Lanier, também identifica na noção de arquivo uma maior profundidade do processo de lock-in. O arquivo nem sempre foi bem acolhido pelos protagonistas da ciência computacional, afirma o autor:
A primeira “iteration” do Mcintosh, que nunca foi distribuída, não tinha arquivos. Em 35 vez disso, toda a produção do utilizador acumulava-se numa grande estrutura, semelhante a uma página pessoal da Internet. Steve Jobs assumiu o projeto do “Mac” do indivíduo que o iniciou, o falecido Jef Raskin, e os ficheiros depressa surgiram. O UNIX tinha ficheiros; o “Mac” que foi lançado tinha ficheiros; o Windows tinha ficheiros. Os ficheiros agora fazem parte das nossas vidas … a nossa conceção de ficheiros pode ser mais persistente do que as nossas ideias sobre a natureza. (Lanier, 2011, 28)
Contudo, não só a noção de arquivo foi materializada em forma de ficheiros sob o processo de lock-in , agora acessíveis aos donos dos softwares na Cloud, como também se multiplicam no espaço de ação da web 2.0 novas apps com idêntica ambição de impor a mesma obrigatoriedade e rigidez na utilização. Lanier observa com certa nostalgia as homepages dos anos 1990 onde Alt+R-hotkey se enquadra. Eram páginas Web muito diferentes umas das outras e por vezes muito estranhas. «A Internet tinha sabor» (Lanier, 2011, 31) Lanier aponta a imprudente obsessão da Google ao querer relacionar a publicidade aos motores de busca. Desde que a ideia da publicidade entra no espaço de ação do internauta e desde que foi descoberto que esse cruzamento requer um «sistema de representar pessoas e anúncios» com completo paralelo à grelha MIDI que têm surgido gigantes como o Facebook. No entanto, «ao contrário do MIDI, o padrão secreto do software da Google está escondido na sua computação em nuvem» (Lanier, 2011, 32), e o Facebook encoraja a criação de identidades falsas e comentários que em nada se parecem com o orgulhoso sentido de público da web 1.0.
Em vez de as pessoas serem tratadas como as fontes da sua própria criatividade, a agregação comercial e a abstração de “sites” apresenta fragmentos anónimos de criatividade, como produtos que poderiam ter caído do céu, ou terem sido desenterrados do chão, obscurecendo as verdadeiras fontes. (Lanier, 2011, 33)
constituído por um fluxo de pessoas que afeta o produto da sua representação. (Appadurai, 1996, 48)
Ethnoscapes … paisagem de pessoas que constituem o mundo em mudança em que vivemos: turistas, imigrantes, refugiados, exilados, trabalhadores convidados e outros grupos e indivíduos em movimento constituem uma característica essencial do mundo e parecem afetar a política das (e entre) nações num grau sem precedentes. Isso não quer dizer que não existam comunidades e redes de parentesco, amizade, trabalho e lazer relativamente estáveis, bem como de nascimento, residência e outras formas filiais. Mas quer dizer que a trama dessas estabilidades está por toda a parte repassada pelas linhas do movimento humano, à medida que mais pessoas e grupos lidam com as realidades de ter de deslocar-se ou com as fantasias de querer deslocar-se. (Appadurai, 1996, 33) 36
Ethnoscapes elabora uma crítica epistemológica das estruturas antropológicas tradicionais, assinalando uma ruptura com o previamente estabelecido e da qual Alt+R-hotkey comunga.
Por outro lado, o conceito surge e destaca-se da confrontação com as relações intersociais do mundo subjetivo contemporâneo. Ethnoscapes condensa a ideia da Psicologia pela qual as representações coletivas são consideradas factos sociais, encaradas como transcendências da vontade individual, mediadas pela força da moralidade social e como realidades sociais subjetivas. A ideia veio à luz no periódico francês académico L'Année Sociologique, publicado por Durkheim em 1898 (Appadurai, 1996, 5). Appadurai afirma que «A imaginação tornou-se um facto coletivo e social. Este desenvolvimento, por sua vez, é a base da pluralidade de mundos imaginados.» (Appadurai, 1996, 5) Nesta conformidade, o autor concebeu a expressão de mundos imaginários que se localizam nos denominados estudos culturais, isto é:
os mundos múltiplos que são constituídos pela imaginação historicamente situada de pessoas e grupos espalhados por todo o mundo. Um facto importante do mundo em que vivemos hoje é que muitas pessoas à volta do globo vivem em mundos tão imaginados (e não apenas em comunidades imaginadas) e, portanto, são capazes de contestar e às vezes até subverter os mundos imaginados pela mente oficial e pela mentalidade empresarial que os rodeia. (Appadurai, 1996, 33) 37
36 Tradução livre: “By ethnoscape, I mean the landscape of persons who constitute the shifting world in which we live: tourists, immigrants, refugees, exiles, guest workers, and other moving groups and individuals constitute an essential feature of the world and appear to affect the politics of (and between) nations to a hitherto unprecedented degree. This is not to say that there are no rela tively stable communities and networks of kinship, friendship, work, and leisure, as well as of birth, residence, and other filial forms. But it is to say that the warp of these stabilities is everywhere shot through with the woof of human motion, as more persons and groups deal with the realities of hav ing to move or the fantasies of wanting to move.”
(Appadurai, 1996, 33)
37 Tradução livre: “the multiple worlds that are constituted by the historically situated imaginations of persons and groups spread around the globe (chap. 1). An important fact of the world we live in today is that many persons on the globe live in such imagined worlds (and not just in imagined communities) and thus are able to contest and sometimes even subvert the imagined worlds of the official mind and of the entrepreneurial mentality that surround them. (Appadurai, 1996, 33)
Ethnoscapes é apresentado pela primeira vez na obra Modernity at Large, Cultural Dimensions of Globalization (1996). Appadurai propõe um quadro elementar de análise por forma a explorar as separações culturais, através de um único olhar sobre cinco dimensões de fluxos globais de cultura: ethnoscapes, mediascapes, financescapes, e ideoscapes. Ethnoscapes apresenta-se como uma das estruturas do pensamento antropológico contemporâneo que estabelece um vínculo entre espaço - estabilidade -reprodução cultural . Arjun Appadurai (n. 1949), antropólogo e professor indiano, defende ser urgente trazer o termo desterritorialização para o centro da dinâmica cultural. Segundo ele, o termo aplica-se não só a cooperações transacionáveis e mercados monetários, como igualmente a grupos sectários e a meios de comunicação que operam cada vez mais transcendendo fronteiras e identidades territoriais específicas. Exemplo disso mesmo, acreditamos nós, é a web 2.0. Estes operadores da desterritorialização prosperam, em especial, quando uma sociedade acusa necessidade de identificação, quando uma sociedade se mostra carente de contacto com uma pátria e que, no entanto, é uma pátria totalmente inventada. Ela existe, sobretudo, na imaginação de grupos desterritorializados e é, por vezes, tão forte e unilateral que produz conflitos étnicos sem precedentes (Appadurai, 1996, 49). É desta forma que Ethnoscapes se refere a problemas de representação, admitindo que os etnólogos devam encará-los como se encararia a paisagem de Alt+R-hotkey, onde variações espaciais do observador podem, de certa forma, alterar o produto do processo da representação. Appadurai esclarece que o prefixo «Etno em etnografia assume uma qualidade resvaladiça e não localizada, à qual as práticas descritivas da antropologia terão de responder.» (Appadurai, 1996, 48). Prossegue:
O sufixo -scape permite-nos apontar as formas fluidas e irregulares destas paisagens, formas que caracterizam o capital internacional tão profundamente quanto fazem estilos de roupas internacionais. Esses termos com o sufixo comum -scape também indicam que estas não são objetivamente relações que parecem iguais sob todos os ângulos, mas antes construções profundamente perspectivadas, influenciadas pelo cenário histórico, linguístico e político de diferentes tipos de atores: estados-nação, multinacionais, comunidades de diáspora, bem como agrupamentos e movimentos subnacionais 38 (Appadurai, 1996, 33)
38 Tradução livre: “The suffix -scape allows us to point to the fluid, irregular shapes of these landscapes, shapes that characterize inter national capital as deeply as they do international clothing styles. These terms with the common suffix -scape also indicate that these are not objec tively given relations that look the same from every angle of vision but, rather, that they are deeply perspectival constructs, inflected by the his torical, linguistic, and political situatedness of different sorts of actors: na tion-states, multinationals, diasporic communities, as well as subnational” (Appadurai, 1996, 33)
Assim sendo, o campo de análise antropológica da representação global de Alt+R-hotkey encontra-se assente, na desmontagem da associação antropológica que se estabelece entre nativo e lugar e que conduziu à emergência de uma desterritorialização do observador.
Simultaneamente, coloca-se a questão das transformações sociais, territoriais e sobretudo alterações na forma de reprodução cultural de paisagens-identidade coletiva do mundo atual. Por outras palavras, a etnografia tem agora por desafio objectos de estudo transformados pela realidade atual e sem precedentes que ficam próximos da noção imaginada de fronteira que lhes confere uma abordagem de caráter mais flexível do espaço.
A apresentação da proposta de trabalho de Appadurai extrai o seu contexto do texto Putting Hierarchy in Its Place (1988), publicado pela primeira vez no terceiro volume, n.º1 da revista Cultural Anthropology, pertencente à Associação Americana de Antropologia . Desde da sua publicação, o texto de Appadurai gerou um importante debate em torno de propostas que versam sobre etnografias multilocalizadas. Em Putting Hierarchy in Its Place, Appadurai debate a construção clássica de nativo na antropologia e a forma como o conceito se relaciona estreitamente com a noção de lugar. Na antropologia clássica, o lugar encontra-se associado objetivamente ao seu nativo específico, isto é, o lugar de cada nativo (Homing) é uma unidade quanto ao espaço, ao social e ao cultural. Esta prática e organização clássicas do pensamento serão então, para Appadurai, responsáveis por um discurso que encarcera o nativo: os nativos pertencem a certos lugares mas são, simultaneamente, «aqueles que estão, de alguma forma encarcerados ou confinados a esses lugares» (Appadurai, 1988, 37). Partindo desta premissa, analisa o encarceramento, o aprisionamento ou o confinamento do nativo colocando a questão «Por que razão algumas pessoas são vistas como estando confinadas a, epelos, seus lugares?» (Appadurai, 1988, 37). Exclui a figura do antropólogo , tido como ator dotado de mobilidade. Appadurai 39 conclui que, primeiramente, o nativo tem sido sempre entendido como prisioneiro da sua relação com o lugar de origem. A construção antropológica dos aspectos da cultura desse indivíduo foram, até aqui, consistentemente relacionados com a noção de adaptação do sujeito ao meio. Em seguida, o encarceramento do nativo no lugar de origem é crucial, do ponto de vista antropológico clássico, para a compreensão das suas dimensões moral e intelectual pois «eles são confinados pelo que sabem, sentem e acreditam. Eles são prisioneiros de seu "modo de pensamento”» (Appadurai, 1988, 37).
39 Deste modo, a etnografia reflete o encontro circunstancial entre a deslocação voluntária do antropólogo e o
“outro” involuntariamente localizado.
Primeira conclusão parcial
Do ponto de vista da web 2.0, podemos verificar a tendência à subversão da ordem dos espaços. Uma tendência à subversão do espaço total. Subversão essa, conseguida através do controlo e da participação dos utilizadores como coprodutores de serviços que a web 2.0 “oferece”. Os utilizadores produzem conteúdos fixos e dinâmicos que surgem de informações fragmentadas, automatizadas e modulares, por certo, ligadas a formas mais fluidas e possíveis de recombinar e misturar várias aplicações informáticas num único lugar. Por outras palavras, a ordem do espaço tende a sofrer alterações, não só pela profunda transformação no design do software web 2.0, que passou a funcionar sob o olhar atento de protocolos privados de utilização, como também, pelas inquietações que trouxe consigo a Cloud quando incorporada na urbanidade. Genericamente, ao olhar o espaço do ponto de vista tanto de Uexküll quanto de Innerarity, deparamo-nos efetivamente, com a importância de uma construção espacial, introduzida pelas ciências e filosofia enquanto motores fundamentais para a vida em sociedade. Realidades distintas, que levantam questões bastante interessantes quanto à complementaridade entre mundos-próprios subjetivos da sociedade e o mundo físico. Uexküll, com uma extraordinária visão acerca do mundo absoluto ( Umwelt-Umgebung) a Ecologia, encara as relações entre os organismos vivos como momentos quase cinematográficos de assinalação e realização. Sobretudo, define nesse campo, tempos únicos que surgem através de ciclos-da-função que conectam e interessam aos animais, sem que isso signifique alterar o seu espaço-mundo-próprio subjetivo: o designado Umwelt. É precisamente esta ciberoperação no Reino Animal, de caráter temporal e partilha espacial que, igualmente, se verifica na trajetória de Alt+R-Hotkey: reflete uma certa e inevitável esquizofrenia no Reino Humano. Em Innerarity, a importância da complementaridade entre o privado e o público, prende-se com a dependência de uma organização política capaz de estruturar uma esfera íntima total, onde convergem a subjetividade, a experiência, a implicação e a generalidade. Desta forma, com o objectivo do reposicionamento da vida privada, não numa esfera totalitarista
em forma de prisão - como a noosfera -, mas de conter no público, uma política efetivamente capaz de integrar a coisa comum e atribuir-lhe caráter institucional. Ou, ao nível da prática quotidiana, um novo espaço público mais sentimental e mais identitário do bem comum. Neste plano, refira-se, Alt+R-Hotkey não podia oferecer maior correlação com as conceptualizações de lock-in, velocidade e fantasia em Lannier. Um capitalismo vertical, hegemónico e narcótico pela subversão da ordem espacial; antítese entre ação / subjugação, vigilância / liberdade, criatividade / entorpecimento. Onde, manipulação e representação anestesiam, Alt+R-Hotkey pretende consciencializar e conscientificar o utilizador / observador / produtor, despertando-o, conduzi-lo ao absoluto direito à Cidade deste tempo. Isto é, àquilo que esse produz. Corpos que tendem à dissolução. Acresce ainda que o corpo humano, cada vez mais obsoleto, face a um planeta tecnologicamente programável, de uma maneira geral, transformou-se num Ser angustiado. Ele, interioriza e projeta dentro de si inquietações que desembocam em movimentações constantes, fruto do seu modo de pensamento, agora, com maior fidelidade cibernética. Uma espécie de desenraizamento étnico, sistema similar àquele que Appadurai apelida de Ethnoscapes.
Uma contingência do espaço imaginado . Aí, a defesa do espaço público dilui-se e, se assim não fosse, a exteriorização Alt+R-Hotkey não se enquadraria minimamente na desterritorialização que tenta refletir: o espaço como conhecemos faliu e dá o lugar dominante ao tempo público. Esse sim, é um tempo eletrónico e é por onde Alt+R-Hotkey se propõe movimentar. A web 2.0, afundado-nos numa sociedade eletrónica digital, onde o tempo domina a totalidade do espaço que nos rodeia - converte-nos em indivíduos com princípio místico sobre a personalidade e sem território -, no entanto, do ponto de vista antropológico, ainda capazes de imaginar um novo espaço mais democrático e totalmente novo a partir da web 2.0.