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4. DA ANÁLISE DO CASO NIRVANA

4.4. DA PRONÚCIA

Nucci (2008) ensina que a pronúncia é uma decisão interlocutória mista que julga admissível a acusação, remetendo o caso à apreciação do Júri. É uma decisão mista, porque encerra a fase de formação da culpa, inaugurando a fase de

preparação do plenário, que levará ao julgamento de mérito. Mas, ainda que se trate de uma decisão interlocutória, a pronúncia mantém estrutura de sentença, ou seja, deve conter o relatório, a fundamentação e o dispositivo.

A finalidade da fase preparatória de formação da culpa, como procedimento vestibular, ou seja, antes que se remeta o caso à apreciação dos jurados, pessoas leigas, é a de evitar o erro judiciário. O juiz pode, finda a preparação do feito, pronunciar ou não o réu, mas, para que essa opção seja justa e legítima, o mínimo que se pode exigir é a comprovação da materialidade, ou seja, a prova da existência do crime, e indícios suficientes de autoria, que são os indicativos, ainda que indiretos, porém seguros, de que foi o réu o agente da infração penal (NUCCI, 2008).

Nessa fase prevalece o brocardo jurídico in dubio pro societate, cujo significado essencial é que a atuação jurisdicional deve pronunciar o réu, ainda que as provas sejam frágeis. Esse brocardo se opõe ao in dubio pro reo, que será mais utilizado no curso do processo com o contraditório e a ampla defesa. Essa é a sistemática adotada pela legislação brasileira. Não se envia ao Tribunal do Júri a chamada “causa perdida”. Nucci (2008, p. 61) observa:

Somente deve seguir a julgamento pelo Tribunal Popular o caso que comporte, de algum modo, conforme a valoração subjetiva das provas, um decreto condenatório. O raciocínio é simples: o juiz da fase de pronúncia remete a julgamento em plenário o processo que ele, em tese, poderia condenar, se fosse o competente. Não é questão de demandar certeza de culpa do réu. Porém devem-se reclamar provas suficientes. Havendo a referida suficiência, caberá ao Conselho de Sentença decidir se condena ou se absolve.

Ressalte-se mais um ponto relevante que demonstra as dificuldades concernente ao Tribunal do Júri: o quadro probatório está sujeito à avaliação axiológica do magistrado, por isso a decisão pode variar. Nucci (2008, p. 62) critica:

A suficiência de provas deve espelhar uma dúvida razoável. Um determinado magistrado, analisando um conjunto probatório, condenaria; outro poderia absolver. Envolvida está a valoração da prova que, com certeza, varia de pessoa para pessoa, logo, de juiz para juiz.

Diante dessa valoração, é lícito concluir que em quadros probatórios fortes contra o réu, como o do Caso Nirvana, a possibilidade de que o discurso discriminatório de gênero influencie o juiz é diminuta, pois ele poderia estar julgando “manifestamente contra as provas colhidas”. Mas, em quadros probatórios mais fracos, a possibilidade de o juiz se deixar seduzir pelos argumentos da defesa é bem maior, notadamente se o juiz concorda com a postura androcêntrica presente no Brasil.

No caso Nirvana o réu, Mario Tasso, foi pronunciado de acordo com a denúncia oferecida pelo Ministério Público: Artigo 121, § 2º, inciso IV, ou seja:

Art. 121 - Matar alguém: Homicídio qualificado.

§ 2º - Se o homicídio é cometido:

IV - à traição, de emboscada, ou mediante dissimulação ou outro recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido;

A defesa usou de todos os meios possíveis para, ratificando o uso do discurso discriminatório de gênero, conseguir que o réu não fosse pronunciado. Assim se pronuncia a defesa:

Dada a alegação de que o homicídio foi cometido mediante as condições descritas pelo libelo acusatório; entretanto, em momento algum do inquérito policial ficou demonstrada a existência dessas condições, e, ao contrário e a todo o tempo, testemunhas mencionaram o fato de ter o réu cometido o homicídio em estado alterado, de extremo nervosismo e passionalismo. Desta feita, torna-se evidente que o réu não estava motivado, como tenta fazer descrever o libelo acusatório, e conforme se demonstrará...estava si o réu impelido por forte emoção, decorrente de forte emoção decorrente de violenta discussão com a vítima ocorrida no instante da prática do ato criminoso. Em plenário, se provará a inocência do acusado, por todos os meios de prova em direito admitidos. Em consequência, deve-se desqualificar o crime de homicídio qualificado para homicídio simples, incidindo a diminuição de pena prevista no artigo 121, §1º, do Código Penal, entre outras teses defensivas.

O motivo da tentativa de desqualificação é óbvia: atenuar os fatos e minorar (e em muito) a pena, pois a pena mínima do homicídio qualificado é de 12 anos e a mínima do homicídio simples é de 6 anos, conforme descreve o Código Penal:

Homicídio simples Art. 121 - Matar alguém:

Pena - reclusão, de 6 (seis) a 20 (vinte) anos. Caso de diminuição de pena

§ 1º - Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, o juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço.

A tese da defesa é a continuidade da legítima defesa da honra, conforme explica Evandro Lins e Silva (apud ELUF, 2003, p, 163):

Nos casos passionais, a legítima defesa da honra foi uma criação dos próprios advogados para chegar a um resultado favorável que fosse além do privilégio. Com isso, tornou-se muito frequente, aconteceu em inúmeros casos – eu próprio defendi diversos – o Júri aplicar uma pena que equivalia à pena do homicídio culposo. Como o réu era primário, o juiz aplicava a pena de dois anos e concedia o sursis. Com isso, o acusado não ia para a cadeia e, em dois anos, estava livre de qualquer dívida para com a Justiça.

As semelhanças não são, definitivamente, meras coincidências. Lins fez discípulos; a defesa de Mário Tasso ampliou, por analogia interna, o conceito de “relevante valor social ou moral”, “domínio de violenta emoção”, “injusta provocação da vítima”. Porque permanece a ideia de que o homem traído tem o direito de matar a mulher, ainda que ele próprio tenha traído. Mário Tasso admite que as traições eram “recíprocas”90

A tese de legítima defesa da honra encontra no Júri Popular um terreno fértil para prosperar, dependendo do contexto geral, consoante discutiremos melhor adiante; importa frisar que a defesa afirmou acima que “Em plenário, se provará a

inocência do acusado, por todos os meios de prova em direito admitidos” (grifo nosso).

Izumino (2004, p. 251), ao analisar as vicissitudes a que a Justiça está sujeita na solução para o conflito de gênero, declara que:

Observando quais as mudanças e continuidades que marcam o papel da Justiça, em relação aos casos de conflito de gênero, constata-se que, se por um lado, o argumento (explícito) da legítima defesa da honra não foi adotado em nenhum caso, por outro lado o conflito de gênero continua sendo tratado de forma diferenciada pela Justiça. Para isso, os agentes jurídicos adotam outras estratégias que permitem que, mesmo em caso de condenação, os casos motivados por questões relativas ao relacionamento entre um homem e uma mulher resultem na aplicação de penas menores.

A ponderação de Izumino atesta a constatação de que o fantasma da legítima defesa da honra ainda ronda os Tribunais. Embora não se utilizem abertamente os argumentos do passado, a essência ainda está presente no discurso do acusado, das testemunhas de defesa e especialmente nas teses defensivas, que têm o tom esquálido e monótono dos artifícios usados por Lins e Silva no passado.

Retomando a discussão do terreno fértil para que prosperem teses discriminatórias no Tribunal do Júri, deve-se considerar a crítica tecida por Nucci (2008) quanto à sentença de pronúncia, no que tange à influência que os jurados podem sofrer pelo argumento proveniente da autoridade judiciária. Ele argumenta que, mesmo com a reforma no Tribunal do Júri feita pela Lei 11.698/08, a questão relativa ao conteúdo da pronúncia permanece viva, pois o juiz deve compor a motivação da decisão com comedimento no uso das palavras e expressões, bem como o raciocínio envolvido no juízo de admissibilidade da acusação.

Nucci (2008) admite que não é tarefa fácil proferir uma sentença de pronúncia isenta e imparcial. Às vezes, essa tarefa é mais difícil que proferir uma sentença condenatória. Afinal, nesta o juiz dispõe de fundamentação livre; naquela, porém, em havendo uma fundamentação exagerada, certamente, o alvo será o jurado. Para comprovar sua hipótese, o autor realizou uma pesquisa em 1997, com 574 jurados

que atuam em São Paulo, especificamente no Terceiro Tribunal do Júri da Capital. Os dados obtidos foram os seguintes: mais de 60% dos jurados consideram o juiz presidente a pessoa que mais inspira confiança no Tribunal do Júri; quase 20% admitiram que podem sofrer influência da leitura da sentença de pronúncia em plenário.

Essa influência é atestada em função de os jurados terem consciência de que o juiz é imparcial; ao ouvir a sentença de pronúncia é quase automática conclusão de que se o juiz se convenceu, porque eu não me convenceria? O teor da sentença de pronúncia, pois, influencia os jurados, que podem se achar limitados pelo que declarou o magistrado; o peso da autoridade é significativo, e isso é um fator adicional na problematização do Tribunal do Júri no exercício de seu papel na solução do conflito de gênero.