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Gerda: o fim do nacional-socialismo

No documento A Zona de Interesse - Martin Amis.pdf (páginas 150-154)

VI. A NOITE DE VALPÚRGIS

2. Gerda: o fim do nacional-socialismo

“Tente beber um pouco disso, minha tia querida. Eu seguro. Assim.”

“Obrigada, Neffe. Obrigada. Neffe, você está mais magro. Mas quem sou eu para dizer isso…” “Ah, mas eu estou como o trovador, Tantchen. Faminto de amor.”

“Me passe isso. O que você falou? Ah, Neffe… Boris! Euchorei por você, Golo, quando soube.”

“Não chore, Tante. Senão eu choro também.”

“Chorei por você. Vocês eram mais que irmãos, você sempre disse.” “Não chore, Tante.”

“Pelo menos eles fizeram um barulho e tanto na ocasião. Aliás, ele era tão fotogênico… Heinie está bem?” “Heinie está ótimo. Todos estão muito bem.”

“Hum… Menos Volker.”

“Bem, é.” Volker, um menino, era o nono filho dela (se Ehrengard fosse incluído). “Volker está meio indisposto.” “Porque este lugar é muito insalubre!”

O lugar era Bolzano, nos Alpes italianos (estávamos na primavera de 1946). Meus Bormanns remanescentes tinham tido um destino pouco promissor: estavam num campo de concentração alemão (chamado Bozen de 1944 a 45). Mas ali não havia trabalho escravo nem surras de açoites e cassetetes, não havia fome nem assassinatos. Cheio de refugiados políticos, prisioneiros de guerra e outros internos que aguardavam avaliação, o campo era agora italiano. A comida, embora nada abundante, era apetitosa, as condições sanitárias razoáveis, e havia muitas irmãs de caridade e padres entre os cuidadores. Gerda achava-se no hospital de campanha do campo; Kronzi, Helmut, Heinie, Eike, Irmgard, Eva, Hartmut e Volker estavam

numa espécie de galpão militar próximo.“Os americanos trataram a senhora mal, Tante?”, perguntei.

“Trataram. Trataram-me mal, Golo, e como. Muito mal. O médico, o médico… Não eu, Neffe, mas omédico… disse a eles

que eu precisava fazer uma operação em Munique. Toda semana um trem vai para lá. E um americano disse: Esse trem não é

ara nazistas, é para as vítimas deles!”

“Isso foi cruelmesmo, minha querida!”

“E eles acham que eu sei onde ele está!”

“Eles acham isso? Hum… Bem, se ele conseguiu fugir, pode estar em qualquer lugar. Na América do Sul, aposto. No Paraguai. No Paraguai, que não tem saída para o mar, deve ser. Ele vai mandar notícias.”

“E você, Golo? Trataram você mal?”

“Os americanos? Não, me deram um emprego… Ah, os alemães. Não, não muito. Estavam morrendo de vontade de me tratar mal, Tante. Mas o poder do Reichsleiter foi importante até o fim. Da mesma forma que os pacotes lindos que você me mandava.”

“Talvez isto não seja o fim.”

“É verdade, minha querida tia. Mas é o fim de todo o poder dele.”

“O Chefe, Neffe. Morto comandando tropas na defesa de Berlim. E agora ele se foi. O fim do nacional-socialismo. Isso é

muito difícil de suportar. O fim do nacional-socialismo! Não percebe? É a isso que meu corpo estáreagindo.”

Na noite seguinte, ela perguntou com ar aflito: “Golo, você ainda é rico?”.

“Não, minha querida. Perdi tudo. Tudo menos uns três por cento.” O que, na verdade, estava longe de ser nada. “Pegaram o que eu tinha.”

“Ah… Bem, você vê… Assim que os judeus sentem o cheiro de alguma coisa como… Por que o sorriso?” “Não foram os judeus, querida. Foram os arianos.”

Ela afirmou, tranquila: “Mas você ainda tem os seus quadros eobjets d’art ”.

“Não. Eu tenho um Klee e um Kandinsky pequenininho mas muito bonito. Acredito que o resto foi parar nas mãos de Goring.”

“Ah, aquele ignorantão gordo. Com seus três motoristas, o leopardo de estimação e a criação de bisões. Tudo falso. Além disso, que mania de mudar de roupa de dez em dez minutos. Golo! Por que você não está mais zangado?”

Dei de ombros levemente e respondi: “Eu não me queixo”. Claro que eu não me queixava daquilo nem de qualquer outra coisa: eu não tinha o direito. “Ah, tive muita sorte, fui muito privilegiado, como sempre. E até na prisão eu tive muito tempo para pensar, Tantchen, e havia livros lá.”

Ela ergueu um pouco o corpo na cama: “Nós nunca duvidamos da sua inocência, Neffe! Sabíamos que você era totalmente inocente!”.

“Obrigado, Tante.”

“Tenhocerteza de que sua consciência está totalmente limpa.”

Na verdade, eu sentia necessidade de conversar sobre a minha consciência com uma mulher, mas não com Gerda Bormann… O fato, Tantchen, é que em meu esforço de retardar o progresso alemão, eu infligi maiores sofrimentos a homens que já estavam sofrendo, sofrendo mais do que se possa imaginar. E morrendo, meu amor. No período 1941-45, trinta e cinco mil pessoas morreram na Buna-Werke. Eu disse:

“É claro que eu era inocente. Foi o testemunho de um único homem.” “Um único!”

“Testemunho arrancado sob tortura.” E acrescentei, pensativo: “Isso tem jurisprudência medieval”.

Ela voltou a se deitar e continuou falando, com a voz fraca: “Mas as coisas medievais… Elas são boas, não são? Afundar… efeminados estrangulados… em turfeiras. E os duelos, Neffe, os duelos”.

A referência a duelos (ou às turfeiras) não era tresvario. O Reichsfuhrer-SS reintroduziu por algum tempo o duelo como

meio de resolver questões de honra. No entanto, os alemães já tinham se habituado a viver sem honra — e sem justiça, se liberdade, sem verdade, sem razão. Os duelos voltaram a ser ilegais depois que o primeiro figurão nazista (no caso um marido corneado) foi rapidamente abatido em duelo (pelo corneador)… De repente, Tante abriu os olhos até onde pôde e exclamou:

“O machado, Golo! O machado!” Sua cabeça afundou no travesseiro. Um minuto se passou. “Tudo isso são coisas boas. Não são?”

“Descanse, Tantchen. Descanse, minha querida.”

Na noite seguinte, ela estava mais fraca, porém mais falante.

“Golo, ele está morto. Eu sinto isso. Uma esposa e uma mãe sente esse tipo de coisa.” “Espero que a senhora esteja errada, Tantchen.”

“Sabe, o Papi nunca gostou do Papi. Quer dizer, o Vater nunca gostou do tio Martin. Mas eu me mantive firme, Neffe. Martin tinha um senso de humor maravilhoso! Ele me fazia rir. Eu nunca fui de rir, mesmo quando criança. Já muito pequena eu me perguntava: por que as pessoas fazem esses barulhos bobos? E depois que cresci, nunca consegui entender o que as

pessoas achavam tão engraçado. Mas Papi me fazia rir. Ecomo a gente ria… Ah, converse comigo, Golo. Enquanto eu

descanso. É o som da sua voz.”

Eu tinha comigo um frasco de grapa. Tomei um gole e disse:

“Ele fazia a senhora rir. E os dois sempre riam das mesmas coisas, Tante?” “Sempre. Sempre.”

“Bem, escute só uma história engraçada que tio Martin me contou… Havia um homem chamado Dieter Kruger. Não quero bancar o sabichão, tia, mas isso foi há muito tempo. A senhora se lembra do Incêndio do Reichstag?”

“Claro que me lembro. Papi ficou tão perturbado… Continue, Neffe.”

“O Incêndio do Reichstag… Três semanas depois que assumimos o poder. Todo mundo achou quenós tínhamos feito

holandês que fez aquilo. E ele foi guilhotinado em janeiro de 34. Mas havia outro homem, chamado Dieter Kruger. A senhora está acordada, Tante?”

“Claro que estou acordada!”

“E Dieter Kruger… Dieter Kruger esteve metido em um dos incêndios anteriores do holandês… Um escritório da Previdência em Neukolln. Por isso ele também foi executado. De quebra. Kruger era comunista e também…”

“E também judeu?”

“Não. Isso não é o importante, Tante. O importante é que ele era um filósofo político, com livros publicados, e um ardoroso comunista… De modo que na noite anterior à sua execução, tio Martin e alguns amigos dele foram à cela de Kruger. Com várias garrafas de champanhe.”

“Para quê? O champanhe?”

“Para os brindes, Tante. Kruger já estava meio derreado, como era de esperar, mas mesmo assim eles o puseram de pé, arrancaram sua camisa e algemaram suas mãos nas costas. E numa cerimônia simulada lhe concederam várias medalhas. A Cruz de Ferro com Folhas de Carvalho. A Ordem da Águia Alemã. A Divisa de Honra da Velha Guarda. Etc. E prenderam todas no peito nu dele.”

“E aí?”

“Tio Martin e seus companheiros fizeram discursos, Tantchen. Louvaram Kruger como o pai da autocracia fascista. E assim ele foi executado. Como um herói condecorado do nacional-socialismo. Tio Martin achava isso muito engraçado. A senhora acha isso muito engraçado?”

“O quê? Darmedalhas a ele? Não!”

“Hum… Bem…”

“Ele pôs fogo no Reichstag!”

Na última noite que passei ali, ela fez um esforço e se animou. Disse:

“Temos tanto de que nos orgulhar, Golo. Pense no que ele, seu tio Martin, realizou. Quero dizer, pessoalmente.” Houve um silêncio. Um silêncio compreensível. O quê? A intensificação dos castigos físicos nos campos de trabalho escravo. A cautelosa discordância sobre a questão do gelo cósmico. A dessemitização do alfabeto. A marginalização de Albert Speer. Tio Martin não tinha o menor interesse pelos ornamentos do poder, apenas pelo poder em si, que usou, até o fim, para fins invariavelmente triviais…

“A forma como ele tratou a questão dos Mischlinge”, ela disse. “E a dos judeus casados com alemães.”

“Foi. E no fim ele acabou não mexendo com essas pessoas. As dos casamentos mistos. Com a maior parte delas.” “Ah, mas ele acabou com os húngaros.” Ela emitiu um leve gorgolejo de satisfação. “Com todos eles, até o último.” Não foi bem assim. Ainda em abril de 44, com a guerra perdida havia muito, as cidades arrasadas, com milhões de pessoas famintas, desabrigadas e vestindo farrapos chamuscados, o Reich continuava achando que fazia sentido desviar tropas para Budapeste; e as deportações começaram. Veja, Tante, foi como aquele homem de Linz que esfaqueou a mulher cento e trinta e sete vezes. A segunda facada foi para justificar a primeira. A terceira para justificar a segunda. E assim por diante, até o fim de suas forças. Duzentos mil judeus húngaros sobreviveram, Tantchen, enquanto quase meio milhão deles foi deportado e

assassinado na “Aktion Doll” no Kat ZetII.

“Hum, ele sempre insistiu em que essa foi a sua maior contribuição no cenário mundial”, ela disse. “Entenda, sua maior contribuição como estadista.”

“Realmente, Tante.”

“E agora, Neffe? O que você vai fazer, meu amor?”

“No fim, advogar de novo, imagino. Não tenho certeza. Talvez eu continue na área do direito, mas como tradutor. Meu

inglês está ficando bem decente. Já melhorei bastante,by hook or by crook .”

“O quê? É uma língua horrorosa, pelo que dizem. E, na verdade, você não deveria trabalhar para os americanos, Golo, você sabe.”

“Eu sei, Tante, mas estou trabalhando.” Para oOMGUS, o Escritório de Governo Militar dos Estados Unidos, e os cinco Ds:

achar uma pessoa. Mas o problema é: qual era o nome dela de solteira? Eu nunca perguntei”. “Golito… Por que você não procura uma boa moça solteira?”

“Porque eu já achei uma boa moça casada.” “Você está com um ar triste, querido.”

“Eu estou triste. Acho que tenho o direito de estar triste com isso.” “Ah. Pobre Golito. Eu compreendo. Quem é o marido?”

“Eles estão separados, e ela não vai usar o nome de casada. Ele está sendo julgado pelo Tribunal Militar Internacional.” “Aqueles porcos. Justiça judaica. E ele era um bom nazista?”

“Um dos melhores… Mas não estou encontrando nada. Não resta mais onde procurar.” O que eu queria dizer era que todos os arquivos, todas as pastas, todas as fichas, todo pedaço de papel relacionado ao Terceiro Reich ou tinham sido destruídos antes da capitulação ou foram apreendidos e confiscados depois dela. “Não resta mais onde procurar.”

“Golito, ponha um anúncio nos jornais. É o que as pessoas estão fazendo.”

“Já tentei isso. Mais de uma vez. E aqui eu tenho um pensamento desencorajador. Por que ela não me procurou? Não seria difícil me encontrar.”

“Talvez ela esteja tentando, Neffe. Vou lhe dizer uma coisa: talvez ela esteja morta. São tantos mortos atualmente. E, de qualquer forma, é sempre assim, não é? Depois de uma guerra. Ninguém sabe onde alguém está.”

Sentei-me junto à cama dela, com meu frasco no colo, pensando.

“Não seria difícil me encontrar.” Levantei devagar. “Infelizmente, está na hora. Preciso me despedir, Tantchen. Tantchen?” Mas Gerda havia adormecido. Compreensivelmente, de modo profundo.

“Melhoras, meu anjo”, murmurei. Debrucei-me, encostei os lábios em sua testa cerácea e saí para me juntar aos outros no caminhão.

Gerda estava com câncer no útero e morreu dez dias depois, em 26 de abril de 1946. Tinha trinta e sete anos. O pobre Volker, que desde bebê fora uma criança doentia, também morreu em 1946. Ele tinha três anos.

Já fazia algum tempo que acontecia uma coisa comigo: eu não conseguia ver beleza onde eu não conseguisse ver inteligência.

Entretanto, eu via Gerda com olhos amorosos, e mesmo em seu leito de morte ela estava bonita. A beleza obtusa de Gerda Bormann.

No documento A Zona de Interesse - Martin Amis.pdf (páginas 150-154)