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Esther: perdida em recordações

No documento A Zona de Interesse - Martin Amis.pdf (páginas 148-150)

VI. A NOITE DE VALPÚRGIS

1. Esther: perdida em recordações

Mais ou menos cronologicamente…

Szmulek Zachariasz parou de viver mais ou menos às seis e quarenta e cinco de 30 de abril de 1943 — uma hora depois da minha prisão.

Roland Bullard levou uma bala na nuca no Primeiro de Maio.

Fritz Mobius sofreu um ataque cardíaco fatal no dia 1o de junho, ao fim de um interrogatório que durou a noite toda.

Seis semanas depois, em 12 de julho, Boris Eltz foi morto no dia que marcou a derrota alemã em Kursk: um combate de treze mil tanques num campo de batalha do tamanho do País de Gales. Seu Panther, desvairado, não passava de uma bola de

fogo no momento em que ele o lançou de lado contra dois T-34 russos; ele recebeu a medalha póstuma pour le mérite.

Wolfram Prufer, com dois outrosSS, foi agredido até a morte com pedras e picaretas na revolta do Sonderkommando de 7

de outubro de 1944.

Konrad Peters estava entre os cerca de cinco mil suspeitos presos pelo atentado malogrado de 20 de julho de 1944; estava também entre os cerca de doze mil prisioneiros que morreram de tifo em Dachau nos quatro primeiros meses de 1945.

Tio Martin, Martin Bormann — bem, passaram-se vários anos até os fatos serem finalmente comprovados. Ele foi ferido por uma granada de artilharia russa (depois ingeriu cianureto) ao tentar fugir da Chancelaria em Berlim, nas primeiras horas

de 1o de maio de 1945, depois do suicídio conjunto dos recém-casados e da posterior incineração do casal, que ele

supervisionou (com Goebbels). Foi condenado à mortein absentia em 1o de outubro de 1946.

Ilse Grese foi enforcada na Prisão Hamelin, na Zona Britânica, em 13 de dezembro de 1945. Tinha vinte e dois anos. Durante toda a noite, cantou em voz alta “Horst Wessel Lied” e “Ich Hatt’ einen Kameraden”. Sua última palavra (pronunciada

“languidamente”, segundo seu carrasco, Pierrepoint, que também cuidou do lorde Haw-Haw), foiPaul Doll foi rebaixado em junho de 1943, passando a ocupar um cargo burocrático na Inspetoria de Campos de schnell . Depressa.

Concentração, em Berlim (que vinha sendo bombardeada todas as noites e, logo mais, todos os dias e todas as noites), e posteriormente renomeado Comandante em maio de 1944. Capturado em março de 1946, foi julgado em Nuremberg e entregue

às autoridades polonesas. Como parte de sua declaração final, Doll escreveu: “Na solidão de minha cela, cheguei à amarga

conclusão de que pequei gravemente contra a humanidade”. Foi enforcado do lado de fora do Bunker 11, no Kat ZetI, em 16

de abril de 1947.

O professor Zulz e o professor Entress estavam entre os médicos nazistas julgados na União Soviética no começo de 1948 e sentenciados ao “quarto” — vinte e cinco anos nos campos de trabalho escravo do Gulag.

Treze executivos e gerentes daIG Farben (não incluindo Frithuric Burckl) foram condenados em Nuremberg em julho de

1948. Suitbert Seedig foi condenado a oito anos de prisão por escravidão e assassinato em massa. Rupprecht Strunck, tirado de sua aposentadoria precoce (iniciada em setembro de 1943), recebeu uma sentença de sete anos de reclusão por pilhagem e destruição de provas, escravidão e assassinato em massa. A Buna-Werke jamais produziu um só quilograma de borracha sintética nem um único mililitro de combustível sintético.

Alisz Seisser contraiu tuberculose óssea e, em janeiro de 1944, foi transferida para o campo de Theresienstadt, perto de Praga (um campo que de vez em quando recebia melhoramentos na linha das “aldeias Potemkin”). É bem possível que ela tenha sobrevivido à guerra.

O destino de Esther Kubis, ao menos para mim, é desconhecido. Ela não se deixará derrotar , Boris costumava dizer. Ela é

audaciosa, e por fim seu espírito se recusará a se dobrar a eles . Com frequência ele citava a primeira coisa que ela lhe

Eu a vi pela última vez em 1o de maio de 1943. Estávamos num Bloco fechado, só nós dois. Eu esperava transporte para outro campo (que acabou sendo Oranienburg); Esther cumpria as últimas horas de um confinamento de três dias (sem comida nem água) por não ter arrumado a cama, ou não tê-la arrumado de acordo com as normas — Ilse Grese era muito exigente na arrumação das camas.

Conversamos por quase duas horas. Falei a Esther da promessa que Boris arrancara de mim (fazer tudo o que eu pudesse por ela), promessa que não havia mais como eu cumprir (não tinha nada a lhe dar, nem mesmo meu relógio de pulso). Ela

escutou minhas recomendações com uma atenção genuína, achei — porque agora eu estava, evidentemente, do lado errado do Reich. Tampouco corrigi sua silenciosa inferência de que também Boris, talvez, não fosse tudo o que parecia ser.

“Esther. Este pesadelo louco vai acabar”, concluí, “e a Alemanha vai perder. Mantenha-se viva para ver isso com seus próprios olhos.”

Depois disso cochilei, pois tivera uma noite longa e repetitiva, mas não especialmente brutal, no Departamento Político. Durante as seis primeiras horas, tive a companhia de Fritz Mobius, que, apesar de uma profusão de gritos inacreditavelmente vociferantes (a fúria alemã milenária não era simulada, não era teatral), não usou de força. Na troca de turno, à meia-noite, Paul Doll passou por ali. Ele me pareceu claramente tenso e furtivo, mas deu um jeito de me estapear algumas vezes, como se levado por um espontâneo desgosto patriótico, e me socou o estômago (esmurrando-me um pouco acima do plexo solar). Dali até a madrugada, foi a vez de Michael Off, que fez um pouco mais da mesma coisa; parecia que alguém tinha dito a eles que não deveriam deixar marcas.

Isso foi curioso. O aspecto de Doll me lembrou um minerador de carvão deixando seu turno. Em sua túnica e nas perneiras, reluziam pintinhas brilhantes e, nas costas, havia um caquinho do tamanho de uma moeda. Um caquinho de espelho.

Mobius, Doll, Off — todos eles gritavam, berravam a mais não poder. De forma vaga e confusa, fiquei imaginando se a história do nacional-socialismo poderia ter se desdobrado em alguma outra língua…

Quando acordei, Esther estava de pé diante da janela, com os antebraços apoiados no peitoril. Era um dia de uma luminosidade excepcional, e me dei conta de que ela estava olhando para as montanhas da região dos Sudetos. Tinha nascido e fora criada, eu sabia, nos Altos Tatras, cujos picos eram perpetuamente cobertos de gelo refulgente. Visto de perfil, seu rosto exibia uma testa franzida e um meio sorriso; ela estava tão perdida em recordações que não ouviu a porta ranger e se abrir às suas costas.

Hedwig Butefisch entrou no Bloco. Deteve-se e dobrou os joelhos, quase se agachando. Moveu-se em silêncio para a frente, dando um beliscão numa das coxas de Esther — sem nenhuma maldade, longe disso, mas de brincadeira, com força suficiente apenas para assustá-la.

“Você estava sonhando!” “E você me acordou!”

Por alguns segundos, elas se engalfinharam, fazendo cócegas uma na outra, dando gritinhos e risadas. “ Aufseherin!”, gritou Ilse Grese da porta.

Imediatamente as duas jovens se recompuseram e se endireitaram, muito sérias, e Hedwig conduziu sua prisioneira para o ar livre.

No documento A Zona de Interesse - Martin Amis.pdf (páginas 148-150)