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Capítulo IV: Exemplaridade Punitiva e Efeito Público

4. Don Carlos Ometochtzin

A queima de Don Carlos de Texcoco foi antecedida por seis meses de investigações, para as quais o inquisidor Zumárraga contou com a ajuda de boa parte dos evangelizadores da região acolhua. O caso é revelador de uma complexa rede sociopolítica e exemplifica o caos das primeiras décadas da conquista espanhola no México. As intrigas dispostas no processo envolveram as brigas sucessórias entre os líderes indígenas de Texcoco, as reorganizações instituídas pelo domínio espanhol e as tentativas dos franciscanos para conter a permanência das devoções indígenas.

Apesar das dificuldades informativas com relação à vida de don Carlos, antes de seu encontro com a Inquisição episcopal, em junho de 1539, sua posição dentro da nobreza indígena de Texcoco pode ser redigida com relativa segurança. Carlos Ometochtzin era neto de Netzahualcóyotl, o famoso tlatoani que governou Texcoco no final do século XV. Seu pai era Nezahualpilli e esteve a cargo da zona acolhua no momento da irrupção espanhola. Com a paternidade em comum, don Carlos era irmão de don Fernando Ixtlilxóchtli, fiel aliado de Cortes nas guerras de conquista. Ele era fruto do relacionamento entre Netzahualpilli e uma concubina pertencente à elite tepaneca. Suspeita-se que seu nascimento tenha ocorrido entre os anos de 1504 e 1509. Apesar da imprecisão, é presumível que tivesse mais ou menos 30 anos na época de sua execução, levando em consideração a idade das testemunhas que cresceram com Ometochtzin.470 O processo inquisitorial sugere

que don Carlos tenha recebido o batismo por volta de 1524. Em 1539, o réu afirmou ser “cristiano bautizado, y que puede haber quince años, poco más o menos, que se bautizó en el dicho pueblo de Texcoco”471.

Don Carlos se auto designou perante o Inquisidor como “Chichimecatecotl” (senhor chichimeca), uma titulação ostentada pela elite governante da região acolhua. Apesar da sugestão do nome, suas tentativas de

470 AGN, Inquisición, vol. 2 (part. 2), exp. 10, fs. 331v-335v. 471 Ibidem, f. 316.

ascensão a um posto de liderança careceram do reconhecimento das elites locais. As constantes atribuições historiográficas ao cargo de “cacique de Texcoco”, supostamente exercido por don Carlos, foram um erro recorrente na literatura sobre o caso. Equívoco advindo, em grande parte, das especulações feitas em 1910, com a publicação paleográfica do processo pelo Archivo General de la Inquisición, no México.472

Quando don Fernando Ixtlilxóchitl acompanhou o conquistador Hernán Cortés em sua expedição às hibueras, a liderança aculhuque ficou a cargo de dois de seus irmãos.473 O primeiro foi don Jorge Yoyotzin (1532-1535) e,

consecutivamente, don Pedro Tetlahuehuequetitzin (1535-1539). Quando don Pedro faleceu, Carlos tentou ocupar a liderança que o irmão paterno deixava em aberto. E no momento em que foi processado, don Carlos tentava articular sua liderança junto aos demais membros da elite indígena, apesar disso, não houve respaldo das autoridades espanholas. O vice-rei, don Antonio de Mendoza e a Audiência Real delegaram o cargo de governador a don Lorenzo de Luna. A nomeação de Luna sobrepunha a hierarquia tradicional de governo, e o cargo funcionou em paralelo aos tlatoque/caciques, desde 1538. Naturalmente, a ascensão do governador rompia com a autonomia indígena nas nomeações de suas lideranças. Afinal, ainda que respeitassem as linhas de parentesco, os espanhóis fizeram uso dessas relações, privilegiando os indivíduos que lhes pareciam mais favoráveis.474

A falta de encaixe de don Carlos em meio às turbulências administrativas provocadas pelas reorganizações espanholas se agregaram, em seu desfavor, ao pouco reconhecimento por parte da elite local. As claras dissidências aparecem

472 GONZÁLEZ OBREGÓN, Luis (dir.). Proceso Inquisitorial del Cacique de Tetzcoco. México:

Eusebio Gómez de la Puente, 1910.

473 Uma delimitação da linha sucessória de Texcoco pode ser encontrada em, TAVÁREZ

BERMUDEZ, David. Las Guerras Invisibles: devociones indígenas, disciplinas y disidencias en el México Colonial. México: CIESAS, 2012, pp. 89-94

474 GIBSON, Charles. Los Aztecas Bajo el Dominio Español 1519-1810. México: Siglo XXI, 1981,

pp. 157-170; LOCKHART, James. Los Nahuas Después de la Conquista: historia social y cultural de los indios del México central, del siglo XVI al XVIII. México: FCE, 1999, pp. 50-53.

expressas em seu processo inquisitorial. Os testemunhos dos irmãos e da esposa de don Carlos relataram ao inquisidor que ele “estaba mal con ella, y también con sus hermanos”.475 Foi descrito como um homem de caráter instável e pouco querido

pelos parentes; era chamado de “loco” e “apartado de sus hermanos”.476 Os

esforços de don Carlos Ometochtzin para ascender à liderança de Texcoco acabaram, drasticamente, frustrados pela intervenção Inquisitorial. Poucos meses após o falecimento do irmão que ele tentava suceder, foi encerrado a mando de Zumárraga no cárcere do Santo Ofício. Ometochtzin foi processado como herege dogmatizador e permaneceu preso, por seis meses, saindo apenas para cumprir a pena capital.

Os mal-entendidos que o réu manteve com muitos dos membros de sua própria família contribuíram para declarações mais enfáticas nos testemunhos que compõem seu inquérito. Don Carlos parecia isento de qualquer protecionismo de grupo e à mercê dos agravos gerados pelas intrigas familiares.

O historiador Robert Ricard, em sua conhecida obra sobre a evangelização do México, ressaltou a possibilidade de um complô indígena contra de don Carlos. Para o autor, é notável “ver cómo saben los nativos utilizar con suma habilidad los medios que les proporciona la justicia europea para saciar sus odios y satisfacer sus personales venganzas”477. Não obstante, como considerado

anteriormente, por maior que fosse a sagacidade de muitos indígenas no novo cenário que se impunha, era cedo para tal domínio ante as instituições espanholas que iniciavam seu enraizamento na Nova Espanha. Os três anos de funcionamento do tribunal episcopal, que antecederam o processo contra don Carlos, não parecem suficientes para fornecer tamanha habilidade a seus detratores. As deficiências diplomáticas do condenado não abarcam a complexidade e, tampouco, explicam a totalidade dos eventos que culminaram em sua execução.

475 AGN, Inquisición, vol. 2 (part. 2), exp. 10, f. 303. 476 Ibidem.

As investigações que serviram de base para a condenação de don Carlos tiveram seu prelúdio na denúncia de Francisco Maldonado, um de seus sobrinhos que morava no povoado de Chiconautla. Na época, a conselho do padre provincial, Francisco e outros jovens indígenas convertidos estavam à frente de uma série de procissões feitas com o intuito de interceder pela longa estiagem que assolava o Vale, “y porque moría mucha gente”.478 Don Carlos, em visita à região de

Chiconautla, notou o empenho do sobrinho no auxílio e na iniciativa que mantinha junto aos evangelizadores na cristianização da província. Francisco e outros indígenas obedeciam aos rigores ensinados pelos evangelizadores e conservavam penitências de restrição alimentar – “en aquellos días no comían sino pescado”479.

Perante a autoridade do tio, Francisco foi severamente advertido por sua cooperação com os regulares e interrogado acerca dos motivos que o levavam a fazer as tais “rogativas y disciplinas e el pueblo de chiconautla”480.

Segundo o denunciante de seu processo, don Carlos teria dito ao sobrinho que a doutrina cristã não era nada, reprovando a reverência aos evangelizadores e enaltecendo os antepassados da região:

(…) ‘pobre de ti, en qué andas con estos indios, (…) piensas que es algo lo que haces’, dándole a entender que era ignorante y simple, y que no sabía lo que hacía; ‘quieres tú hacer creer a éstos lo que los padres predican y dicen, engañado andas, que eso que los frailes hacen es su oficio (…), pues agote saber que mi padre e mi abuelo fueron grandes profetas y dijeron muchas cosas pasadas y por venir, y nunca dijeron cosa ninguna de esto, (…) y eso de la doctrina cristiana no es nada, ni en lo que los frailes dicen no hay cosa perfecta’ (…).481

478 AGN, Inquisición, vol. 2 (part. 2), exp. 10, f. 238. 479 Ibidem.

480 AGN, Inquisición, vol. 2 (part. 2), exp. 10, f. 240. 481 Ibidem, f. 240-240v.

Seguindo o incidente de Chiconautla e após o início das investigações inquisitoriais, a teia de acusações contra Ometochtzin se tornou cada vez mais intrincada. Para além das falas incômodas aos ouvidos dos evangelizadores, em meio às posses do acusado, foi encontrada uma grande variedade de efígies e outros itens devocionais.482 Nos procedimentos do Santo Ofício, os índices

heréticos delineavam, paulatinamente, a silhueta jurídica de don Carlos. Em adição, seus laços de parentesco em nada jogavam ao seu favor.

É possível notar que as inimizades de don Carlos não se limitaram aos desentendimentos com o sobrinho constrangido. Sua conduta dentro do círculo de parentesco não cumpria aos anseios dos entes próximos e, menos ainda, aos ideais familiares fomentados pelos evangelizadores. Uma das irmãs de don Carlos, doña Maria de Texcoco, frisou que o réu era “mal cristiano”, não frequentava as missas e nunca se confessava.483 A viúva do irmão don Pedro contou ao bispo inquisidor que

o cunhado havia tentado – contra a sua vontade – tomá-la como concubina após a morte do marido.484 Para o inquisidor Juan de Zumárraga, doña Inés de Iztapalapa,

sobrinha de don Carlos, admitiu ser concubina do réu há anos – relacionamento que gerou duas filhas:

(…) Dijo que puede haber siete años, poco más o menos, quel dicho don Carlos hubo a ésta que declara, y que tuvo acceso con ella carnalmente, y ésta que depone parió dos veces del dicho don Carlos, su tío, dos hijas, la una de la cuales es muerta, que la otra tiene consigo ésta declarante, y quel dicho don Carlos la tuvo por manceba tiempo de tres años, poco más o menos, a ésta que declara, y después la dejó y se apartó della, e que después que se casó el dicho don Carlos, se ha echado con ésta que declara solas dos veces e no más.485

482 Ibidem, f. 242-243v. 483 Ibidem, f. 256v. 484 Ibidem, f. 257-258. 485 Ibidem, f. 247v.

Doña Maria também se mostrou insatisfeita com o tratamento que recebia do marido don Carlos. Segundo o depoimento, “los primeros dos años fueron bien casados de dos años a esta parte el dicho don Carlos le ha dado mala vida a ésta que depone, e no sabe la causa por qué”486. O próprio filho de don Carlos

– “de edad de diez o onze años” – terminou interrogado pelo Santo Ofício. Questionado pelo Inquisidor, “si se ha criado en la casa de dios”, o jovem Antonio respondeu “que no porque (…) su padre decía e mandaba que no fuese a la yglesia”.487

No decorrer de todo o processo, as acusações e insatisfações surgiam e se reafirmavam. Os testemunhos construíram pouco a pouco a imagem de um homem combativo, insatisfeito e que se opunha de forma veemente aos evangelizadores. O batismo e o casamento de don Carlos não o impediram de dar continuidade aos modos indígenas. Ele manteve sua sobrinha como concubina e exigiu a tutela da viúva de seu irmão como de costume aos hábitos indígenas.488

Contudo, a persistência poligâmica e o incesto não sofreram grandes perseguições em meio aos processos contra indígenas. A pouca atenção às faltas sexuais é facilmente denotada quando a colocado ao lado do combate à persistência das práticas devocionais e frente aos enunciados que mal diziam ou demonstravam recusa ante a evangelização. Como postulado por Christian Duverger, os maldizeres contra o trabalho dos evangelizadores e o cristianismo são um agravante mais significativo e explicam melhor a execução dele.489 Afinal,

sentenciado como “herege dogmatizador”, o réu foi acusado explicitamente de fazer proselitismo de suas heresias.

A compreensão dos agravantes jurídicos dos processos é de fundamental importância. Ainda assim, a complexidade dos processos de Inquisição

486 Ibidem, f. 260. 487 Ibidem, f. 259-259v. 488 Ibidem, f. 254

489 DUVERGER, Christian. La Conversión de los Indios de Nueva España. México: FCE, 1993, p.

impede uma análise dessecativa e limitada à exclusividade do inquérito. Dentro dos procedimentos jurídicos do Santo Ofício, a combinação de muitos delitos gerava efeitos contundentes no pronunciamento das sentenças. Ademais, é preciso considerar que a representação dos fatos no âmbito do processo era efetivada sob o horizonte do efeito social e futuro das penas instituídas.490 É inviável desconectar

os elementos da composição do relato processual em seu conjunto, sob o risco de se deixar esvair as múltiplas preocupações que pesavam na resolução do inquisidor. Atentando para a sucessão da trama, é possível restituir a pluralidade semântica que circula o acusado e cria a figura do herege.491

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