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Capítulo IV: Exemplaridade Punitiva e Efeito Público

1. Punição e espacialidade

A montagem exemplar das punições idealizadas por frei Juan de Zumárraga privilegiou os locais de maior sociabilidade indígena. Os grandes tianguis ou mercados a céu aberto e as principais ruas foram os palcos escolhidos para execução das punições e exibição dos indígenas condenados pela Inquisição. Como de costume à prática inquisitorial, a visibilidade era fundamental para a produção do efeito coletivo almejado por meio dos castigos. A exposição dos réus, a declaração de seus delitos e a expiação pública deveriam aparecer a todos. Os princípios punitivos fundamentais do Santo Ofício almejavam, como resultado final, mais a “perturbação de consciências” do que o castigo individual.428 A Inquisição

buscava dar visibilidade acerca do que era combatido, ao mesmo tempo em que inibia – mediante o sofrimento e escárnio do condenado – comportamentos semelhantes aos dos castigados.

As penas impostas pelo tribunal episcopal estiveram limitadas a sete categorias, por vezes acumuladas em uma mesma sentença, segundo o julgamento do inquisidor. A sobreposição das penas indicava as etapas que o condenado deveria cumprir. Podem ser constatadas 13 sentenças pronunciadas por frei Juan de Zumárraga em um total de 17 processos finalizados (Quadro V). O escárnio ou humilhação pública e os açoites preponderaram na administração dos castigos, seguidos pelas penas de reclusão penitencial, abjuração, desterro e confisco dos bens. Como ressaltado anteriormente, apenas um processo foi finalizado com a execução do condenado. 429

Observa-se, no quadro V, a tradicional humilhação pública imposta pelo Santo Ofício, a qual tomou lugar em 11 do total de casos sentenciados, ocupando o primeiro plano na distribuição das penas. Na sequência, de caráter igualmente

428 RICOEUR, Paul. A memória, a História, o Esquecimento. São Paulo: Ed. Unicamp, 2007, p.

339.

429 Em meio aos 15 processos contra indígenas, verifica-se apenas o pronunciamento de 13

sentenças. Os dois casos remanescentes encontram-se mutilados, impedindo a verificação da forma em que foram concluídos os inquéritos. Cf. Quadro V.

expositivo, os açoites atingiram nove das sentenças pronunciadas. A generalização das duas penalidades evidencia a importância concedida pela Inquisição na desmoralização dos condenados diante dos expectadores. Como ressaltado por Michel Foucault, era sobretudo nos corpos dos condenados que incidia a montagem jurídica do Antigo Regime. Eles foram tomados como o “suporte público” e a “peça essencial” para o alcance massivo dos mecanismos de justiça. Assim como as instâncias civis, a Inquisição privilegiou os corpos como o local onde a justiça deveria se tornar “legível para todos”.430

Seguindo os protocolos inquisitoriais, os indígenas condenados pela inquisição episcopal foram exibidos como designavam as diretrizes instituídas pela prática condenatória do Santo Ofício:

(…) Sacados de la cárcel deste Santo Oficio donde están presos, y caballeros, en sendas bestias de albarda, atados a los pies y las manos en voz de pregonero que manifiesten sus delitos, desde la dicha cárcel sean llevados (…), desnudos desde la cintura arriba, y las espaldas, por el verdugo les sean dados muchos azotes hasta que sean llevados al tianguis de Tlatelolco de Santiago desta ciudad, y subidos a donde está la horca, públicamente sean trasquilados (…)431

Tratava-se, como destacado, de uma exposição itinerante do condenado, desde o cárcere até o local de maior apelo público. O réu era obrigado a percorrer o caminho despido acima da cintura e montado em uma mula ou animal semelhante – “bestias de albarda”. Parcialmente despojados de suas vestimentas, os condenados também tinham seus cabelos raspados, um sinal de vergonha, penitência e perda da vaidade dentro das concepções do ocidente cristão. Os cabelos tosados ou “trasquilados”, como aparece nos expedientes, eram especialmente humilhantes para os indígenas penitenciados. Os castigos

430 FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes, 2007, p. 38. 431 AGN, Inquisición, vol. 37, exp. 1, f.9v.

administrados por Zumárraga podiam ter efeitos imprevisíveis nas apreensões indígenas.

Entre as populações nahuas, cortes abruptos e desmedidos dos cabelos estavam associados à perda parcial ou completa da vitalidade dos indivíduos. Os cabelos (tzontli) eram considerados um receptáculo de força e capa protetora da cabeça. Eles impediam a fuga do tonalli, uma das forças anímicas dos seres humanos, dentro do pensamento nahua. Apesar de circular por todo o corpo dos indivíduos, era na cabeça que o tonalli encontrava seu alojamento e nos cabelos sua principal proteção.432

O tonalli pode ser traduzido como uma força, fonte de vigor, calor e crescimento dos jovens. Era o resultado de forças externas e condicionantes da sorte e da vida de cada pessoa. Apesar da grande variedade de penteados e cortes usados pelos indígenas, nunca se raspava por completo o cabelo na região mesoamericana. Mantinha-se um cuidado especial com a parte posterior da cabeça, onde os cabelos não deveriam sofrer grandes aparos. O corte completo era aplicado, em tempos pré-hispânicos, apenas com o intuito de desferir uma punição extrema, normalmente associada a delitos muito graves. O corte abrupto da parte mais longa do cabelo também era praticado pelos guerreiros que se submetiam cativos durante as guerras, mantendo as mechas sob seus domínios. Tratava-se de um rito de guerra, uma forma de reter as forças do guerreiro subjugado e ostentação de um troféu de captura.433

Tanto o corte abrupto, quanto a total retirada dos cabelos deixavam os indivíduos expostos à possibilidade de perda ou enfraquecimento do tonalli. Nas concepções dos antigos nahuas, o abandono dessa energia vital podia significar o adoecimento e levar, até mesmo, à morte.

432 LOPÉZ AUSTIN, Alfredo. Cuerpo Humano e Ideología: las concepciones de los antiguos

nahuas. México: UNAM, 1980, pp. 210-225.

Quadro V – Sentenças Pronunciadas contra indígenas

Caso Acusados Desfecho Data AGN, Inquisición

1 Antonio Tlacateccatl; Alonso Tlacochcalcatl e

Maria (filha de Tlacateccatl)

a. humilhação pública; b. reclusão penitencial de um ano em monastério; c. desterro (não especificado)

07/09/1536 Vol. 37, exp. 1, fs. 1-10

3 Martín Ocelotl a. confisco total dos bens; b. humilhação pública; c.

desterro perpétuo da Nova Espanha

09/02/1537 vol. 38, exp. 4, fs. 132-142

4 Andrés Mixcóatl; Cristóbal Papalotl a. humilhação pública; b. abjurar em público; c. reclusão penitencial de um ano em monastério d. 100 açoites

12/1537 vol. 38, exp. 7, fs. 182-202

5 Ana de Xochimilco (curandeira) a. humilhação pública; b. abjurar em público; c. 100 açoites

12/04/1538 “Legajos Sueltos”

6 Francisco de Coyoacán a. humilhação pública; b. 100 açoites;

c. confisco de metade dos bens

10/1538 vol. 23, exp. 1, fs. 3-9

8 Pedro Atonal; Miguel Quiao; Miartín

Tlacochcalcatl; Francisco Huitzinahuatl; Pedro tlacateccatl.

a. humilhação pública; b. 100 açoites; c. abjurar em público; d. confisco dos bens

20/11/1538 vol. 37, exp. 2, fs. 11-17

9 Marcos Hernández Atlahuacatl; Francisco de

Tlatelolco

a. humilhação pública; b. abjurar em público; c. desterro; d. reclusão penitencial em hospital

20/06/1539 vol. 42, exp. 17, fs. 142-146

10 Miguel Puchtecatlailotlac reclusão penitencial em monastério 2105/1540 vol. 37, exp. 3, fs. 20-46

11 Don Carlos Ometochtzin a. humilhação pública; b. abjurar em público; c.

execução na fogueira

20/11/1539 vol. 2 (part. 2), exp. 10, fs. 237-340

12 Cristóbal, Catalina e Martín de Ocuituco a. humilhação pública; b. ouvir missa em pé; c. 100 açoites; d. desterro (não especificado)

10/10/1539 vol. 30, exp. 10 (antes exp. 9), fs. 148- 171

13 Alonso Tlilanci Absolvido 18/03/1540 vol. 37, exp. 7, fs. 85-102

14 Martín Xuchimitl de Coyoacán fragmentado não consta vol. 36, exp. 7 (antes exp. 6), fs. 224-225

15 Don Baltasar, cacique de Culhuacan fragmentado não consta vol. 42, exp. 19 (antes exp. 18), fs. 147-

152

16 D. Pedro de Totolapan e Antonio de

Totolapan

Pedro: a. humilhação pública; b. 50 açoites; desterro de 5 anos; Antonio: a. humilhação pública; b. 100 açoites; desterro de 10 anos;

05/1540 vol. 212, exp. 7, fs. 42-94 (antes fs. 29- 81)

18 Gazpar de Tçuytulgacan Receber 100 açoites 1539(?) vol. 37, exp. 2, fs. 18-19

19 Don Juan, cacique de Matlatlán a. humilhação pública; b. 100 açoites; c. frequentar a escola de “niños”

12/1539 vol. 40, exp. 33 (antes exp. 8) fs. 174- 181.

21 Don Juan, Cacique de Totoltepec Fragmentado não consta vol. 30, exp. 6 (antes 7a), fs. 69-79

desempenhavam, evitavam cortar ou sequer lavar os cabelos durante os períodos mais laboriosos. Essa prescrição era amplamente utilizada pelos sacerdotes que necessitavam de toda sua força vital para as especificidades rituais. No mesmo sentido, os comerciantes (pochteca) mantinham longos cabelos para preservar as forças intactas e enfrentarem as grandes extensões dos caminhos que percorriam, além das perigosas travessias que separavam os centros de intercâmbio. Os enfermos também deveriam manter os cabelos intocados, para auxiliar na vitalidade e, consequentemente, dar mais chances de combate às doenças que os acometiam.434

Pode-se, de início, cogitar uma apreensão de extremo rigor dos indígenas ante a humilhação inquisitorial. A perda dos cabelos criou efeitos que escapavam aos cálculos punitivos do Santo Ofício e assumiu um significado de subjugação extrema no mundo indígena. Esse é um aspecto semiótico ausente da geometria inquisitorial, mas que contribuía para os níveis de eficácia desejados pelas punições.

O rito de humilhação e desfile público dos condenados não tinha apenas o objetivo de expor e envergonhar o penitenciado. Antes de tudo, a apresentação do réu tinha por fim alcançar a maior quantidade de expectadores possíveis. Os mercados de origem indígena, como o “tianguis de Tlatelolco”, foram os cenários mais utilizados para encenação da justiça inquisitorial sobre os indígenas. Constituíram os equivalentes dos espaços utilizados na Península Ibérica para humilhação pública e exibição dos penitentes. Assim como na Europa, nos mercados de origem pré-hispânica aglomeravam grandes quantidades de pessoas em torno das mercadorias comercializadas. O tamanho desses centros de intercâmbio também insinuava paralelos com o Velho Mundo e, não raras vezes,

tais centros foram motivo de surpresa e admiração aos olhos dos conquistadores e evangelizadores.435

Hernán Cortés descreveu de forma hiperbólica a aglomeração de indígenas e as incontáveis mercadorias que eram oferecidas nos Tianguis. O conquistador castelhano deixou sua surpresa expressa na segunda Cartas de Relación, datada de 30 de outubro de 1520, onde enaltece ao monarca espanhol o tamanho e o alcance dos mercados indígenas:

Tiene esta ciudad muchas plazas, donde hay continuo mercado y trato de comprar y vender. Tiene otra plaza tan grande como dos veces la ciudad de Salamanca, toda cercada de portales alrededor, donde hay cotidianamente arriba de sesenta mil ánimas comprando y vendiendo; donde hay todos los géneros de mercadurías que en todas las tierras se hallan (...)436

Como ressaltado por Cortés, os mercados indígenas estavam situados em locais públicos específicos para a prática do intercâmbio comercial. Esses centros organizados de troca e negociações diversas eram as principais instituições econômicas relacionadas à vida diária das populações locais. Eles constituíram o meio mais efetivo e disponível aos grupos produtores para venderem seus excedentes agrícolas e se abastecerem dos mantimentos que não produziam.437

Nos tianguis, também eram comercializados produtos artesanais, confeccionados por especialistas responsáveis por uma grande diversidade de itens manufaturados. As relações comerciais funcionavam, principalmente, a partir das trocas entre produtores diretos.

435 CORTÉS, Hernán. Cartas de Relación. México Porrúa, 2010, pp. 77-78; SAHAGÚN, Bernardino. Historia General de las Cosas de Nueva España. México: Porrúa, 2006, pp. 467-521.

436 CORTÉS, op. cit., 2010, pp. 77-78.

437 ESCALANTE GONZALBO, Pablo. La ciudad, la gente y las costumbres. In:

_____________________ (coord.). Historia de la Vida Cotidiana en México: Mesoamérica y los ámbitos de la Nueva España. México: FCE, 2004, vol. I, pp. 201-203; LÓPEZ LUJÁN, L; MANZANILLA, L. (coods.). Historia Antigua de México, Vol. IV: aspectos fundamentales de la tradición cultural mesoamericana. México: INAH, UNAM, Miguel Ángel Porrúa, 2014, pp. 108-109.

A amplitude dos produtos negociados era variada e as transações poderiam ser pequenas ou grandes, girando em torno de bens de uso cotidiano ou itens de luxo. Estes últimos, muitas vezes, trazidos de fora das comunidades onde estavam estabelecidos os mercados. Mercadorias fundamentais e de menor valor marcaram as pequenas organizações urbanas. Por outro lado, os grandes centros de intercâmbio, tais como Tlatelolco, Tenochtitlan, Acolman e Cholula, contrastaram com os tímidos mercados locais. Essas regiões de grande complexidade urbana foram marcadas pelo comércio de plumarias, turquesas, esmeraldas (chalchíhuitl), mantas de algodão, peles de animais, cacau, entre outros. Em resumo, eram artigos de grande valor e cobiçados, especialmente, pela nobreza indígena.438

Uma multidão de indígenas dedicava-se às atividades comerciais, em tempos pré-hispânicos e durante o período colonial; muitos de maneira contínua e outros de forma esporádica. As múltiplas relações condicionadas pelo ambiente dos mercados eram um fator que, para além das trocas e negociações materiais, proporcionava um trânsito imaterial. Os contatos interculturais favoreceram, antes da conquista espanhola, a circulação de técnicas manufatureiras e o repasse de informações políticas aos diversos domínios em contato. As redes de intercâmbio, cujos mercados interligavam-nas, eram verdadeiros veículos para a difusão e adoção de novas práticas culturais ou medidas políticas frente às notícias chegadas por intermédio dos negociantes.439

A espacialidade, o grande fluxo de pessoas e o enraizamento dos mercados, mostraram-se, portanto, como locais privilegiados dentro da arquitetura punitiva em funcionamento na Inquisição episcopal. O aproveitamento dos perímetros dos tianguis para a finalização dos inquéritos abertos pelo inquisidor Zumárraga contra indígenas estava circunscrito em uma maneira específica de se exercer o poder. A punição dos indígenas diante do grande público efetivava a concepção pedagógica e coercitiva do Santo Ofício da Inquisição – uma “pedagogia

438 Ibidem, pp. 87-88; LÓPEZ LUJÁN, L; MANZANILLA, L. (coods.). Historia Antigua de México, Vol. III: El horizonte posclásico. México: INAH, UNAM, Miguel Ángel Porrúa, 2014, pp. 306-307. 439 SAHAGÙN, op. cit., 2006, pp. 472-474; LÓPEZ LUJÁN, L; MANZANILLA, L. op. cit., 2014, vol. IV,

do medo”, como ressaltado pelo historiador Bartolomé Bennassar. É um processo no qual a prisão, a exposição e o penitenciamento dos acusados geravam temor e espanto nos espectadores. E, de modo subsequente, criando uma atmosfera de medo com relação à possibilidade de incorrer nos mesmos atos dos condenados.440

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