• Nenhum resultado encontrado

Domínio da violenta emoção logo após injusta provocação da vítima

3. DO CRIME PASSIONAL, DO DIREITO PENAL E PROCESSUAL PENAL

3.3. DO HOMICÍDIO PRIVILEGIADO

3.3.2. Domínio da violenta emoção logo após injusta provocação da vítima

Trata-se de outra modalidade de homicídio privilegiado, em que a emoção exerce papel fundamental na classificação, bem como a injusta provocação, pois ambos necessitam coexistir para que incida a hipótese de menor reprovação social da conduta do homicida.

A emoção de que trata o Código Penal é a alteração momentânea dos sentidos e difere em muito da paixão, conforme já foi esclarecido. À guisa de complemento algumas posições pictóricas são importantes. Immanuel Kant afirmava que a emoção é como uma torrente que rompe o dique da continência, e a paixão é o charco que cava o próprio leito infiltrando-se, paulatinamente, no solo (ELUF, 2003, p. 158). Capez, por sua vez, afirma que a ira momentânea configura emoção e exemplifica: o ódio recalcado, o ciúme deformado em posse doentia e a inveja em estado crônico retratam a paixão. A emoção é o vulcão que entra em erupção, a paixão é o sulco que é cavado na terra. A emoção é abrupta; a paixão é gradativa em sua gradativa invasão e permanência na alma humana. A paixão é pelo clube de futebol; a emoção, pelo gol marcado (CAPEZ, 2008).

É cediço, contudo, conforme se lê no artigo 28, do Código Penal, a emoção e a paixão não excluem a imputabilidade, mas a emoção pode funcionar como uma causa especial de diminuição de pena no homicídio doloso, ou como atenuante

genérica. A paixão não tem consequência nenhuma; é considerada irrelevante para a imputabilidade penal. O motivo de não constarem do artigo 26 do Código Penal como dirimentes, a fim de que haja exclusão da culpabilidade é simples: haveria de ocorrer uma perda total da capacidade de entender ou uma perda total do domínio volitivo, que se tenham convolado em patologia mental.

É cristalina a conclusão de que o uso indevido de paixão ou de emoção como dirimentes é feito contra legem55 ou no mínimo praeter legem56, porque o agente, o criminoso passional, em momento algum perde o seu discernimento a ponto de não ter compreensão de seus atos, portanto deve ser responsabilizado por eles. Inobstante a unívoca posição da doutrina, a tese mais utilizada da defesa, em casos de crimes passionais, é alegar o privilégio em razão de “injusta” provocação da vítima. A predileção não é sem motivo. A alegação de relevante valor moral ou social já não encontra acolhida nos dias de hoje. Raros os casos em que alguém lança mão de um argumento tão fraco e cínico, o de que matou por relevância social ou moral.

Eluf (2003, p. 158) cita o comentário de Magalhães Noronha sobre o crime passional:

A Escola Positiva exaltou o delinquente por amor e foi o bastante para que por passional fosse tido todo matador de mulher. A verdade é que, via de regra, esses assassinos são péssimos indivíduos: maus esposos e piores pais. Vivem suas vidas sem a menor preocupação para com aqueles por quem deveriam zelar, descuram de tudo, e em um dia, quando descobrem que a companheira cedeu a outrem, arvoram- se em juízes e executores. Não os impele qualquer sentimento elevado ou nobre. Não. É o despeito de se ver preterido por outro. É o medo do ridículo – eis a

55 Contra a declaração expressa da lei. 56 Para além da declaração da lei.

verdadeira mola do crime. Esse pseudo-amor nada mais é que sensualidade baixa e grossa.

A Jurisprudência contribuiu significativamente para o banimento de alegações de que se mata porque movido por sentimentos nobres: “jamais poderá ser considerado motivo de relevante valor moral o homicídio cometido por homem casado contra a amásia, impelido por egoísmo de ordem sexual”57, “ao indivíduo que mata a amásia, por lhe ter dito ela que gostava de outro homem, não pode ser reconhecido como o motivo de relevante valor moral”58

Quanto à alegação de violenta emoção após injusta provocação da vítima, há que se perscrutar o sentido da “injusta provocação”. Ora, é característica da tipificação penal ser estreita, ser precisa, mas em se tratando desse ponto a porosidade da “injusta provocação” permitiu outrora que a traição ou mesmo o desprezo sistemático, pedido de separação, dentre outros, fossem considerados como legitimamente enquadrados como atos de provocação injusta, em razão do androcentrismo de nossa sociedade. Todavia, não se observava que a violenta emoção a que se refere o Código Penal não é o “ódio recalcado” de que fala Capez. É uma categoria distinta. Por isso é muito difícil de que seja compatível com o conceito de paixão já discutido até aqui. Corrobora, por conseguinte, que se atua contra as disposições de lei, ou além do que preconiza o espírito da lei, por vezes apenas transformando as diferenças em desigualdades através do mascaramento dos institutos que abrandam as ações do criminoso passional.

57 Revista dos Tribunais: 375/164. 58 RT 487/304.

A história mostra que não poucas vezes o agente de crime passional já comparece armado para arrostar a “provocação injusta” e matar a sangue frio, mas sob o subterfúgio de que perdera o controle na situação. Desse modo, é impossível escapar à pergunta: não seria premeditação? Sim. Ao que sentencia a Jurisprudência: “o impulso emocional e o ato que dele resulta devem seguir-se imediatamente à provocação da vítima para configurar o homicídio privilegiado. O fato criminoso, objeto da minorante, não poderá ser produto da cólera que se recalca, transformada em ódio, para uma vingança intempestiva”59. “O homicídio praticado friamente não será privilegiado, não obstante a ocorrência de provocação”60. “O desafio da vítima, dizendo ao marido que empunhava um revólver não ser o mesmo homem e que nela não atiraria não configura a provocação injusta admitida pela lei penal, como capaz de suscitar a violenta emoção no provocado”61. “Evidente que não se pode vislumbrar no gesto da vítima que desfaz ou procura desfazer o namoro ou mesmo o noivado com o acusado, injusta provocação, capaz de privilegiar o homicídio”62.

Finalmente é importante ressaltar que a tese de homicídio privilegiado é decisão de competência do Júri, em razão de sua configuração constitucional e legal, por isso a acusação não pode, quando do oferecimento da denúncia, classificar o homicídio como privilegiado; não lhe é cabível esse tipo de julgamento. As causas minorantes da pena deverão ser apresentadas em plenário pela defesa, e admitidas ou não pelo Conselho de sentença. Importante também que, mesmo em fase recursal, os Tribunais não poderão modificar a decisão do Júri estabelecendo 59 RT 585/296. 60 RTJSP 128/459. 61 RT 475/275. 62 RT 508/334.

uma reclassificação de homicídio qualificado para homicídio privilegiado; o inverso é defeso em face à soberania das decisões do Júri Popular.

O Tribunal do Júri será mais bem estudado nos próximos tópicos.