SEGUNDA PARTE
2. Para uma estratégia de defesa à subversão espacial
2.4. O domínio software em Lev Manovich
O software tornou-se a nossa interface para com mundo, para com os outros, para com a nossa memória e a nossa imaginação - uma linguagem universal através da qual o mundo fala e um mecanismo universal no qual o mundo funciona. A eletricidade e motor de combustão está para o início do século XX, como software está para o início do século XXI. 80(Manovich, 2013, 2)
Na obra Software Takes Command (2013) o historiador de arte e professor de ciência da computação, o russo Lev Manovich (n. 1960), enceta uma epistemologia do software. Elabora uma importante teoria que postula o software enquanto produtor de uma cultura com história própria, ao qual Manovich apelidou de “estudos de software”. No centro da sua investigação o software aparece como mediador da experiência e expressão humanas.
78 Tradução livre: “It is obvious that information collection takes place in asymmetrical power relationships:
we rarely have a choice as to whether or not we are monitored, what is done with any information that is gathered, or what is done to us on basis of conclusions drawn from that information. If you want … make a phone call, … you are going to be subject to information gathering and you are going to give up some or all control over elements of that information. It is rarely a matter of explicit agreement in space of complete information and informed choice. You will have to fill out certain forms in order to receive critical resources or to participate in civic life, and you will have to consent to onerous terms of services in order to use software that your job may require.” (Brunton e Nissenbaum, 2015, 43)
79 Tradução livre: “it is an approach suited to situations in which we can’t easily escape observation but we must move and act but this problem is only the surface aspect of information collection, what we know we know” (Brunton e Nissenbaum, 2015, 43)
80 Tradução livre: “Software has become our interface to the world, to others, to our memory and our imagination - a universal language through which the world speaks, and a universal engine on which the world runs. What electricity and the combustion engine were to the early twentieth century, software is to the early twenty-first century.”(Manovich, 2013, 2)
Embora o software opere de forma oculta e subtil, o autor identificou um défice de estudo aos efeitos deste na vida contemporânea, desenvolvendo dessa forma uma importante obra acerca da linguagem binária do software, responsável pela modelação da vida das sociedades contemporâneas, como assume o autor, de forma perentória. Antes de mais, no ponto anterior, os autores Brunton e Nissenbaum, desenvolvem estratégias de defesa à vigilância através do desenvolvimento de ferramentas de software ao qual, podemos afirmar, Manovich define como “Software Cinzento”: de logística e de automação industrial, entre outros. Mas sobretudo, o que a obra de Manovich vem trazer ao pensamento contemporâneo é um alerta ao conhecimento de uma genealogia da ascensão do software, desde a PARC da Xerox que nasce em Silicon Valley, até os fenómeno atuais:
a omnipresença do software e da profunda raiz em quase todas as esferas da existência humana. Em particular, Manovich concentra-se no “Software Cultural”. Uma categoria de software por ele estabelecida, que molda de forma invisível a estética contemporânea. Uma espécie de software que estabelece o interface do utilizador (UIs) entre a produção dos média - do ponto de vista da web 2.0 - e os seus produtores. Um interface que apresenta as opções que o utilizador tem quando interage com o software: o design de Alt+R-hotkey, por exemplo, onde clicamos, onde são reproduzidos os vídeos e os sons. Para o autor, o interface representa um espaço-chave no qual um sem número de camadas convergem: os mundos virtuais e os seres humanos. Essa incorporação do software numa nova urbanidade, opera globalmente os média; transforma o produto artístico num abismo entre o tradicional médium e o moderno monomedium /metamedium, termos utilizados por Alan Kay (n. 1940) e Adele Goldberg (n. 1945) em Personal Dynamic Media (1977). Como forma de reforçar a sua convicção, Manovich constrói a base da sua teoria na obra de Kay e Goldberg, que estabelecem o software como um dos componente da cultura, como referimos anteriormente. A partir daqui, Manovich inicia uma investigação profunda ao interface e ao papel do software na produção multimédia.
Dessa forma, o autor ao invocar esses termos da computação, faz estabelecer a ideia de
“Software Cultural” - termo utilizado pela primeira vez por J. M. Balkin (n. 1956) em Cultural Software: A Theory of Ideology (1998) - que Manovich o utiliza de forma literal.
Nesta conformidade, o “Software Cultural”, segundo Manovich, faz parte da categoria de software que opera ações, normalmente associadas à cultura: criar, publicar, partilhar e misturar imagens fixas e sequências de imagens em movimento, desenho 3D, textos, mapas e elementos interativos. Além disso, combinam esses conteúdos em websites,
aplicações interativas, motion graphics, mundos virtuais 3D, entre outros. Assim Manovich, estabelece um sistema de softwares: “Software do Média” onde se encontram as ferramentas de programação computacional, como são exemplo os serviços de network e tecnologia de média social estabelecida pelo aparecimento da web 2.0 - onde o utilizador é o principal produtor de conteúdos artísticos (visual / textual) e informação (dados).
É neste sentido que o autor explora, não apenas a face técnica, mas também faz um exame ao que identifica como sendo uma das faces do software: a cultura. No entanto, segundo Manovich, tanto o software cinzento como o cultural, são responsáveis por moldar a experiência e estética humans através de mapas de bits e vetoriais:
Dentro do ambiente das aplicações informáticas, um utilizador trabalha com um ou mais documentos que contém conteúdo estruturado de uma maneira específica. O utilizador está ciente da importância dessa estrutura, mesmo que as aplicações de multimédia não utilizem o termo "estrutura de dados". O utilizador entende que a estrutura de dados determina qual conteúdo que pode ser criado e as operações que podem ser usadas para modelá-lo e modificá-lo. Se eu escolher os gráficos vetoriais como formato, isso implica que vou criar linhas retas e curvas e gradientes; Eu poderei remodelar qualquer linha no futuro sem perder qualidade; Também poderei obter impressões perfeitas em qualquer resolução. (…) o termo “estruturas de dados” têm um significado particular na ciência da computação, referindo-se a como são organizados os dados a serem processados por um programa. (...) uso esse termo para me referir ao nível de organização de dados, que se torna visível e acessível a um utilizador e, assim, torna-se parte de seu modelo mental do processo de criação e edição de média. (Manovich, 2013, 209) 81
Através daquilo que Manovich define por hibridação, uma espécie de ADN do software, estamos seguros que Alt+R-hotkey está presente da mesma forma no software cultural e o seu observador/utilizador é-lhe retirado a consciência de, por um lado, um mundo que simula todas as estratégias existentes no seu mundo-próprio subjetivo, por outro, através da low-fidelity da representação, patente em Alt+R-hotkey:
a simulação de software substitui uma variedade de materiais distintos e as ferramentas usadas para inscrever informações (ou seja, fazer marcas) nesses materiais com um novo meio híbrido definido por uma estrutura de dados comum. Por causa dessa estrutura
81 Tradução livre: “Inside the application environment, a user is working with one or more documents which contain content structured in a particular way. The user is aware of the importance of this structure—even though media applications do not use the term “data structure.” The user understands that the data structure determines what content can be created and the operations which can be used to shape and modify it. If I choose vector graphics as my format, this implies that I will be creating straight and curved lines and gradients; I will be able to reshape any line in the future without losing quality; (...) the term “data structures”
has a particular meaning in computer science, referring to how data to be processed by a program is organized. (...) using this term to refer to the level of data organization, which is made visible and accessible to a user and thus becomes a part of his/her mental model of the media creation and editing process.”
(Manovich, 2013, 209)
comum, várias técnicas que antes eram exclusivas da média, agora podem ser usadas juntas. Ao mesmo tempo, novas técnicas anteriormente inexistentes podem ser adicionadas, desde que possam operar na mesma estrutura de dados. Na discussão, estou apenas referindo o denominador comum - em que os algoritmos trabalham quando uma imagem é carregada na memória - uma matriz de pixels contendo valores de cores.) 82 (Manovich, 2013, 199)
Perante tudo isto, podemos afirmar que todas as categorias de software sofrem alterações na sua qualidade ao longo do tempo: «durante os anos 2000, a fronteira entre “informações pessoais” e “informações públicas” foi reconfigurada à medida que as pessoas começaram a colocar a sua informação multimédia, rotineiramente em sites de partilha multimédia e também comunicar-se com outras pessoas nas redes sociais [web 2.0].» (Manovich, 2013, 83 28) Dessa forma, Alt+R-hotkey oculta dos seus utilizadores a sua estrutura de informação.
Um consciência-bit-byte que revela inteiramente o seu Umwelt binário, camuflado por imagens. Coloca-o em confronto direto com essa estratégia de subversão da ordem dos espaços e que, provavelmente, o obriga a relacionar-se e a moldar-se pelas privações do domínio do tempo novo na web 2.0. Uma estratégia de defesa à tendência da destruição do espaço a partir da web 2.0, que, sob o olhar atento do domínio invisível do software, a incorporação da cibernética na nova urbanidade estabelece uma inquietante normalidade.
Segunda conclusão parcial
Ao criarmos Alt+R-hotkey, estamos a defender a ideia de anti-subversão, uma crítica ao que é aceite como arte mas também ao poder representado por esta e às instituições estabelecidas onde uma enorme quantidade de capital cultural e simbólico fora investido.
Através da web 2.0 que é a sua essência, expressão e estética visual do objeto artístico digital promovemos uma ordem e coerência discursiva, uma naturalização de mitos digitais condensados em práticas herdadas, convenções dogmatizadas e descontextualizadas. Ora, perante esta cidade web 2.0 que vemos e por isso nos olha, Alt+R-hotkey coloca uma questão fundamental: quais são na verdade as características e condições que definem a subversão contra a qual luta a estratégia da camuflagem digital? Como observa Sennett, as
82 Tradução livre: software simulation substitutes a variety of distinct materials and the tools used to inscribe information (i.e., make marks) on these materials with a new hybrid medium defined by a common data structure. Because of this common structure, multiple techniques that were previously unique to dierent media can now be used together. At the same time, new previously non-existent techniques can be added as well, so long as they can operate on the same data structure. (...) However, in this discussion, I am only talking about their common denominator—what the algorithms work on when an image is loaded in memory—an array of pixels holding color values.)(Manovich, 2013, 199)
83 Tradução livre: “during the 2000s the boundary between “personal information” and “public information”
has been reconfigured as people started to routinely place their media on media sharing sites, and also communicate with others on social networks” (Manovich, 2013, 28)
máscaras rituais da sociabilidade realmente não torna o Ser Humano mais primitivo culturalmente do que a mais simples página de arte para a Internet? Parece-nos que sim, através da estratégia da camuflagem ainda necessária à defesa da privacidade na web 2.0.
Parece ser válido o estudo de Abbott acerca dos padrões no Reino Animal aplicados como ciência da arte na Segunda Guerra Mundial, com o significado do privado substituindo-se ao do público através de um domínio total do espaço. Uma página web 2.0 não tem valor em si ou por si. Adquire-o por meio de estruturas de dados exógena que Alt+R-hotkey traz para a sua interpretação sejam elas culturais ou industriais, sejam elas visiveis ou invisiveis na rede de Internet. Aqui, o estatuto de Alt+R-hotkey baseia-se frequentemente (embora não exclusivamente) na (1) não divulgação generalizada do seu endereço WWW, (2) singularidade, (3) exibição em instituições de estatura como museus, leitões ou academias de artes. Alt+R-hotkey responde nos termos mais exatos possível: (1) criada num software cultural, (2) desfuncionalizou-se e inverteu-se face à fidelidade da qualidade das imagens que apresenta (3) ofereceu-se à rede através do seu alojamento público na web 2.0.