• Nenhum resultado encontrado

O espaço-escape etnográfico de Arjun ​ ​ Appadurai

No documento ALT+R-HOTKEY  (páginas 37-43)

Lanier, também identifica na noção de arquivo uma maior profundidade do processo de        lock-in.  ​O arquivo nem sempre foi bem acolhido pelos protagonistas da ciência        computacional, afirma o autor: 

A primeira “iteration” do Mcintosh, que nunca foi distribuída, não tinha arquivos. Em    35                      vez disso, toda a produção do utilizador acumulava-se numa grande estrutura, semelhante                        a uma página pessoal da Internet. Steve Jobs assumiu o projeto do “Mac” do indivíduo                              que o iniciou, o falecido Jef Raskin, e os ficheiros depressa surgiram. O UNIX tinha                              ficheiros; o “Mac” que foi lançado tinha ficheiros; o Windows tinha ficheiros. Os                          ficheiros agora fazem parte das nossas vidas … a nossa conceção de ficheiros pode ser                              mais persistente do que as nossas ideias sobre a natureza. (Lanier, 2011, 28) 

Contudo, não só a noção de arquivo foi materializada em forma de ficheiros sob o processo        de lock-in  ​, agora acessíveis aos donos dos      ​softwares  na  ​Cloud,  como também se      multiplicam no espaço de ação da web       ​2.0 novas   ​apps com idêntica ambição de impor a        mesma obrigatoriedade e rigidez na utilização. Lanier observa com certa nostalgia as        homepages dos anos 1990 onde         ​Alt+R-hotkey se enquadra. Eram páginas Web muito        diferentes umas das outras e por vezes muito estranhas. «A Internet tinha sabor» (Lanier,        2011, 31) Lanier aponta a imprudente obsessão da Google ao querer relacionar a        publicidade aos motores de busca. Desde que a ideia da publicidade entra no espaço de        ação do internauta e desde que foi descoberto que esse cruzamento requer um «sistema de        representar pessoas e anúncios» com completo paralelo à grelha MIDI que têm surgido        gigantes como o Facebook. No entanto, «ao contrário do MIDI, o padrão secreto do        software da Google está escondido na sua computação em nuvem» (Lanier, 2011, 32), e o        Facebook encoraja a criação de identidades falsas e comentários que em nada se parecem        com o orgulhoso sentido de público da web 1.0.  

 

Em vez de as pessoas serem tratadas como as fontes da sua própria criatividade, a                              agregação comercial e a abstração de “sites” apresenta fragmentos anónimos de                      criatividade, como produtos que poderiam ter caído do céu, ou terem sido desenterrados                          do chão, obscurecendo as verdadeiras fontes. (Lanier, 2011, 33) 

     

constituído por um fluxo de pessoas que afeta o produto da sua representação. (Appadurai,        1996, 48)  

 

Ethnoscapes … paisagem de pessoas que constituem o mundo em mudança em que                          vivemos: turistas, imigrantes, refugiados, exilados, trabalhadores convidados e outros                  grupos e indivíduos em movimento constituem uma característica essencial do mundo e                        parecem afetar a política das (e entre) nações num grau sem precedentes. Isso não quer                              dizer que não existam comunidades e redes de parentesco, amizade, trabalho e lazer                          relativamente estáveis, bem como de nascimento, residência e outras formas filiais. Mas                        quer dizer que a trama dessas estabilidades está por toda a parte repassada pelas linhas do                                movimento humano, à medida que mais pessoas e grupos lidam com as realidades de ter                              de deslocar-se ou com as fantasias de querer deslocar-se. (Appadurai, 1996, 33) 36

   

Ethnoscapes ​elabora uma crítica epistemológica das estruturas antropológicas tradicionais,        assinalando uma ruptura com o previamente estabelecido e da qual       ​Alt+R-hotkey comunga. 

Por outro lado, o conceito surge e destaca-se da confrontação com as relações intersociais        do mundo subjetivo contemporâneo.       ​Ethnoscapes ​condensa a ideia da Psicologia pela qual        as  representações  coletivas  são  consideradas  factos  sociais,  encaradas como    transcendências da vontade individual, mediadas pela força da moralidade social e como        realidades sociais subjetivas. A ideia veio à luz no periódico francês académico       ​L'Année  Sociologique​, ​publicado por Durkheim em 1898 (Appadurai, 1996, 5). Appadurai afirma        que «A imaginação tornou-se um facto coletivo e social. Este desenvolvimento, por sua        vez, é a base da pluralidade de mundos imaginados.» (Appadurai, 1996, 5) Nesta        conformidade, o autor concebeu a expressão de       ​mundos imaginários   ​que se localizam nos        denominados estudos culturais, isto é:   

 

os mundos múltiplos que são constituídos pela imaginação historicamente situada de                      pessoas e grupos espalhados por todo o mundo. Um facto importante do mundo em que                              vivemos hoje é que muitas pessoas à volta do globo vivem em mundos tão imaginados (e                                não apenas em comunidades imaginadas) e, portanto, são capazes de contestar e às vezes                            até subverter os mundos imaginados pela mente oficial e pela mentalidade empresarial                        que os rodeia. (Appadurai, 1996, 33) 37

36 Tradução livre: “By ethnoscape, I mean the landscape of persons who constitute the shifting world in                                which we live: tourists, immigrants, refugees, exiles, guest workers, and other moving groups and individuals                              constitute an essential feature of the world and appear to affect the politics of (and between) nations to a                                      hitherto unprecedented degree. This is not to say that there are no rela                        tively stable communities and        networks of kinship, friendship, work, and leisure, as well as of birth, residence, and other filial forms. But it                                      is to say that the warp of these stabilities is everywhere shot through with the woof of human motion, as more                                          persons and groups deal with the realities of hav                ing to move or the fantasies of wanting to move.”                   

(Appadurai, 1996, 33) 

37 Tradução livre: “the multiple worlds that are constituted by the historically situated imaginations of                            persons and groups spread around the globe (chap. 1). An important fact of the world we live in today is that                                          many persons on the globe live in such imagined worlds (and not just in imagined communities) and thus are                                      able to contest and sometimes even subvert the imagined worlds of the official mind and of the                                  entrepreneurial mentality that surround them. (Appadurai, 1996, 33) 

   

Ethnoscapes ​é apresentado pela primeira vez na obra       ​Modernity at Large, Cultural        Dimensions of Globalization     ​(1996). Appadurai propõe um quadro elementar de análise        por forma a explorar as separações culturais, através de um único olhar sobre cinco        dimensões de fluxos globais de cultura:      ​ethnoscapes​,  ​mediascapes​, ​financescapes​, e    ideoscapes​.  ​Ethnoscapes  ​apresenta-se como uma das estruturas do pensamento        antropológico contemporâneo que estabelece um vínculo entre       ​espaço   - ​estabilidade    -reprodução cultural  ​. Arjun Appadurai (n. 1949), antropólogo e professor indiano, defende        ser urgente trazer o termo         ​desterritorialização ​para o centro da dinâmica cultural. Segundo        ele, o termo aplica-se       ​não só a cooperações transacionáveis e mercados monetários, como        igualmente a grupos sectários e a meios de comunicação que operam cada vez mais        transcendendo fronteiras e identidades territoriais específicas. Exemplo disso mesmo,        acreditamos nós, é a web 2.0. Estes operadores da       ​desterritorialização ​prosperam, em    especial, quando uma sociedade acusa necessidade de identificação, quando uma sociedade        se mostra carente de contacto com uma pátria e que, no entanto, é uma pátria totalmente        inventada. Ela existe, sobretudo, na imaginação de grupos desterritorializados e é, por        vezes, tão forte e unilateral que produz conflitos étnicos sem precedentes (Appadurai,        1996, 49). É desta forma que      ​Ethnoscapes ​se refere a problemas de representação,        admitindo que os etnólogos devam encará-los como se encararia a paisagem de        Alt+R-hotkey​, onde variações espaciais do observador podem, de certa forma, alterar o        produto do processo da representação. Appadurai esclarece que o prefixo       ​«Etno ​em  etnografia assume uma qualidade resvaladiça e não localizada, à qual as práticas        descritivas da antropologia terão de responder.» (Appadurai, 1996, 48). Prossegue: 

 

O sufixo -scape permite-nos apontar as formas fluidas e irregulares destas paisagens,                        formas que caracterizam o capital internacional tão profundamente quanto fazem estilos                      de roupas internacionais. Esses termos com o sufixo comum -scape também indicam que                          estas não são objetivamente relações que parecem iguais sob todos os ângulos, mas antes                            construções profundamente perspectivadas, influenciadas pelo cenário histórico,              linguístico e político de diferentes tipos de atores: estados-nação, multinacionais,                    comunidades de diáspora, bem como agrupamentos e movimentos subnacionais                38  (Appadurai, 1996, 33) 

 

38 Tradução livre: “The suffix -scape allows us to point to the fluid, irregular shapes of these landscapes,                                  shapes that characterize inter      national capital as deeply as they do international clothing styles. These terms                        with the common suffix -scape also indicate that these are not objec                      tively given relations that look the same              from every angle of vision but, rather, that they are deeply perspectival constructs, inflected by the his                                torical,  linguistic, and political situatedness of different sorts of actors: na                  tion-states, multinationals, diasporic      communities, as well as subnational” (Appadurai, 1996, 33) 

 

Assim sendo, o campo de análise antropológica da representação global de       ​Alt+R-hotkey  encontra-se assente, na desmontagem da associação antropológica que se estabelece entre        nativo   e ​lugar   e que conduziu à emergência de uma desterritorialização do observador.       

Simultaneamente, coloca-se a questão das transformações sociais, territoriais e sobretudo        alterações na forma de reprodução cultural de paisagens-identidade coletiva do mundo        atual. Por outras palavras, a etnografia tem agora por desafio objectos de estudo        transformados pela realidade atual e sem precedentes que ficam próximos da noção        imaginada de fronteira que lhes confere uma abordagem de caráter mais flexível do espaço. 

 

A apresentação da proposta de trabalho de Appadurai extrai o seu contexto do texto        Putting Hierarchy in Its Place         (1988), publicado pela primeira vez no terceiro volume, n.º1        da revista   ​Cultural Anthropology,   pertencente à Associação Americana de Antropologia      ​ Desde da sua publicação, o texto de Appadurai gerou um importante debate em torno de        propostas que versam sobre etnografias multilocalizadas. Em       ​Putting Hierarchy in Its        Place, ​Appadurai debate a construção clássica de       ​nativo ​na antropologia e a forma como o        conceito se relaciona estreitamente com a noção de       ​lugar. ​Na antropologia clássica, o        lugar ​encontra-se associado objetivamente ao seu         ​nativo específico, isto é, o lugar de cada        nativo (Homing) é uma unidade quanto ao espaço, ao social e ao cultural. Esta prática e        organização clássicas do pensamento serão então, para Appadurai, responsáveis por um        discurso que encarcera o nativo: os nativos pertencem a certos lugares mas são,        simultaneamente, «aqueles que estão, de alguma forma encarcerados ou confinados a esses        lugares» (Appadurai, 1988, 37). Partindo desta premissa, analisa o encarceramento, o        aprisionamento ou o confinamento do nativo colocando a questão «Por que razão algumas        pessoas são vistas como estando confinadas       ​a, e​pelos, seus lugares?» (Appadurai, 1988,        37). Exclui a figura do antropólogo , tido como ator dotado de mobilidade. Appadurai      39        conclui que, primeiramente, o nativo tem sido sempre entendido como prisioneiro da sua        relação com o lugar de origem. A construção antropológica dos aspectos da cultura desse        indivíduo foram, até aqui, consistentemente relacionados com a noção de adaptação do        sujeito ao meio. Em seguida, o encarceramento do nativo no lugar de origem é crucial, do        ponto de vista antropológico clássico, para a compreensão das suas dimensões moral e        intelectual pois «eles são confinados pelo que sabem, sentem e acreditam. Eles são        prisioneiros de seu "modo de pensamento”» (Appadurai, 1988, 37). 

39 Deste modo, a etnografia reflete o encontro circunstancial entre a deslocação voluntária do antropólogo e o 

“outro” involuntariamente localizado. 

           

Primeira conclusão parcial   

Do ponto de vista da web 2.0, podemos verificar a tendência à subversão da ordem dos        espaços. Uma tendência à subversão do espaço total. Subversão essa, conseguida através        do controlo e da participação dos utilizadores como coprodutores de serviços que a web        2.0 “oferece”. Os utilizadores produzem conteúdos fixos e dinâmicos que surgem de        informações fragmentadas, automatizadas e modulares, por certo, ligadas a formas mais        fluidas e possíveis de recombinar e misturar várias aplicações informáticas num único        lugar​​Por outras palavras, a ordem do espaço tende a sofrer alterações, não só pela        profunda transformação no design do         ​software ​web 2.0, que passou a funcionar sob o olhar        atento de protocolos privados de utilização, como também, pelas inquietações que trouxe        consigo a   ​Cloud ​quando incorporada na urbanidade. Genericamente, ao olhar o espaço do        ponto de vista tanto de Uexküll quanto de Innerarity, deparamo-nos efetivamente, com a        importância de uma construção espacial, introduzida pelas ciências e filosofia enquanto        motores fundamentais para a vida em sociedade. Realidades distintas, que levantam        questões bastante interessantes quanto à complementaridade entre mundos-próprios        subjetivos da sociedade e o mundo físico. Uexküll, com uma extraordinária visão acerca do        mundo absoluto (​    Umwelt-Umgebung)   a Ecologia, encara as relações entre os organismos        vivos como momentos quase cinematográficos de assinalação e realização. Sobretudo,        define nesse campo, tempos únicos que surgem através de ciclos-da-função que conectam        e interessam aos animais, sem que isso signifique alterar o seu espaço-mundo-próprio        subjetivo: o designado     ​Umwelt​. É precisamente esta ciberoperação no Reino Animal, de        caráter temporal e partilha espacial que, igualmente, se verifica na trajetória de        Alt+R-Hotkey​:  ​reflete uma certa e inevitável esquizofrenia no Reino Humano.        ​Em  Innerarity, a   ​importância da complementaridade entre o privado e o público, prende-se com        a dependência de uma organização política capaz de estruturar uma       ​esfera íntima total,      onde convergem a subjetividade, a experiência, a implicação e a generalidade. Desta        forma, com o objectivo do reposicionamento da vida privada, não numa esfera totalitarista       

em forma de prisão - como a       ​noosfera   -, mas de conter no público, uma política        efetivamente capaz de integrar a coisa comum e atribuir-lhe caráter institucional. Ou, ao        nível da prática quotidiana, um novo espaço público mais sentimental e mais identitário do        bem comum. Neste plano, refira-se,         ​Alt+R-Hotkey ​não podia oferecer maior correlação          com as conceptualizações de       ​lock-in​, velocidade e fantasia em Lannier. Um capitalismo        vertical, hegemónico e narcótico pela subversão da ordem espacial; antítese entre ação /        subjugação, vigilância / liberdade, criatividade / entorpecimento. Onde, manipulação e        representação anestesiam,    ​Alt+R-Hotkey  ​pretende  ​consciencializar  ​e conscientificar o      utilizador / observador / produtor, despertando-o, conduzi-lo ao absoluto direito à Cidade        deste tempo. Isto é, àquilo que esse produz. Corpos que tendem à dissolução. Acresce        ainda que o corpo humano, cada vez mais obsoleto, face a um planeta tecnologicamente        programável, de uma maneira geral, transformou-se num Ser angustiado. Ele, interioriza e        projeta dentro de si inquietações que desembocam em movimentações constantes, fruto do        seu modo de pensamento, agora, com maior fidelidade cibernética. Uma espécie de        desenraizamento étnico, sistema similar àquele que Appadurai apelida de       ​Ethnoscapes. 

Uma ​contingência do espaço imaginado​      ​Aí, a defesa do espaço público dilui-se e,           ​se assim  não fosse, a exteriorização        ​Alt+R-Hotkey  ​não se enquadraria minimamente na          desterritorialização ​que tenta refletir: o espaço como conhecemos faliu e dá o lugar        dominante ao tempo público. Esse sim, é um tempo eletrónico e é por onde       ​Alt+R-Hotkey  se propõe movimentar. A web 2.0, afundado-nos numa sociedade eletrónica digital, onde o        tempo domina a totalidade do espaço que nos rodeia - converte-nos em indivíduos com        princípio místico sobre a personalidade e sem território -, no entanto, do ponto de vista        antropológico, ainda capazes de imaginar um novo espaço mais democrático e totalmente        novo a partir da web 2.0. 

                               

No documento ALT+R-HOTKEY  (páginas 37-43)

Documentos relacionados