• Nenhum resultado encontrado

METÁFORAS GEOMÉTRICAS E A TAXONOMIA DE GÊNERO

4. DA ANÁLISE DO CASO NIRVANA

4.1. METÁFORAS GEOMÉTRICAS E A TAXONOMIA DE GÊNERO

Wânia Izumino (2004, p. 23), citando Sérgio Adorno, afirma que o crescimento da criminalidade urbana nos últimos anos aparentemente reduziu a distância entre a realidade e o imaginário da violência das populações dos grandes centros, como Rio e São Paulo.

Essa hipertrofia da criminalidade tem tido reflexos significativos na curva ascendente dos delitos envolvendo questões interpessoais, em destaque para a questão de gênero; é o que se chama de banalização da violência contra a mulher, que é vista como um fato natural. A título de exemplo, muitas músicas que se popularizaram em diferentes épocas reproduzem essa naturalidade: “se te agarro

com outro te mato, te mando algumas flores e depois escapo”83, ou “entre tapas e beijos”84, ou mesmo “um tapinha não dói”85.

O aumento dos casos de violência contra a mulher encontra outros condicionantes sociais que, segundo Saffioti (2004), são desvantajosos para ambos os sexos porque atribuem comportamentos pré-moldados que se materializam em agressividade e recepção de agressividade. A autora recorre à teoria de Carl Gustav Jung, que afirma serem homem e mulher dotados de animus e anima. O animus seria o principio do masculino e anima, o princípio do feminino. Segundo a teoria jungiana, o ideal seria que ambos fossem igualmente desenvolvidos no homem e na mulher, porquanto resultaria em seres humanos bem equilibrados. No entanto, a sociedade estimula o homem a desenvolver seu animus em detrimento do desenvolvimento da anima. A sociedade age de modo inverso com a mulher, e essa atitude societária tem as suas consequências funestas: o animus desenvolvido e estimulado no homem o conduz a transformar a agressividade em agressão e, por outro lado, conduz a mulher à fragilidade para o enfrentamento da competitividade. Esse desequilíbrio favorece a manutenção do status quo do patriarcalismo e simultaneamente reproduz os valores androcêntricos; é um círculo vicioso.

Impende ressaltar que não estamos vitimizando a mulher como ser passivo e, portanto, despojada de agressividade. A mulher lança mão de agressões verbais, cujo uso se faz constantemente, o que não poucas vezes ocasiona a violência por parte dos homens, ainda que esta violência seja, na maioria das vezes, desproporcional ao agravo, pois está inserta em gramática sexual, ou seja, em

83

Esse é um trecho da música de Sidney Magal, gravada na década de 1970.

84 Leandro e Leonardo, década de 1990. 85 Furacão 2000.

conjunto de regras que definem os papéis de homens e mulheres em uma relação (SAFFIOTI, 2004).

Esse contexto de violência que é multifatorial, dentre os quais apresentamos algumas amostras da relação de causalidade, ele possui um fator de agravamento, qual seja, a violência contra a mulher é subnotificada. Dahrendorf aponta para o surgimento de áreas que ele denominou de “áreas de exclusão”, que seriam formadas por aqueles índices de criminalidade que permanecem desconhecidos propositalmente, ou seja, as violações às normas jurídicas que são repetidas e toleradas de modo sistemático. A teoria de Dahrendorf se reflete na pirâmide de litigiosidade citada por Izumino, a qual lhe dá o nome de metáfora geométrica, que nada mais é que a ilustração do movimento dos conflitos, desde a identificação até o julgamento por um tribunal de justiça. A exclusão dos casos se daria pelo que Izumino denomina de cultura jurídica, definida como “um conjunto de valores e interesses que orientam o comportamento das pessoas em relação aos direitos e ao Direito e influencia sua disposição para acionar ou não a Justiça.” (IZUMINO, 2004, p. 52).

O femicídio86, expressão usada por Saffioti, é emblemático das situações supra-expostas: inobstante as ações estatais que visam a coibir a violência que atinge a mulher, este tipo de violência continua a crescer; o femicídio é o último de uma série de atos violentos, atos estes que na maioria esmagadora das vezes,

86

Em Gênero, Patriarcado e Violência (Coleção Brasil Urgente). Editora Fundação Perseu Abramo, São Paulo. p. 48. Saffioti declara “Dada a força das palavras, é interessante disseminar o uso de femicídio, já que homicídio carrega o prefixo de homem”

figuram do lado exterior da pirâmide, ou compõem a estatística das áreas de exclusão.

No bojo dessas considerações, imprescindíveis ao estudo do caso Nirvana, está o conceito violência de gênero, que a essa altura necessita de maiores distinções taxonômicas, porque, no Brasil, ocorre grande confusão dos conceitos; usa-se, por exemplo, violência contra as mulheres como violência de gênero; comum é a mistura dos conceitos de violência doméstica com violência familiar.

O delineamento desses constructos mentais é importante, por esse motivo este capítulo traz a análise do fenômeno da violência obedecendo características específicas.

Saffioti (2004, p. 70) ensina que a violência de gênero é a categoria mais geral, por isso engloba os demais conceitos que passam a apresentar, como na relação genérico-específica, nuanças diferenciadas. A autora destaca que o conceito de gênero não apresenta os fatores desigualdade e poder como necessários. No entanto, o conceito de gênero é muito mais amplo que o conceito de patriarcado, que pode ser expresso como viriarcado, androcentrismo, falocracia, falo-logo- centrismo. Essa definição é extremamente relevante, visto que o conceito de gênero deixa em aberto a possibilidade de comportar o vetor da dominação e o vetor da exploração, que não são necessariamente masculinas; o patriarcado, por sua vez, tem o masculino preenchendo o polo ativo da dominação; gênero desconsidera quem figura no polo ativo da dominação. Além disso, essa distinção se faz relevante em razão de que gênero é um somatório de normas modeladoras dos seres humanos em homens e mulheres, muito embora se tenha o “hábito acadêmico” de se referir a essa desigualdade com o binômio homem-mulher, em que o diferente é

naturalizado. Não se percebe, assim, que essas diferenças são construídas pelas estruturas de poder e pela tradição cultural.

Ilustrando essa realidade conceitual, pode-se dizer que a relação de violência entre dois homens ou entre duas mulheres pode figurar sob a rubrica da violência de gênero; basta que, para isso, as relações sejam regidas pela gramática sexual insertas em contexto de disputa pelo sexo oposto, o que desmistifica a passividade feminina.

Estabelecidas essas linhas gerais, e raciocinando na mesma direção de Saffioti, pode-se afirmar que a violência contra as mulheres é espécie da violência de gênero, que pode se manifestar como violência doméstica e como violência familiar. Aquela é mais ampla, e favorecida pelo estabelecimento de um território físico, o lar, que reproduz a lógica falocrática, a qual o senhor de engenho exercia na casa grande e na senzala. Não se deve desconsiderar o território simbólico que é dominado pelo “patriarca”, por isso a violência também pode ser perpetrada pela mulher, ainda que em menor escala, contra os filhos e outros componentes do lar.

Izumino, (2004, p. 67) citando Melo e Teles, arremata:

Violência doméstica é aquela que ocorre dentro de casa nas relações entre pessoas da família, entre homens e mulheres, pais/mães e filhos, jovens e pessoas idosas. Podemos afirmar que independentemente da faixa etária das pessoas que sofrem espancamento, humilhações e ofensas nas relações descritas, as mulheres são o alvo principal [...] Há os que preferem denominá-la violência intrafamiliar e, neste caso, pode ocorrer fora do espaço doméstico, como resultado das relações violentas entre membros da própria família.

A linha que separa a violência doméstica da violência familiar é muito tênue, mas Izumino (2004, p. 69) declara que

Aqueles que defendem o uso da categoria violência familiar, argumentam que o principal problema reside na violência conjugal e que os membros adultos de uma família são igualmente violentos uns com os outros. Para os pesquisadores afiliados a essa corrente, haveria uma neutralidade na distribuição de poder entre os gêneros nas relações entre parceiros íntimos.

Estabelecidos esses contornos doutrinários, para o estudo do Caso Nirvana, a nossa opção foi a de defini-la como “Violência Contra a Mulher” em virtude de a Convenção de Belém do Pará, em seu artigo 2º assim a designar:

A violência contra a mulher abrange a violência física, sexual e psicológica: (a) ocorrida no âmbito da família ou unidade doméstica ou em qualquer relação interpessoal, quer o agressor compartilhe, tenha compartilhado ou não da mesma residência com a mulher, incluindo-se, entre outras formas, o estupro, maus tratos e abuso sexual; (b) ocorrida na comunidade e cometida por qualquer pessoa, incluindo, entre outras formas, o estupro, abuso sexual, tortura, tráfico de mulheres, prostituição forçada, sequestro e assédio sexual no local de trabalho, bem como em instituições educacionais, serviços de saúde ou qualquer outro local.

Finalmente, conforme leciona Saffioti (2004), há que se considerar que a ruptura da integridade como critério de avaliação de um ato como violento ou não, situa-se no terreno da individualidade, o que significa dizer que a violência, entendida desse modo, não encontra lugar ontológico87.

Fundamentalmente por isso, é preferível trabalhar com o conceito de direitos humanos, entendendo-se por violência em geral e especificamente contra a mulher como todo agenciamento capaz de violá-los. Obviamente que essa assertiva conduz a uma releitura dos direitos humanos que, desde a Revolução Francesa, foram pensados no masculino: Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, na

87

Saffioti explica que “Se não existe uma percepção unânime da violência, cada socius definindo-a como a sente, não se pode fazer ciência sobre a violência caracterizada como ruptura de integridades, uma vez que não há ciência do individual”

medida em que o homem sempre foi tomado como protótipo da humanidade. Bastaria mencionar o homem para que a mulher também estivesse contemplada, no entanto, isso não se mostrou verdadeiro. Bastou a Olympe de Gouges elaborar Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, para que fosse sentenciada à guilhotina em 1792 (SAFFIOTI, 2004).