhures?

Para começar, houve uma série de idílios líricos, quase edênicos, com várias… Uma batida à porta.

“Entre”, eu disse. “Ah, Humilia.” Com a lista de Mobius.

Já notou que, à noite, quando você estende a mão, meio dormindo, para ajeitar a coberta, muitas vezes percebe que precisa erguer o corpo para livrar-se dela? E isso parece exigir um enorme esforço. É algo grande, o corpo, uma coisa pesada, e é u corpo vivo, o meu corpo — tudo bem, encharcado de sono, mas estuante de vida, de vida!

“Uma manhã difícil, acho. Vamos, então, Sturmbannfuhrer?” “É, é. Estou indo por caridade.”

“Está tudo bem, mein Kommandant?”

Juntei-me a Prufer no alpendre escorregadio. Havia uma neblina cinzenta, a que se somava a neve cinzenta e fraca, mas co flocos grandes. Limpei a garganta e perguntei: “Em que Bunker estamos? Eu esqueci”.

Stanislaw Stawiszynski, Tadeusz Dziedzic, Henryk Pileski… Na noite da véspera, enquanto repassava o “cardápio” de Mobius, de vez em quando eu conseguia associar um rosto a um nome. E me dei conta de que ao menos alguns daqueles homens eram trabalhadores verdadeiramente lendários, autênticos stakhanovistas, serrarias e rolos compressores humanos, que de tempos em tempos trabalhavam um mês inteiro na mina de carvão de Furstengrube e em seguida (depois de algumas semanas assentando dormentes ferroviários) voltavam para as minas… Sentado à minha mesa no escritório, massageando a testa sob a lâmpada, comecei a ter sérias dúvidas sobre a medida proposta por Mobius e, como resultado (e também de meus outros problemas), bebi demais, muito mais do que devia de Riesling, vodca, armagnac e, sobretudo, slivovitz, e só fui para a cama às 04.07.

Por isso eu me sentia esbagaçado quando, às 06.28, ocupei meu lugar no banco a uma mesa no subsolo do Bunker 3 (tijolos vermelhos, sem janelas). Também presentes, além de Prufer, Mobius e eu: 2 Agentes da Seção Política mais os capitães Drogo Uhl e Boris Eltz. Havia também um tradutor, dos quadros da Postzensurstelle, que Prufer dispensou: os poloneses, disse, eram todos “velhos conhecidos” e entendiam o alemão muito bem… Arrumando seus papéis, Mobius me disse tranquilamente que não previa complicações. Uhl começou a cantarolar baixinho, sem abrir a boca. Eltz acendeu um cigarro e reprimiu um bocejo. Depois de algum tempo, eu me recostei no banco e consegui dar um cochilo sereno, apesar da ressaca.

Não devia ter tomado aquele Phanodorm às 05.05. Tudo que eu olhava parecia borrado e ondulado como um aquecedor emitindo calor.

Trazidos por 1 guarda armado (tudo bem, era o sargento Palitzsch, mas1 guarda armado?), os poloneses, em colunas de 5,

começaram a preencher o espaço. Eu mal conseguia acreditar nos meus sentidos. Esses Halftlinge tinham físico de urso ou gorila, com corpos e músculos que não pareciam caber nos uniformes listrados, os rostos largos estavam queimados e

sorridentes (e até usavam sapato de verdade!). Pareciam exercer um efeito galvânico e carregado deesprit — como uma

excepcional brigada motorizada de Waffen (e um setor do meu coração desejou, como era de se esperar, mas por pouco tempo, comandá-los em combate). O número deles não parava de crescer, em silêncio: 100, 200, 250, 300, e a eles se seguiu — dá para acreditar? — outro solista casual, o detestado “ex-polonês” e colaborador de longa data, o Lageraltester Bruno

Brodniewitsch!

Mobius fechou a cara e assentiu com a cabeça. “Strammstehen!”, disse, batendo sua pasta no tampo da mesa. “Primeiro, o Kommandant vai dizer algumas palavras.”

Isso para mim foi novidade. Olhei para eles. Nós, oficiais, estávamos armados com nossas Lugers, é claro, e Palitzsch e Brodniewitsch tinham submetralhadoras no ombro. Mas eu sabia, com certeza, que, se aquele batalhão de brutamontes sentisse o cheiro do perigo — só precisavam de um tremor —, nenhum alemão sairia vivo dali.

No documento A Zona de Interesse - Martin Amis.pdf (páginas 63-76)