SEGUNDA PARTE
2. Para uma estratégia de defesa à subversão espacial
2.1. O domínio público em Richard Sennett
The Fall of Public Man (1977) de Richard Sennett, referido no capítulo anterior, representa agora um dos principais materiais de inquietação e motivação para a escolha do problema deste estudo. Exploramos a forma como a cibernética - com mais propriedade a web 2.0 - se incorpora na urbanidade e subverte a ordem do espaço privado e público. Na primeira parte do seu estudo, designada por “O problema público” , Sennett apresenta a tese central da obra no primeiro capítulo, “The public domain":
É a geração nascida no após Segunda Guerra Mundial que se virou para dentro porque libertou-se das restrições sexuais; nesta mesma geração ocorreu a maior parte da destruição física do domínio público. A tese deste livro, no entanto, é que esses sinais flagrantes de uma vida pessoal desequilibrada e pública vazia foram produzidas ao longo de um tempo muito extenso. Elas são o resultado de uma mudança que começou com a queda do ancien regime e a formação de uma nova cultura capitalista, secular e urbana. 41 (Sennett, 2002, 16)
O autor alcançou esta conclusão ao desenvolver uma analogia entre os tempos do pós-Segunda Guerra Mundial e a decadência do Império Romano após a morte do Imperador Augusto (63 a.C/14 d.C). Neste contexto, Sennett identifica um paralelo no desequilíbrio entre vida privada e pública na sociedade romana e na sociedade contemporânea; um espaço público transformado numa questão de obrigações tanto na Roma Imperial quanto nos tempos atuais. Esse desequilíbrio torna-se responsável por um anunciado espaço público esvaziado de sentido. Para esclarecer o fenómeno, Sennett estuda o modo como os romanos encaravam a vida pública, uma questão de obrigação formal. Uma nova atitude responsável pela formalidade que deixou fora do espaço público uma certa informalidade institucional para dar lugar a uma conformação das regras da res publica. Essa mudança vem na esteira de um espírito público cada vez menos ativo num espaço público cada vez mais complexo no que diz respeito às cerimónias públicas, às necessidades militares do desígnio imperial e aos rituais estabelecidos com os demais.
Sennett constata um espaço privado guiado por um novo compromisso e crenças privadas, encarado como escape de uma vida pública repleta de emoção e misticismo politeísta. O princípio místico, fundamental para a fuga às realidades mundanas e, sobretudo, às formalidades cada vez mais complexificadas da res publica encontrava-se, muitas vezes, associado a seitas esotéricas oriundas do Próximo Oriente, local onde, aliás, despontaria
41 Tradução livre: “It is the generation born after World War II which has turned inward as it has liberated itself from sexual constraints; it is in this same generation that most of the physical destruction of the public domain has occurred. The thesis of this book, however, is that these blatant signs of an unbalanced personal life and empty public life have been a long time in the making. They are the results of a change that began with the fall of the ancien regime and the formation of a new capitalist, secular, urban culture.” (Sennett, 2002, 16)
Cristianismo. Ora, segundo o autor, transição do Cristianismo de uma crença privada para uma crença pública, irrompeu no espaço público romano e estabeleceu um novo princípio de ordem pública. Sennett não deteta um princípio místico no espaço público dos nossos tempos. Esse papel preponderante foi conferido à psicologia moderna:
O advento da psicologia moderna e da psicanálise em particular, foi fundado na fé de que, na compreensão do funcionamento interno do eu sui generis , sem ideias transcendentais de mal ou de pecado, as pessoas poderiam libertar-se desses horrores e serem livres para participar mais completa e racionalmente numa vida fora dos limites dos seus próprios desejos. Massas de pessoas estão preocupadas com suas histórias de vida e emoções particulares como nunca antes; esta preocupação provou ser uma armadilha e não uma libertação. (Sennett, 2002, 5) 42
Uma armadilha construída através da reflexão moderna acerca do eu, de modo a percebermos a autenticidade dos nossos sentimentos, como refere o autor. Transformamos a nossa privacidade num fim em si mesmo, facto que contrasta com a privacidade romana e da web 2.0 que utilizou e utiliza o privado para um fim guiado por esse princípio místico assente na verticalidade da transcendência religiosa do mundo. «O eu de cada pessoa tornou-se o seu principal fardo; conhecer-se tornou-se um fim, em vez de um meio pelo qual se conhece o mundo.» (Sennett, 2002, 4) Sennett afirma que é por esse motivo, essa 43 particular absorção da psique, que dificulta descrever a nossa própria personalidade e é, sobretudo, a barreira que entrava a obtenção um princípio do privado. Sennett prossegue, afirmando que a responsabilidade do fenómeno está no facto de «quanto mais privatizada a psique, menos é estimulada e mais difícil é sentirmos ou expressarmos sentimentos. (...) vemos a própria sociedade como "significativa" apenas convertendo-a num grande sistema psíquico.» (Sennett, 2002, 4) 44
Um espaço público encontrado vazio por um eusui generis com uma visão psicanalítica da vida privada e, por efeito, da pública; um espaço público que cultiva a credibilidade e a legitimidade daqueles agentes e responsáveis políticos que operam publicamente com a sua imagem privada e possibilitam a sociedade recusar uma análise mais pragmática das ações
42 Tradução livre: “The advent of modern psychology, and of psychoanalysis in particular, was founded on the faith that in understanding the inner workings of the self sui generis, without transcendental ideas of evil or of sin, people might free themselves from these horrors and be liberated to participate more fully and rationally in a life outside the boundaries of their own desires. Masses of people are concerned with their single life-histories and particular emotions as never before; this concern has proved to be a trap rather than a liberation.” (Sennett, 2002, 5)
43 Tradução livre: “Each person's self has become his principal burden; to know oneself has become an end, instead of a means through which one knows the world.” (Sennett, 2002, 4)
44 Tradução livre: “the more privatized the psyche, the less it is stimulated, and the more difficult it is for us to feel or to express feeling.(...) We see society itself as "meaningful" only by converting it into a grand psychic system.” (Sennett, 2002, 4)
públicas dos mesmos. Relações espaciais que nos levam a crer numa comunidade digital enquanto mecanismo de auto e mútuo manifesto e que subestimam o sentido central comunitário entre estrangeiros.
Ironicamente, essa visão psicológica também inibe o desenvolvimento de forças básicas de personalidade, como o respeito pela privacidade dos outros, ou a compreensão de que, como todo o eu é em certa medida um gabinete de horrores, relações civilizadas entre eus só podem prosseguir na medida em que pequenos segredos desagradáveis de desejo, ganância ou inveja são mantidos trancados. (Sennett, 2002, 4) 45
Em privado, contudo, tanto o princípio místico romano quanto a psicanálise moderna se baseiam na crença, na imaginação e surgem como responsáveis pela transformação dos espaços fundamentais nas respetivas sociedades. Sennett parte desse princípio lógico para introduzir o termo “Intimidade”.
"Intimidade" conota calor, confiança e expressão aberta de sentimentos. Mas precisamente porque passamos a esperar esses benefícios psicológicos em toda a extensão de nossa experiência, e precisamente porque tanta vida social que tem um significado não pode render essas recompensas psicológicas, o mundo lá fora, o mundo impessoal parece falhar em nós, parece para ser velho e vazio. (Sennett, 2002, 5) 46
Para Sennett, esta intimidade é vivenciada numa certa “ansiedade”, ancorada numa predominância mundial dos meios de comunicação, essas letras maiúsculas a que se refere o autor. Uma “ansiedade” que surge da crença e daquilo que Sennett designa como profundas mudanças introduzidas pelo capitalismo. Um capitalismo que residirá «na
“mistificação” da vida material em público, especialmente em matéria de roupas, causada pela produção e distribuição em massa» , «fetichismo de mercadorias, como Marx se 47 referiu» , ou por outro lado, «A ansiedade sobre o que se sente também pode ser vista48 como a propagação e a vulgarização da "busca romântica pela personalidade".» (Sennett, 49 2002, 6-20). Sennett aprofunda o problema do público da sociedade contemporânea num
45 Tradução livre: “Ironically, this psychological vision also inhibits the development of basic personality strengths, like respect for the privacy of others, or the comprehension that, because every self is in some measure a cabinet of horrors, civilized relations between selves can only proceed to the extent that nasty little secrets of desire, greed, or envy are kept locked up.” (Sennett, 2002, 4)
46 Tradução livre: “"Intimacy" connotes warmth, trust, and open expression of feeling. But precisely because we have come to expect these psychological benefits throughout the range of our experience, and precisely because so much social life which does have a meaning cannot yield these psychological rewards, the world outside, the impersonal world, seems to fail us, seems to be stale and empty.” (Sennett, 2002, 4)
47 Tradução livre: “in the "mystification" of material life in public, especially in the matter of clothes, caused by mass production and distribution.” (Sennett, 2002, 19)
48Tradução livre: “Commodity fetishism, Marx called it” (Sennett, 2002, 20)
49 Tradução livre: “Anxiety about what one feels might also be seen as the spread, and the vulgarization, of the Romantic "quest for personality"” (Sennett, 2002, 6)
segundo momento, designado por Love outside the public domain. O autor começa por afirmar que:
O mundo dos sentimentos íntimos perde todos os limites; já não é restringido por um mundo público em que as pessoas fazem investimentos alternativos e compensadores de si mesmas. A erosão de uma vida pública forte, portanto, deforma as relações íntimas que envolvem o interesse sincero das pessoas. Nenhuma instância mais gráfica dessa deformação ocorreu nas últimas quatro gerações do que, na mais íntima das experiências pessoais, o amor físico. (Sennett, 2002, 6) 50
Nestas reflexões Sennett procura uma evolução do conceito de erotismo. Nas sociedades contemporâneas, o “erotismo” dá lugar ao termo “sexualidade”. Na sociedade vitoriana o erotismo funcionava como catalisador de relações sociais através da escolha, da representação e da interação. Atualmente, a “sexualidade” envolve exclusivamente a identidade da pessoa. Cai-se, pois, numa espécie de narcisismo patológico que, do ponto de vista da sexualidade, funciona como uma variedade de repelente do amor físico, tendo em vista uma auto-satisfação em tempo real. Por outras palavras, Sennett constata que a realidade presente se encontra absorta na psique. Simultaneamente e não por acaso, a sociedade contemporânea não parece demonstrar à-vontade na construção de relações sociais, não porque se revelam questões puramente psicológicas capazes de surtir um efeito de terapêutica social a um tempo único, mas e sobretudo, por via de uma ilusão provocada por esse asexuado narcisismo hodierno que constrói a ideia errada de um espaço público preparado para um Ser Humano totalmente novo.
Este é o sentido que destaca o autor quando responsabiliza o espaço físico e estéril de gerar a ideia errónea de um domínio público sem sentido. Desta forma certifica-se que o mesmo acontece com a composição do novo espaço urbano. Um espaço urbano organizado por arquitetos e outros agentes públicos que expressam contundentemente a semiótica dessa nova vida pública repleta de uma forte densidade populacional que se desenvolve na verticalidade de edifícios que comportam grande tensão física e identitária. Como paradigmáticos do estilo apurado pela Escola Internacional pós-Segunda Guerra Mundial, Sennett elege não só os edifícios Lever House (1952) de Gordon Bunshaft (1909/1990) em Nova Iorque e o Brunswick Centre (1972) de Patrick Hodgkinson (1930/2016) em
50Tradução livre: “The world of intimate feeling loses any boundaries; it is no longer restrained by a public world in which people make alternative and countervailing investment of themselves. The erosion of a strong public life therefore deforms the intimate relations which seize people's wholehearted interest. No more graphic instance of this deformation has occurred in the last four generations than in the most intimate of personal experiences, physical love.” (Sennett, 2002, 6)
Londres, mas igualmente na moderna zona financeira de Paris, La Défense. Na visão de Sennett, estes edifícios em particular introduzem na praça pública o desacordo entre a função do espaço público e o design do edifício - «que é para mesclar pessoas e atividades diversas.» (Sennett, 2002, 12). 51
Tomemos, primeiramente, o caso Lever House em Nova Iorque. Uma fusão entre estética da visibilidade e isolamento social, com um andar térreo projetado de forma a construir uma praça pública em miniatura. No entanto, esta é, para Sennett, um espaço morto pois o seu design mina, só por si, a função tradicional de espaço público, uma vez que se trata de uma praça-pátio de acesso público com uma cobertura em forma de ferradura e sob a qual se tem de passar para alcançar a rua. Designa-o como espaço morto pois não oferece diversidade de atividade social, funcionando exclusivamente como interface entre o espaço público e privado do interior do edifício, como ilustram as seguintes figuras.
Figura 10: Piso térreo, Lever House. Figura 11: 1.º piso, Lever House
51 Tradução livre: “which is to intermix persons and diverse activities.” (Sennett, 2002, 12)
Figura 12: Maquete, Lever House.
O segundo e o terceiro exemplo de Sennett encontram-se precisamente de acordo na mesma questão da destruição da função do espaço público por via do design de uma nova urbanidade. Denotam, todavia, uma particularidade que revela uma inércia total do espaço público. O modelo revela uma singular indiferença face espaço de implementação do edifício. Brunswick Centre situa-se junto a uma praça pública de interesse histórico distinguida com o título de Register of Historic Parks and Gardens do Património inglês . 52 Trata-se de um imenso complexo de apartamentos de habitação social construídos em betão armado à vista. A forma de Brunswick Centre remete para um vale que forma uma espécie de liça na qual surgem habitações construídas em socalcos, à laia de jardins babilónicos, de sacadas envidraçadas. Estas sacadas, explica Sennett, conferem-lhe um carácter de estufa pela qual a luz passa contundentemente e destrói a barreira entre o interior e o exterior do apartamento. Uma dissolução espacial curiosamente abstrata, como observa. Ao mesmo tempo que a vista do interior da habitação se desafoga para um céu total, paralelamente encontra-se privada da relação com os edifícios envolventes. Desta forma, o espaço interior do apartamento é privado do contacto visual com um dos espaço públicos mais belos de Londres. Assim, Sennett conclui que Brunswick Centre foi concebido sem respeito pelo espaço público envolvente, como aconteceu com a web 2.0, diríamos nós: «O edifício está orientado no espaço como se pudesse estar em qualquer lugar, o que quer dizer que seus criadores não tinham o menor sentido do lugar, muito menos de um ambiente urbano extraordinário (...)» (Sennett, 2002, 13), como ilustram as 53 seguintes:
Figura 13: Maquete, Brunswick Centre. Figura 14: The Passenger, Brunswick Centre.
52Register of Historic Parks and Gardens, disponivel em [https://historicengland.org.uk/listing/the-list/list-entry/1000212]
53 Tradução livre: “The building is sited as though it could be anywhere, which is to say its siting shows its designers had no sense of being anywhere in particular, much less in an extraordinary urban milieu.”
(Sennett, 2002, 13)
Sennett vai mais longe na sua análise ao Brunswick Centre. A verdadeira armadilha espacial do Brunswick Centre advém exatamente do design da arena central, ladeada por colinas de betão armado a nu que coloca em socalcos o espaço habitacional. O design dessa arena pública é responsável por inculcar no frequentador um sentimento de constante vigilância, uma espécie de espetáculo ou ritual no qual o utilizador do espaço público é o ator principal, vigiado por outros ocultos por detrás de vidraças espelhadas (podemos fazer um paralelo à web 2.0 face à Internet). Um espaço público pontuado com algum comércio e amplas áreas de vazio em betão que não convida à permanência dos seus utilizadores durante um certo lapso de tempo, como refere o autor:
A praça "pública" do Centro está, de fato, protegido das principais ruas contíguas de Bloomsbury por duas imensas rampas cercadas; a própria praça situa-se a vários metros acima do nível da rua. Tudo foi feito, novamente, para isolar a área pública do centro de Brunswick da incursão acidental de rua, ou do simples passear, assim como a localização dos dois blocos de apartamentos efetivamente isola aqueles que os habitam, da rua, e da praça. (Sennett, 2002, 13) 54
Desta forma, Sennett afirma que tanto o statement visual revelado pelas vidraças que camuflam vigias sociais em privado, quanto a declaração social conferida pelo design da elevação da arena pública central do complexo e pela localização desse, indicam claramente que existe uma barreira espacial entre o interior e exterior do Brunswick Centre. Trata-se de uma abolição absoluta do espaço público. Nesta sequência, Sennett observa que a subversão do espaço público se fundamenta no que chama de paradoxo do isolamento no espaço público face à visibilidade. Um paradoxo entre isolamento / visibilidade que surge exatamente no estilo da Escola Internacional: uma nova ideia de visibilidade no que diz respeito ao design de grandes edifícios e complexos habitacionais ou da web 2.0 que tem no vidro transparente um irresistível aliado das novas conceções de visibilidade camuflada, diríamos nós. Sennett diz que a implementação desse modelo arquitetónico de placas de vidro em grades de aço, essa tecnologia sem carne (Colomina, 2013) que altera a ordem do espaço interior e exterior ao limite do invisível, corresponde segundo Sennett, ao ideal da Parede Permeável defendido pelo famoso crítico de
54 Tradução livre: “The "public" concourse of the Centre is in fact shielded from the main contiguous Bloomsbury streets by two immense ramps with fences edging them; the concourse itself is raised several feet above street level. Everything has been done, again, to isolate the public area of Brunswick Centre from accidental street incursion, or from simple strolling, just as the siting of the two apartment blocks effectively isolates those who inhabit them, from street, concourse, and square.” (Sennett, 2002, 13)
arquitetura Sigfried Giedion (n.1968). Porém, mais que uma parede permeável, o design tanto da Lever House quanto do Brunswick Centre correspondem a um tipo de projeto que alia e (con)funde a estética da visibilidade com o isolamento social, não justificável pela lógica securitária ou pelos problemas de criminalidade nessas cidades. O paradoxo isolamento / visibilidade, como verifica Sennett, está igualmente presente na zona de escritórios de La Défense, em Paris como ilustra a figura 15.
Figura 15: Via principal,La Défense.
No entanto, mais que a subversão da ordem espacial entre o privado e o público pela tecnologia e pela arquitetura, Sennett descobre um lado ainda mais perverso desse paradoxo: a estreita relação entre a contingência do espaço público - «o espaço público é uma área para se mover, não para permanecer» (Sennett, 2002, 14) - e a tecnologia do 55 movimento. Esta última brota dessa nova forma de encarar o espaço público - um espaço de passagem e não de permanência como podemos verificar nos domínios públicos do instantâneo tempo da Internet, por exemplo. No caso de La Défense, o autor aponta exactamente esse fenómeno espacial. Diz-nos que os pisos térreos do complexo de escritórios parisiense, de facto é constituído por algumas lojas, no entanto a sua principal funcionalidade é servir o movimento do automóvel e dos transportes públicos. Nas palavras do planner do projecto acerca dos pisos térreos de La Défense, : «o fluxo de tráfego suporta o nexo para o todo vertical.» ( 56 planner apud Sennett, 2002, 14) Dito de outro modo, os pisos térreos, o espaço público de La Défense, ao contrário do esperado, tornou-se um subserviente à tecnologia do movimento (ao tempo) tal como a Internet tornou-se subserviente à web 2.0. Sennett ensina a partir deste princípio que essa
55 Tradução livre: “the public space is an area to move through, not be in” (Sennett, 2002, 14)
56 Tradução livre: “the traffic flow support nexus for the vertical whole.” (planner apudSennett, 2002, 14)
subserviência corresponde exatamente às relações estreitas entre espaço e o movimento gerado pelo automóvel particular ao contrário dos transportes públicos que obedecem a um determinado sistema de paragens obrigatórias. Para Sennett o automóvel particular oferece ao seu utilizador um movimento ilusoriamente sem barreiras (exemplo disso são as app, ilusoriamente gratuitas). Desta forma, Sennett vê o espaço público como função que permite a movimentação livremente privada. No entanto, os seus transeuntes ao verificarem qualquer constrangimento na via é-lhes evidenciado um estado com altos níveis de ansiedade. Isto é: uma movimentação pontuada por uma ansiedade gerada pelo direito absoluto de um movimento privado no espaço público sem restrições, como aliás, acontecia no espaço público tradicional, diríamos nós, e o «automóvel privado é o instrumento lógico para o exercício desse direito» 57 (Sennett, 2002, 14). Com efeito, o espaço público transforma-se desta forma num espaço sem sentido gerador de ansiedade social devido a uma movimentação privada com restrições públicas e espaciais, tal como o espaço do ponto de vista da web 2.0. A tecnologia do movimento moderno, segundo o autor, tornou-se tão complexa que influenciou e alterou por completo a vida e a função da arquitetura urbana do mundo moderno e atual; ela «substitui o estar na rua pelo desejo de anular as restrições da geografia.» 58 (Sennett, 2002, 14) Uma tecnologia do movimento sem precedentes na história da humanidade que se transformou na «que transporta ansiedade às atividades diárias.» Uma ansiedade que provém do «fato de que tomamos o 59 movimento irrestrito do indivíduo como um direito absoluto.» Assim, «a idéia de espaço 60 como derivação do movimento é comparado, exatamente, às relações entre espaço e movimento produzidas pelo automóvel particular.» 61 (Sennett, 2002, 14) ou, podemos dizer, da tecnologia do movimento moderno 62. Para Sennett, existe aqui uma liberdade aparente [como existe na web 2.0 para nós], numa aglutinação entre arquitetura e a tecnologia do movimento moderno, devido a essa coerção imposta pela geografia que colapsa com o aparecimento e a má utilização da tecnologia do movimento moderno, representada aqui pelo automóvel privado ou pela web 2.0, para nós. Com essa aglutinação entre arquitetura e tecnologia, que transforma a arquitetura numa função do movimento, o
57 Tradução livre: “private motorcar is the logical instrument for exercising that right” (Sennett, 2002, 14)
58 Tradução livre: “replaces being in the street with a desire to erase the constraints of geography.” (Sennett, 2002, 14)
59 Tradução livre: “the most anxiety-laden of daily activities.” (Sennett, 2002, 14)
60 Tradução livre: “fact that we take unrestricted motion of the individual to be an absolute right.” (Sennett, 2002, 14)
61 Tradução livre: “the idea of space as derivative from motion parallels exactly the relations of space to motion produced by the private automobile” (Sennett, 2002, 14)
62 Para uma exploração mais concisa sobre o tema, movimento moderno, Vide Tecnologia por uma cidade mais humana. Consult. em [18/08/2018] disponivel em [ https://www.youtube.com/watch?v=kKYDscqpf4Y ]
espaço público perde assim o seu sentido original de campo-de-ação social. Prossegue Sennett, dizendo que esse isolamento brutal designa, entre outros significados, a nossa visibilidade em relação com a dos demais e que essa parede permeável coloca em causa a privacidade do interior dos edifícios e dos seus utilizadores. Isto é: com a supressão de barreiras físicas e visuais que dividiam áreas do interior do edifício por um lado, e por outro, mantinha a fronteira entre o privado e o público criaram-se os conhecidos open space. Com efeito, segundo os responsáveis urbanísticos que Sennett perscrutou, a produtividade do trabalho é amplamente aumentada devido à falta de privacidade onde ocorriam conversas e observações privadas entre os sujeitos - «Quando as pessoas ficam o dia inteiro expostas visualmente umas às outras, é menos provável que se intrometam e conversem, ficando mais propensas a se manterem.» (Sennett, 2010, 15) Dito de outro 63 modo, a visibilidade retrai a sociabilidade e o silêncio transforma-se num meio de proteção. Veja-se o caso das redes sociais da web 2.0. Esse modelo de open space (como é a web 2.0) operacionaliza-se extremadamente através do paradoxo entre visibilidade / isolamento. Ou, por outro lado, para uma sociabilidade do sujeito serão necessárias barreiras visuais e locais públicos específicos de socialização.
Os seres humanos precisam de se distanciar da observação íntima dos outros para sentirem-se sociáveis. Aumenta o contato íntimo e diminui a sociabilidade. Aqui está a lógica de uma forma de eficiência burocrática. (Sennett, 2010, 15) 64
Dessa forma, verifica Sennett, o espaço público torna-se morto e sem sentido e neste contexto o Humano procura incessantemente um espaço íntimo que lhe é negado através da incorporação da cibernética na nova urbanidade.
Poderíamos dizer que ele perdeu a sua porta de entrada, o seu ponto zero do ponto de vista de Uexküll. E assim, o sujeito é obrigado a proteger-se da
63 Tradução livre: “when people are all day long visually exposed to one another, they are less likely to gossip and chat, more likely to keep to themselves.” (Sennett, 2010, 15)
64 Traddução livre: “Human beings need to have some distance from intimate observation by others in order to feel sociable. Increase intimate contact and you decrease sociability. Here is the logic of one form of bureaucratic efficiency.” (Sennett, 2010, 15)