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A inquisição entre homens e deuses : Santo Ofício, evangelização e política punitiva na Nova Espanha (1521-1545)

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Universidade Estadual de Campinas

Instituto de Filosofia e Ciências Humanas

SAULO GOULART

A INQUISIÇÃO ENTRE HOMENS E DEUSES:

SANTO OFÍCIO, EVANGELIZAÇÃO E POLÍTICA PUNITIVA NA

NOVA ESPANHA (1521-1545)

Campinas

2016

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Universidade Estadual de Campinas

Instituto de Filosofia e Ciências Humanas

A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Tese de Doutorado composta pelos professores doutores a seguir descritos, em sesão pública realizada em 16 de novembro de 2016, considerou o candidato Saulo Mendes Goulart aprovado.

Prof. Dr Leandro Karnal

Prof. Dr Carlos Alberto de Moura Ribeiro Zeron

Prof. Dr. Luiz Estevão de Oliveira Fernandes

Prof. Dr. Rui Luis Rodrigues

Profa. Dra Leila Mezan Algranti

A Ata de Defesa, assinada pelos menbros da Comissão Examinadora, consta no processo de vida acadêmica do aluno.

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Para Solange Lucena Mendes e Vítor Goulart

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AGRADECIMENTOS

À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) por ter financiado a presente pesquisa, sendo um fundo imprescindível para a conclusão do trabalho. Também manifesto minha gratidão pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior (CAPES), que proporcionou o financiamento para minha estadia prolongada na Cidade do México, por meio do Programa de Doutorado Sanduíche no Exterior (PDSE).

A Leandro Karnal, com grande estima, por ter acreditado no projeto que originou este trabalho, pela paciente orientação e atenção concedida às minhas questões, e também pela ética e rigor que tanto me auxiliaram no cumprimento desta etapa.

A Solange Alberro pela pronta recepção oferecida no Colegio de México, pelas longas conversas sobre o mundo hispânico e história colonial que me ajudaram a sanar muitas inseguranças e os questionamentos suscitados com os arquivos inquisitoriais.

A Maria Elvira Buelna Serrano pelo amparo oferecido com relação aos manuscritos do século XVI, pelos ensinamentos técnicos em paleografia e pela generosidade em ceder parte de seu material paleografado.

Sou grato também pelas muitas sugestões dadas pelos professores José Alves de Freitas Neto, Margareth Rago, Rui Luis Rodrigues, Carlos Alberto de Moura Ribeiro Zeron e Luis Estevão de Oliveira Fernandes, no decorrer da minha trajetória e para a conclusão desta tese.

Aos professores, afetuosamente, Paulo Miceli, Silvia H. Lara, Leila M. Algranti e Sidney Chalhoub pelas distintas e ricas contribuições para a minha formação. Pela grande receptividade e afetividade que demonstraram desde a minha entrada na UNICAMP.

A Gabriela De Laurentiis pela amizade nestes anos, pelos diálogos extensos e prazerosos, além do apoio e preocupação. Obrigado por tudo, especialmente, por me persuadir quando ninguém mais podia.

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A Maria Talib Assad por dividir comigo o encerramento desta etapa, pelo apoio e cumplicidade, pelas conversas de todos os dias e pelos sorrisos que ela despertou em mim em meio às agitações do último ano.

Aos amigos que fizeram parte do meu cotidiano nestes últimos anos e por proporcionarem o apoio e o constante interesse que me alimentaram no cumprimento do doutorado. Agradeço, em particular, a Maurício Pelegrini, Caio Pedrosa da Silva, Ricardo Amarante Turatti, Eduardo Ruz Torres, Ana Carlina Machado, Paula Talib Assad, Mariana Boaventura, Rodrigo Valentim Chiquetto Flávia França e Luciana Wilm.

Também muito devo a Odette Duthon, Adriana S. Duthon, Marisa A. Pérez Vela, Andrea Santiago, Raul Santiago, Maria José Pasos, Andrea Loi e Ernesto Scheinvar, por me acolherem e me mostrarem um México mais profundo, pelos afetos oferecidos e pela saudade que deixaram em mim.

A todas as pessoas que não tiveram o nome aqui citado, mas que, de alguma forma, forneceram apoio direto ou indireto aos meus esforços.

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RESUMO

Investiga-se o funcionamento do Santo Ofício da Inquisição em torno dos indígenas do Vale do México e arredores. Trata-se, especialmente, do relacionamento mantido entre os procedimentos jurídicos implementados e os primeiros empreendimentos de evangelização, entre os anos de 1521 e 1545. Busca-se, a partir dos diversos processos inquisitoriais, localizar as conexões que vincularam as práticas inquisitoriais e os pressupostos dos evangelizadores. A época abordada abarca o período dos procedimentos levados adiante pelo primeiro bispo e inquisidor do México, o franciscano frei Juan de Zumárraga. Para tanto, confrontam-se as tendências que nortearam a conduta da Ordem de São Francisco, em seu labor evangélico, com as peculiaridades da atuação inquisitorial. A mediação proporcionada pelo clero franciscano foi fundamental para as intervenções punitivas, atuando de forma intensa nas etapas que constituíram os inquéritos do Santo Ofício. As fontes analisadas sustentam uma estreita dependência entre os processos de Inquisição contra indígenas e a atuação dos primeiros evangelizadores no México colonial. O enraizamento e os trâmites do tribunal obedeceram à difusão e atuação dos regulares franciscanos, maioria preponderante no recorte temporal analisado.

Palavras-Chave: México; Inquisição; Nova Espanha; Juan de Zumárraga; Indígenas.

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ABSTRACT

This work aims to put light in how the Holy Office of the Inquisition operated around the native Indians of the Mexican Valley and its surroundings. It is, mainly, about the relation of implemented legal procedures to the first evangelization projects, from the years 1521 to 1543. It seeks, from various inquisitorial processes, to spot the connections that tie the inquisitorial practices to the evangelists’ assumptions. The age approached includes the period of procedures taken forward by Mexican bishop and inquisitor, the Franciscan friar Juan de Zumárraga. Therefore, the tendencies that guided Saint Francis Order courses in its evangelical work are confronted with the peculiarities of the inquisitorial actions. The interposition provided by the Franciscan clergy was primordial to the punitive interventions, working intensively in the steps that composed the Holly Office inquiry. The sources examined support a close dependency between the Inquisition processes against the native Indians and the actions of the first evangelists in colonial Mexico. The rooting and the legal channels of the court followed the dissemination and the performance of the Franciscan regular, overwhelming majority in the period in question.

Key-words: Mexico; Inquisition; New Spain; Juan de Zumárraga; Native people.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - Jogador de patolli enforcado por zombar do cristianismo...81

Figura 2 - Nobre tlaxcalteca enforcado por idolatria...82

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LISTA DE QUADROS

Quadro I - Participação dos Evangelizadores como Tradutores e Consultores...130

Quadro II - Denunciantes...139

Quadro III - Investigadores Comissionados nos Expedientes Contra Indígenas...146

Quadro IV - Testemunhas...155

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SUMÁRIO

Introdução...14

1. Inquisição em dois tempos...15

2. Arquivo e historiografia...20

3. Rumos e aproximações...29

4. Heresia e origens da Inquisição...35

5. Divisão e estrutura do trabalho...44

Capítulo I: Evangelização e Disciplina Eclesiástica (1521-1536)...46

1. Privilégios pontifícios...47

2. Franciscanos no México...49

3. Batizar, desmanchar, (re)educar...54

4. Atribuições e Controvérsia...62

5. Índices Punitivos...68

Capítulo II: O Inquisidor e o Tribunal Episcopal...85

1. Frei Juan e o imperador...86

2. Um suposto “erasmista”...90

3. Nova Espanha e primeiras hostilidades...94

4. A chegada do inquisidor...99

5. Fundação e autonomia do Tribunal episcopal...102

6. Conformidade processual...108

7. A barreira linguística...120

Capítulo III: Enraizamento, Tramas e Perseguições...126

1. Denúncia...127

2. Recurso Inquisitorial...134

3. Testemunhas ...143

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Capítulo IV: Exemplaridade Punitiva e Efeito Público...173

1. Punição e espacialidade ...174

2. Uma nova hierarquia...181

3. Vozes e contenções ...188

4. Don Carlos Ometochtzin...193

5. Heresia e memória punitiva...199

6. O afastamento do bispo inquisidor...206

Conclusão...215 Referências...216 Fontes Manuscritas...223 Fontes Impressas ...223 Bibliografia...226 Anexo I...240 Anexo II...243 Anexo III...245

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1. Inquisição em dois tempos

O alcance e o funcionamento de instâncias inquisitoriais nos domínios americanos do Império Espanhol dependeram dos níveis de consolidação institucionais da Coroa. Entre os anos de 1569 e 1610, foram ordenadas as fundações dos tribunais das Índias. México, Lima e Cartagena de Índias foram os locais estratégicos selecionados para a instalação das ramificações do Inquisição espanhola. As três sedes inquisitoriais estiveram sujeitas ao Consejo de la Suprema y General Inquisición, responsável pela fiscalização e nomeação dos inquisidores. A criação dos tribunais prescreveu aos anseios da Coroa para a manutenção da ortodoxia católica nos novos territórios.1 Como disposto na Recopilación de las

Leyes de los Reinos de Indias, a presença dos tribunais deveria conservar “la pureza y entereza que conviene”.2

Em cumprimento das cédulas reais, foram nomeados os inquisidores Serván de Cerezuela e Pedro Moya de Contreras, respectivamente, para os tribunais de Lima (1570) e México (1571). O Santo Ofício de Cartagena de Índias foi criado anos depois, em 1610, quando Juan de Mañozga e Pedro Mateo foram designados ao cargo inquisitorial. O tribunal cartaginês encerrou os impulsos de expansão da rede dos tribunais da Inquisição espanhola. Parte do cotidiano dos centros coloniais hispano-americanos, o Santo Ofício perdurou com seus altos e baixos até o início dos processos de independências.

Comparados aos tribunais peninsulares, as instituições americanas do Santo Ofício nunca receberam a mesma importância, nem contaram com a complexidade administrativa de Inquisições como as de Toledo, Sevilha e Valladolid. Disparidade expressa nos salários e nos reduzidos quadros de funcionários. A inquisição americana foi uma extensão periférica e de difícil paralelo frente às instâncias peninsulares. Os inquisidores designados para as índias,

1 ALBERRO, Solange. Inquisición y Sociedad en México 1571-1700. México: FCE, 1993, p. 30. 2 Recopilación de las Leyes de los Reinos de las Indias Mandada Imprimir, y Publicar por la Magestad Catolica de Rey del Rey don Carlos II. Madrid: Andrés Ortega, 1774, vol. I, liv. I, tit. XIX,

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normalmente, gozavam de solida formação universitária, mas optavam pelas Índias na tentativa de iniciarem uma carreira colonial. Arriscar-se nos domínios distantes do Império era uma tentativa de contornar as dificuldades em ocupar um cargo de renome na metrópole. Contudo, a conjuntura colonial pouco favoreceu às esperanças de destaque perante a administração real. A territorialidade de milhares de quilômetros quadrados ocupados por cada sede inquisitorial impedia as visitações periféricas. Ademais, o financiamento da Coroa era insuficiente e, por vezes, comprometia o funcionamento das instituições.3

No vice-reino da Nova Espanha, don Pedro Moya de Contreras teve sua entrada anunciada ao público em novembro de 1571. A chegada do inquisidor foi acompanhada pelo cortejo dos funcionários reais e dos representantes das ordens religiosas. Apesar de não contar com grandes recepções, foram feitos os juramentos de fé a autoridade daquele que também ocupou, em 1573, a cadeira de arcebispo do México. A ocasião demandava o anúncio público e o reconhecimento do inquisidor. Reunidos na catedral da cidade, tomada pelos curiosos, foi predicado um sermão e a seguido leitura das provisões emitidas por Felipe II para a criação do Tribunal de Fé. Anunciou-se o título de inquisidor de Moya de Contreras e foram feitas as exortações formais aos habitantes do vice-reino. Era implícito às obrigações dos súditos da Coroa a cooperação com o novo tribunal por meio de efetivas denúncias às manifestações heréticas.4

As fatias populacionais abarcadas pela Inquisição incluíam os espanhóis, metropolitanos ou criollos, os chamados “mestizos”, escravos de origem africana, mulatos e asiáticos. O foro inquisitorial também integrava qualquer homem ou mulher, convertidos ao cristianismo, que desembarcassem nos portos novo-hispanos.5 As instruções elaboradas para orientação dos procedimentos

3 ALBERRO, op. cit., 1993, pp. 30-50.

4 Autos que se leyeron é hicieron al ser jurado y recibido en México el Tribunal del Santo Oficio, en

4 de noviembre de 1571. In: GARCIA, Genaro; PEREYRA, Carlos. Documentos Ineditos ó Muy

Raros Para la Historia de México, vol. V: la Inquisición de México. México: Librería de la Vda. de

Ch. Bouret, 1906, doc. XXVI, pp. 248-283; MEDINA, José Toribio. Historia del Tribunal del Santo

Oficio de la Inquisición en México. México: Cien de México, 2010, pp. 41-54. 5 ALBERRO, op. cit., 1993, p. 26.

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inquisitoriais foram expedidas pelo cardeal Diego de Espinoza e inquisidor geral do Santo Ofício, em 1570. Dentre as especificidades burocráticas, o tribunal novo-hispano deveria se abster de efetuar qualquer inquérito contra a população indígena:

(...) Por virtud de nuestros poderes no habéis de proceder contra los indios del dicho vuestro distrito, porque por ahora hasta que otra cosa se os ordene, es nuestra voluntad que sólo uséis de ellos contra los cristianos viejos y sus descendentes, y las otras personas contra quien en estos reinos de España se suele proceder (...)6

Em 1575, a legislação espanhola incorporou as recomendações prescritas aos inquisidores, deixando a cargo dos bispos de cada região o trato com a heterodoxia indígena.7 A exclusão do foro inquisitorial fazia eco às proposições

jurídico-legais que outorgavam aos povos originais uma posição de fragilidade e inferioridade moral. Caráter que tomou sua forma legal mais clara no estabelecimento de um sistema colonial de distinção entre dois âmbitos político-jurídicos, isto é, a “república de españoles” e a “república de indios”. Destinava-se, assim, um espaço restrito, separando os indígenas dos demais súditos da Coroa.8

As polêmicas e dúvidas que nortearam os debates em torno da natureza e tratamento adequado que se deveria tomar frente aos “naturales” tiveram grande repercussão nas decisões da Coroa. Querelas que encontraram seu exemplo maior no embate entre o teólogo Juan Gínes de Sepúlveda e o dominicano Bartolomé de

6 Instrucciones del cardenal D. Diego de Espinoza a los inquisidores de México, agosto de 1570. In.: Libro Primero de Votos de la Inquisición de México (1573-1600). México: Imprenta Universitaria,

1949, p. 297.

7 Recopilación de las Leyes de los Reinos de las Indias Mandada Imprimir, y Publicar por la Magestad Catolica de Rey del Rey don Carlos II. Madrid: Andrés Ortega, 1774, vol. I, liv. I, tit. XIX,

lei XVII e vol. II, liv. IV, tit. I, lei XXXV.

8 TAVÁREZ BERMUDEZ, David. Las Guerras Invisibles: devociones indígenas, disciplinas y

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Las Casas. O que estava em jogo eram as capacidades moral e racional dos indígenas.9

O afastamento das instâncias inquisitoriais encerrava uma dupla visão – a peculiaridade dos indígenas como neófitos e a atribuição de um caráter individual vulnerável. Estava implícito um tratamento que gradualmente os reduzia como menores de idade e, portanto, deveriam ser protegidos pela Coroa. Sob a índole dos recém-convertidos a população autóctone assumiu uma imagem frágil, instável e vacilante. Por outro lado, o afastamento do Santo Ofício também pode ser visto como um dos primeiros capítulos da consolidação de um espaço jurídico exclusivo. Âmbito que seria reforçado mais tarde, em 1592, com a criação do Juzgado General de Indios, responsável por prestar assistência jurídica aos indígenas.10

Não obstante, as resoluções do Santo ofício e da Coroa espanhola também consideraram outros fatores para pautarem suas decisões. Décadas antes da fundação do tribunal de Inquisição da Nova Espanha e de seu afastamento foral das populações locais, uma série de procedimentos punitivos de natureza jurídico-eclesiástica foram administrados pelos evangelizadores. Dentre estes, destacam-se os regulares franciscanos. A promoção de juízos eclesiásticos na Nova Espanha acompanhou os rumos da evangelização. Durante os anos de 1524 e 1571, os evangelizadores e os primeiros bispos designados para as províncias, assumiram funções extraordinárias. Os membros do clero regular exerceram o cargo de juízes eclesiásticos ordinários, comissionados por uma autoridade maior, ou portando uma nomeação específica através de um título de inquisidor.

A responsabilidade dos inquéritos em torno das condutas heterodoxas ao catolicismo – normalmente, reservada aos tribunais do Santo Ofício ou aos bispos, na ausência de instâncias inquisitoriais – cedeu lugar a concessões excepcionais. A nomeação de Moya de Contreras marcou a data do estabelecimento oficial da Inquisição no México. Apesar disso, o tribunal, fundado

9 HANKE, Lewis. La Humanidad es Una: estudio acerca de la querella que sobre la capacidad

intelectual y religiosa de los indígenas americanos sostuvieron en 1550 Bartolomé de Las Casas y Juan Ginés de Sepúlveda. México: FCE, 1985.

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em 1571, foi antecedido em quase cinquenta anos pelas práticas jurídico-eclesiásticas dos primeiros evangelizadores.

Devido às características específicas das empresas de evangelização, delegadas em sua quase totalidade ao clero regular, os atributos episcopais não se restringiram a centralidade diocesana. Com o intuito de expandir as possibilidades de atuação frente às populações indígenas, atribuições especiais foram emitidas pela Santa Sé afim de amparar os evangelizadores que passassem a América. Em consequência, os primeiros regulares que pisaram no México tiveram a possibilidade de exercício das funções jurídico-eclesiástica, amplificando de forma considerável sua autonomia frente ao avantajado território.

Sem dúvida, o impulso de punir os indígenas convertidos ao cristianismo encontrou sua forma mais sistemática junto aos inquéritos administrados pelo franciscano Juan de Zumárraga. Escolhido pelo Imperador Carlos V como primeiro bispo do México, o clérigo foi posteriormente agraciado com o título de inquisidor apostólico. Desde sua chegada ao Vale do México, o bispo encabeçou a liderança junto aos franciscanos que a alguns anos se faziam presentes na região. Ele foi o grande responsável por impulsionar os interesses e as perspectivas evangelizadoras dos Frades Menores durante seu período afrente do episcopado. No decurso dos anos de 1536 e 1543, Zumárraga processou 28 indígenas, por diversas causas de fé, especialmente pelo crime de idolatria. Os réus pertenciam as elites indígenas ou estavam vinculados à cargos dos governos autóctones. No total, as investigações inquisitoriais empreendidas por Zumárraga estão dispostas em dezessete processos, três “probazas” e uma denúncia, somando um total de 21 expedientes.11

Frei Juan de Zumárraga adequou os trabalhos inquisitoriais à suas funções como bispo. Apesar de não ter contado com uma estrutura inquisitorial autônoma ao episcopado, o franciscano não mediu esforços para estruturar os procedimentos e dar regularidade ao Santo Ofício. Zumárraga contratou

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funcionários para auxiliarem nos trabalhos e contou com o amparo do corpo de evangelizadores franciscanos que cumpriram diversos papeis. Os clérigos apoiaram o funcionamento inquisitorial na abertura, desenvolvimento e desenrolar dos inquéritos. Tratava-se de um tribunal propriamente dito, como definido pelo historiador Richard E. Greenleaf, uma “Inquisição episcopal”12.

Distinto do tribunal estabelecido em 1571, o Santo Ofício episcopal organizado pelo bispo contou com uma estrutura tímida. Sua pequena armação dependeu de um reduzido quadro de funcionários. Seu funcionamento foi caracterizando-se tanto pela precariedade quanto pelo idealismo das primeiras décadas da evangelização no México.

2. Arquivo e historiografia

O caso mais conhecido processado pelo inquisidor apostólico frei Juan de Zumárraga foi o de don Carlos Ometochtzin Chichimecatecotl.13 Na época, a

grande repercussão do inquérito esteve relacionada a sentença de execução pronunciada por Zumárraga, ao final de 1539. A notícia da morte de don Carlos na fogueira soou de forma muito rigorosa aos funcionários da Coroa espanhola. A morte do indígena se juntou às diversas denúncias de abuso e excesso de rigor utilizado pelos franciscanos. Anos depois, na década de 1560, frei Diego de Landa procedeu contra um grupo de indígenas na região de Yucatán, agregando mais argumentos para o posterior impedimento da administração de juízos inquisitorial contra indígenas.14

12 GREENLEAF, Richard E. Zumárraga y la Inquisición Mexicana. México: FCE, 1992a. 13 AGN, Inquisición, vol. 2 (part. 2), exp. 10, f. 237-340.

14 CLENDINNEN, Inga. Reading the Inquisitorial Record In Yucatán: fact or fantasy. In.: The Americas: A Quarterly Review of Inter-American Cultural History, Washington, v. 38, n. 3, p.

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O processo contra don Carlos Ometochtzin e os demais expedientes criados pelos Inquisição episcopal de Zumárraga, atualmente, encontram-se alojados no Ramo de Inquisición do Archivo General y Público de la Nación, na Cidade do México. A maior parte destes arquivos foram transcritos e publicados nos anos de 1910 e 1912 sob a direção e prefácio do historiador mexicano Luis González Obregón.15 O processo de don Carlos assumiu especial conotação junto

às comemorações do primeiro centenário de independência mexicana. A publicação do inquérito apresentou um tom nacionalista junto ao prefácio de González Obregón. O expediente inquisitorial assumiu a forma de um dos grandes exemplos da crueldade do regime colonial espanhol. E, sob a escrita do prefaciador, a execução do indígena tomou traços martirizantes:

Fué, por consiguiente, Don Carlos, á modo de redentor de su raza, pues en lo sucesivo ya los indígenas no cayeron bajo la tremenda jurisdicción del Santo Oficio, y al exhumar hoy su proceso olvidado, cuando México conmemora la primera centuria de su emancipación política, no se puede menos que recordarle con simpatía (…)16

A publicação constituiu a primeira tiragem da Comisión Reorganizadora del Archivo Público y General de la Nación. Desde então, os processos referentes às atividades do Inquisidor Zumárraga ganharam as páginas da historiografia colonial sobre o México. Grande parte das análises dedicadas aos documentos publicados, fizeram uso dos processos como fontes para a “etno-história” indígena. Utilização favorecida pela variedade de informações concernentes às culturas do Vale do México viabilizadas pelos interrogatórios. A abordagem frutífera dos

15 GONZÁLEZ OBREGÓN, Luis (dir.). Proceso Inquisitorial del Cacique de Tetzcoco. México:

Eusebio Gómez de la Puente, 1910; ________________________. Procesos de Indios Idólatras y

Hechiceros. México: Tip. Guerrero Hnos., 1912. 16 GONZALÉZ OBREGÓN, L. (dir.), op. cit. 1910, p. XIII.

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inquéritos mediante um viés “etno-histórico” foi impulsionada, a partir de 1978, pelo artigo catalográfico publicado por Richard Greenleaf.17

No entanto, um exame conjuntural dos trabalhos levados a cabo pelo bispo inquisidor ainda é restrito. A utilização massiva dos processos inquisitoriais como fontes para a etino-história foi ressaltada, desde 1990, pelo historiador Roberto Moreno de los Arcos. 18 O autor denotou, especialmente, a falta de maiores

estudos sobre a particular instituição que originou os inquéritos.Pouco foi postulado em torno das especificidades punitivas no trato inquisitorial com os indígenas, dos vínculos com a evangelização e da inserção em uma perspectiva transatlântica da Inquisição espanhola.

Uma primeira abordagem do material publicado pelo Archivo General de la Nación apareceu na obra de José Toribio Medina, em 1914.19 O bibliografo e

historiador chileno foi responsável por uma série de monografias sobre o Santo Ofício na América, publicadas desde 1887. Como característica geral da monumental obra de Medina encontramos volumes descritivos, com grande carência na sistematização dos documentos e nas referências dos arquivos. Apesar disso, o autor dedicou boa parte da obra La Primitiva Inquisición Española, a descrição e comparação dos primeiros anos de perseguição aos indígenas no

17 GREENLEAF, Richard E. The Mexican Inquisition and the Indians: sources for the ethnohistorian.

In.: The Americas: A Quarterly Review of Inter-American Cultural History, Washington, v. 34, n. 3, pp. 315-344, jan. 1978.

18 MORENO DE LOS ARCOS, Roberto. La inquisición para indios en Nueva España (siglos XVI a

XIX). In.: SARANYANA CLOSA, Josep I. (dir.). Evangelización y Teología en América (siglo XVI). Pamplona: Universidad de Navarra, 1990, p. 1472; ________________________. New Spain´s Inquisition for indias from the Sixteenth to the Nineteenth Century. In: PERRY, M. E; CRUZ, A. J. (dir.) Cultural Encounters: the impact of the Inquisition in Spain and the New World. Los Angeles: University of California Press, 1991, p. 24.

19 Antes da publicação de Medina (cf. MEDINA, José Toribio. La Primitiva Inquisición Americana (1493-1569). Santiago de Chile: Imprenta Elzeveriana, 1914), Joaquín García Icazbalceta fez breves

comentários, em 1881, acerca da atuação de Zumárraga como inquisidor e a execução de don Carlos Ometochtzin (cf. GARCÍA ICAZBALCETA, J. Don Fray Juan de Zumárraga, 4 vols. México: Ed. Porrúa, 1988.). Zélia Nultall também publicou uma breve averiguação do processo inquisitorial, de 1539, contra Miguel Puchtecatlaylotlac (cf. AGN, Inquisición, vol. 37, exp. 3, fs. 20-46). A autora antecedeu a transcrição do inquérito, publicado em 1912 (cf. GONZALÉZ OBREGÓN, L. (dir.), op. cit. 1912), contribuindo com um dos primeiros comentários acerca das informações que expediente trazia (cf. NULTAL, Zélia. L’évêque Zumarraga et les idoles du grand temple de Mexico. In: Journal

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México com uma variedade considerável de documentos. Medina caracteriza os poderes extraordinários, portados por clérigos como Zumárraga e os primeiros franciscanos, estabelecendo um panorama da chegada das ordens mendicantes e a promoção de juízos eclesiásticos.

José Toribio Medina foi o primeiro a delimitar a amplitude das funções inquisitoriais exercidas por Juan de Zumárraga, demonstrando a diversidade de processos produzidos. As caracterizações do primeiro bispo do México em suas funções inquisitoriais tomaram especial importância na obra de Medina frente as proposições de Joaquín García Icazbalceta. Em 1881, a publicação de Don Fray Juan de Zumárraga, uma apologética biografia do franciscano feita por Icazbalceta, amenizava as funções inquisitoriais exercidas pelo franciscano.20 Ao avaliar o

processo que levou à queima de don Carlos Ometochtzin e a posterior advertência recebida pelo bispo inquisidor, Icazbalceta procurou justificar a atitude do inquisidor no pronunciamento da pena. Para o biógrafo de Zumárraga, don Carlos “era digno de pena capital, si no por la Inquisición en la hoguera, a lo menos por la autoridad civil en la horca.”21 As explicações de Icazbalceta eram, por sua vez, uma clara

resposta a obra de Willian Prescott que anos antes havia atribuído a Zumárraga um caráter destrutivo frente às culturas indígenas.22

A abordagem realizada por José Toribio Medina também fez ressonância aos ideais liberais de sua época, insistindo na abordagem dos tribunais de fé como uma demonstração dos terríveis feitos da colonização espanhola.

Mais tarde, o historiador francês Robert Ricard dedicou algumas páginas a cotejar a resistência que os casos de indígenas processados por Zumárraga exemplificaram frente a evangelização. A sucinta análise do autor aparece nas conclusões de sua clássica obra sobre a evangelização do México.23 Para Ricard

os processos inquisitoriais contra indígenas demonstraram um dos exemplos mais

20 GARCÍA ICAZBALCETA, op. cit., 1988. 21 Ibidem, vol. 1, p. 202-205.

22 PRESCOTT, Willian H. History of the Conquest of Mexico: with a Preliminary View of Ancient

Mexican Civilization, and the life of the Conqueror, Hernando Cortes. New York: Harper and Brothers, 1843.

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palpáveis da resistência consciente e silenciosa à evangelização. No Vale do México, ao contrário da violência manifestada contra frades em regiões como o noroeste mexicano, a constatação de uma persistência oculta e tácita é observável na velada presença das efígies e na realização soturna dos rituais.

A utilização dos inquéritos como palcos privilegiados para observação das resistências indígenas foi reafirmada décadas depois por Christian Duverger, ao final dos anos de 1980.24 Em obra de caráter revisionista, o historiador procurou

retraçar os aspectos abarcados por Ricard, centrando seu ponto de partida e foco de análise no texto “Coloquio de los Doce”, escrito pelo evangelizador e cronista Bernardino de Sahagún. Assim como Ricard, a obra de Duverger traz os casos processados por Zumárraga como um elemento de arremate ao seu texto, cotejando a exemplaridade das resistências indígenas contidas nos documentos.25

Apesar de ocupar uma fração do epílogo do livro de Duverger, as avaliações do autor alcançam uma abrangência maior com relação ao panorama institucional organizado pelo bispo Juan de Zumárraga. Um adensamento no trato das fontes inquisitoriais disposto pelo autor era depositário da publicação de Richard Greenleaf, que veio à luz no ano de 1962.26

A obra desse Historiador estadunidense trouxe consigo a primeira análise e detalhamento dos aspectos conjunturais que envolveram a Inquisição episcopal. O autor complementou seu primeiro trabalho sobre o Santo Ofício com uma série de publicações posteriores, constituíndo o ponto de partida fundamental para as análises das manifestações jurídico-eclesiásticas anteriores ao ano de 1571. Em Zumárraga and the Mexican Inquisition, Greenleaf desenvolveu um

estudo em torno das atividades inquisitoriais do primeiro bispo. O autor procurou levantar as características dos inquéritos produzidos por Zumárraga quanto à composição dos processos por idolatria, luteranismo, blasfêmia, dentre outras

24 DUVERGER, Christian. La Conversión de los Indios de Nueva España. México: FCE, 1993. 25 Ibidem, pp. 187-193.

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categorias sentenciadas pelo inquisidor.27 Desde sua primeira obra, Greenleaf

nunca esteve interessado em um recorte exclusivo em torno dos indígenas processados. O objetivo central da abordagem – parafraseando o autor – era o entendimento da Inquisição episcopal de Zumárraga por meio de seu relacionamento com as demais instituições espanholas e os aspectos intelectuais que pautaram o início do século XVI.28 De forma mais específica, Greenleaf abarcou

a atuação do bispo inquisidor em meio ao plano de fundo das primeiras intrigas políticas da Nova Espanha.

Os casos inquisitoriais de indígenas processados por Zumárraga foram abordados pelo autor de forma descritiva e sem muitas conexões entre os casos. A análise dos documentos foi elaborada de forma individual, caso a caso, mediante a linearidade cronológica dos expedientes. A leitura do historiador se mostrou interessada no conjunto dos processos produzidos pelo bispo inquisidor, com vistas a traçar a inserção da Inquisição episcopal frente a outras instâncias de poder. Ainda assim, a narrativa dos casos contra indígenas pouco arriscou em torno dos pressupostos indígenas evocados na documentação, atendo-se a uma breve introdução à “religião asteca”.29 No mesmo sentido, as interpretações descritivas

pouco cotejaram acerca da presença dos evangelizadores e de sua real funcionalidade para o desempenho do Santo Ofício de Zumárraga. Apesar de ressaltar os auxílios prestados pelos regulares, as conexões com a evangelização foram feitas de forma apartada da abordagem dos processos contra indígenas, apenas com fins introdutórios ao estabelecimento do clero.30

Richard Greenleaf retratou as primeiras manifestações inquisitoriais em um turbulento cenário dos primeiros anos da conquista espanhola no México. E, sem dúvida, estabeleceu um recorte menos restrito ao de José Toribio Medina, aproveitando o caminho percorrido por Robert Ricard em sua trajetória sobre os

27 Caminho semelhante foi seguido por Bernard Grunberg com o estudo quantitativo publicado em

1998. Cf. GRUMBERG, Bernard. L’inquisition Apostolique au Mexique: histoire d’une institution

et de son impact dans une société coloniale (1521-1571). Paris/Montréal: L´Harmattan, 1998.

28 Ibidem, p. 9.

29 GREENLEAF, op. cit., 1992a, pp. 56-60. 30 Ibidem, pp. 60-93.

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primeiros evangelizadores do México. Não obstante, Zumárraga and the Mexican

Inquisition se mostrou devoto de um caráter descritivo e pouco processual,

atentando mais ao encadeamento cronológico das fontes institucionais que a uma “histoire-problème”. Por outro lado, a publicação da obra abriu um horizonte

considerável para o surgimento de estudos de casos que pudessem adensar e explorar recortes menores.

As décadas de 1970, 1980 e 1990, destacaram-se pela exploração dos recortes “etno-históricos” que buscavam alcançar informações sobre as culturas indígenas em meio aos interrogatórios e investigações inquisitoriais.31 A publicação

de Il formaggio e i vermi do historiador italiano Carlo Ginzburg teve um impacto especial sobre esses projetos, a partir de 1976.32 As formulações de Ginzburg na

abordagem dos processos de Inquisição contra o moleiro Menochio (Domenico Scandella) proporcionaram novos ares diante das possibilidades de distinção entre as “vozes” dispostas nos processos do Santo Ofício. com base na obra do italiano, era possível atentar para o caráter polifônico das fontes inquisitoriais e buscar as concepções que excediam as reduções jurídicas. E é importante ressaltar que as acepções tomaram lugares privilegiados nas obras de Serge Gruzinski.

Em 1985, a publicação de Les hommes-dieux du Mexiqueconsolidou uma das primeiras etapas da vasta pesquisa de Serge Gruzinski acerca das modificações culturais provocadas pela conquista do México.33 Interessado nos

processos de “ocidentalização” e seguindo os rumos interdisciplinares postulados pela escola dos Annales, o trabalho do autor foi desenvolvido a partir da trajetória

31 Aportes interessantes para a “etno-história” podem ser encontrados nos trabalhos de J. J. Klor de

Alva, R. C. Padden e, mais recentemente, na compilação de quatro estudos de caso feitos por Patricia Lopez Don. (Cf. PADDEN, R. C. Huichilobos and the bishop. In.______________. The

hummingbird and the Hawk: conquest and sovereignty in the Valley of Mexico. New York: Harper

and Torchbooks, 1970, p. 240-275; KLOR DE ALVA, J. J. Martín Ocelotl: clandestine cult leader. In.: SWEET, David G; NASH, Gary B. (ed.) Struggle and Survival In Colonial America. California: University of California Press, 1981, pp. 128-141; DON, Patricia Lopes. Bonfires of Culture: Franciscans, Indigenous Leaders, and Inquisition in Early Mexico, 1524-1540. Oklahoma: University Oklahoma press, 2010.).

32 GINZBURG, Carlo. O Queijo e os Vermes. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

33 GRUZINSKI, Serge. El Poder Sin Límites: cuatro respuestas indígenas a la dominación española.

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exemplar de alguns indivíduos recortados nos séculos XVI, XVII e XVIII. Gruzinski analisou, especificamente, as modificações da tradição pré-hispânica dos “homens-deuses” no decorrer do tempo. Entre os casos abordados na obra aparecem os nomes de Martín Ocelotl e Andrés Mixcóatl, ambos indígenas processados por Zumárraga, em 1537.34 Os inquéritos foram privilegiados por Gruzinski para

reescrever as trajetórias de seus protagonistas. O intuito era criar pontes possíveis entre os indivíduos, suas idiossincrasias e a conjuntura que os permeava.

O historiador Francês cruzou arcabouços metodológicos diversos, tendo em mãos as reflexões de Carlo Ginzburg, da “etno-psiquiatria” de George Devereaux e formulações de cunho psicanalítico. Gruzinski seguiu sob um recorte étnico, histórico e psicologizante, procurando, sobretudo, interpretar as atitudes e idiossincrasias dos chamados “homens-deuses”. Como afirmado por Solange Alberro, apesar do louvável esforço do autor, o trabalho passa por um “terreno resbaloso”, e as interpretações adentram em proposições de aspecto subjetivo quanto aos indivíduos analisados e de difícil comprovação.35

O primeiro capítulo e início de uma “viagem de historiador ao México espanhol”, como definido pelo próprio Gruzinski, foi coroado, em 1990, com o livro La Guerre des Images.36 As fontes inquisitoriais reaparecem no trabalho do

historiador delimitando a resistências dos indígenas na conservação de suas efígies sagradas. No segundo capítulo de sua obra, Gruzinski dedicou parte de sua análise aos processos contra indígenas envolvidos na “dissimulação dos deuses”.37 O autor

se debruçou, especialmente, sobre os casos de don Carlos Ometochtzin e Miguel Puchtecatlailotlac, ambos processados por Zumárraga, no ano de 1539.38 Os

inquéritos demonstram na obra de Gruzinski as movimentações dos indígenas do

34 GRUZINSKI, op. cit., 1988, pp. 45-77.

35 ALBERRO, Solange. Serge Gruzinski. El poder sin límites: cuatro respuestas indígenas a la

dominación española. In.: Historia Mexicana, México, v. 39, n. 3, p. 822-825, mar., 1990.

36 GRUZINSKI, Serge. A Guerra das Imagens: de Cristóvão Colombo a Blade Runner (1492-2019).

São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

37 GRUZINSKI, Serge. A Guerra das Imagens: de Cristóvão Colombo a Blade Runner (1492-2019).

São Paulo: Companhia das Letras, 2006, pp. 83-89.

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Vale do México no intuito de protegerem suas efígies sagradas dos invasores espanhóis. O exame acurado do autor estabeleceu um jogo de dupla perspectiva. Gruzinski procurou demonstrar os pontos que nortearam as atitudes dos evangelizadores e conquistadores, ao mesmo tempo em que juntou os diversos índices das reações autóctones frente às perseguições dos invasores. Tratava-se para o autor de uma verdadeira guerra, em efetivo, uma concorrência das imagens cristãs com relação às efígies das divindades indígenas.

Seguindo os estudos de caso, a historiadora mexicana Sonia Corcuera de Mancera deu prosseguimento ao enfoque micro-histórico com a obra De Pícaros

y Malqueridos, publicada em 2009.39 A construção do trabalho da autora teve como

núcleo de análise dois processos conduzidos por Juan de Zumárraga. Ancorada no pequeno povoado de Ocuituco, às beiras do Popocatepetl, as discussões giraram em torno das trajetórias do clérigo Diego Dias e de um casal de indígenas da região, Cristóbal e Catalina. Sonia Corcuera traz à tona uma complexa trama de relações e disputas que transpassaram a história por detrás da intervenção inquisitorial. O ensaio comportou uma intrigante teia analítica, passando pelas reflexões de Ginzburg e do filósofo alemão Hans-Georg Gadamer, além de fortuitas interlocuções com as reflexões de Paul Ricoeur. A autora se arriscou em pressupostos analíticos pouco vistos nas análises sobre o período, contribuindo para a renovação da aplicabilidade conceitual no tratamento das fontes. De forma mais específica, o livro trouxe as experiências individuais de um pequeno “pueblo” e o impacto do Santo Ofício na vida local. Sonia Corcuera chama a atenção para o âmbito cotidiano e familiar sob influência dos novos imperativos impostos pela conquista espanhola.

Os estudos das manifestações inquisitoriais em torno dos indígenas do Vale do México e seus arredores, entre 1536 e 1540, podem ser circunscritos em três frentes analíticas. Em primeiro lugar, as abordagens procuraram compreender

39 Uma breve reflexão da autora acerca do processo contra don Carlos Ometochtzin também pode

ser encontrada no livro CORCUERA DE MANCERA, Sonia. El Fraile, el Indio y el pulque: evangelización y embriaguez en la Nueva España (1523-1548). México FCE, 2010, pp. 249-256.

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a inserção da documentação no panorama do estabelecimento das instituições espanholas e, mais especificamente, sua figuração dentre outros expedientes inquisitoriais produzidos pelo tribunal episcopal de Juan de Zumárraga. Richard E. Greenleaf e José Toribio Medina foram os grandes representantes desses esforços pioneiros. A conseguinte, pode-se observar uma clara tendência no uso dos processos contra indígenas como casos exemplares da resistência autóctone à cristianização; influências claras das obras de Robert Ricard e Christian Duverger. Tanto o enfoque mais conjuntural, quanto o desenvolvimento de estudos sobre a evangelização no México criaram um campo propício para uma terceira frente, mais voltada para as movimentações indígenas em meio aos primeiros anos da conquista. Em traços gerais, essa última forma de aproximação reafirmou o interesse na inteligibilidade das formas de resistência indígenas junto aos deslocamentos da chamada “etno-história”, bem como, no aproveitamento dos aportes micro-históricos.

3. Rumos e aproximações

A trajetória historiográfica demarcada deixa entrever a diversidade perspectiva possível no uso de fontes inquisitoriais. O desenvolvimento das perguntas que pautaram os trabalhos que antecedem a presente pesquisa foi construído, passo a passo, conforme a sucessão das obras condicionava a possibilidade de surgimento de novas questões. Tomando os rumos desse postulado, cabe notar uma certa vacuidade localizável entre os processos contra indígenas e os empreendimentos evangelizadores, levados adiante nas primeiras décadas da Nova Espanha. Trata-se aqui de propor um vínculo mais estreito dos processos protagonizados por indígenas com a atuação dos franciscanos liderados por frei Juan de Zumárraga. Torna-se importante perguntar: em que sentido e sob quais auspícios as punições inquisitoriais estiveram inscritas nas dinâmicas da evangelização?

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Sob esse olhar, o uso do Santo Ofício não será disposto, simplesmente, como uma maneira de manter os convertidos em um regime coercitivo. Também corresponderá atentar ao papel constitutivo da intervenção inquisitorial na criação de comportamentos desejados pela cristianização. Assim, a hipótese aqui levantada aponta para os juízos eclesiásticos voltados para indígenas como mecanismos disciplinadores e auxiliares da evangelização. Sendo assim, pressupõe-se o estudo da administração de castigos não apenas em seus efeitos repressivos, alcançados pelas sanções jurídicas, mas, também, pela consideração da série completa dos efeitos que eles podem produzir.40

Os sistemas punitivos não devem ser estudados unicamente pela armadura jurídica de seu funcionamento, faz-se necessário a igual consideração acerca de seus campos de ação. Ao voltarmos a atenção para os dois enfoques de problematização, qual seja, a jurisdição e o ambiente do tribunal, torna-se possível caminhar para além das sanções dos crimes, mostrando que as medidas punitivas não são simplesmente mecanismos de repressão, supressão, exclusão ou impedimento. Os regimes de castigos também estão vinculados a uma série de efeitos criadores que caberiam às medidas punitivas sustentar.41

O intuito final é devolver a complexa função social que as práticas punitivas guardam consigo, situando-as em um campo mais geral das relações de poder. Sendo estas, entendidas a partir da proposição fundamental de Michel Foucault. Entende-se, portanto, poder como uma “multiplicidade de correlações de força imanentes ao domínio onde se exercem e constitutivas de sua organização”42.

As relações de poder são o resultado dos jogos, lutas, afrontamentos e, mais efetivamente, do apoio que as correlações de força encontram umas nas outras – Interações que se produzem a todo instante, situações estratégicas e complexas inerentes à organização social. Desse modo, não se trata de uma instituição ou

40 FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes, 2007, pp. 23-24. 41 Ibidem, pp. 24-25.

42 FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade: a vontade de saber. São Paulo: Graal, 2009, p.

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estrutura; tampouco, seria uma potência ou uma propriedade individual. O poder se exerce por inúmeros pontos – em meio a relações desiguais e móveis, intencionais e subjetivas – sem, no entanto, derivar de escolhas individuais.43

Mediante esses pontos de partida, foi alocada a instituição inquisitorial no centro da problematização desta pesquisa. Grosso modo, os objetivos delimitados foram traçados para entender de que forma o Santo Ofício, sob os auspícios de frei Juan de Zumárraga, operou diante do novo elemento indígena. Portanto, ao serem consideradas as movimentações punitivas e investigativas do tribunal episcopal, não serão tomados, em primeira instância, o desmembrar dos enunciados dispostos nos inquéritos com vistas a identificar a multiplicidade das vozes indígenas. Tampouco, caberá enveredar-nos de forma minuciosa na vida dos indivíduos processados, no intuito de reconstruir suas trajetórias. Essas características foram centrais aos diversos trabalhos que antecedem o presente trabalho, efetivamente, a partir dos recortes “etno-históricos” e “micro-históricos”.

O enfoque macroscópico – tomando sempre os dados conjuntos da ação inquisitorial – não se dispõe em oposição às questões fundamentais que pautaram o cotidiano dos indivíduos processados. Os imperativos conjunturais do mundo indígena, constituem uma variante fundamental ao tratamento da documentação inquisitorial proposta. É, justamente, no desencontro entre as instâncias do mundo ocidental cristão e no universo das práticas autóctones que estava situada a ação inquisitorial. Sendo assim, a figuração das crenças e comportamentos indígenas aparecerão em contraponto ao universo jurídico-eclesiástico que pautava a montagem do aparato punitivo. Cotejar as diversas esferas do mundo indígena pode proporcionar uma aproximação maior frente aos possíveis impactos alcançados pela exemplaridade almejada nos castigos. Afinal, os níveis de eficácia da Inquisição podem ser mensurados ou cogitados conforme são compreendidos os arcabouços semióticos dos grupos aos quais pertenciam os processados.

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Optou-se, aqui por não empregar categorizações amplas como “religião” ou “religião indígena”. Nesse sentido, levam-se em conta as considerações de David Tavárez Bermúdez com relação à dificuldade de incorporação de termos que pressupõem uma coerência estrutural. Não existiu uma conformidade inerente ou um núcleo central de crenças entre os indígenas mesoamericanos. O intercâmbio simbólico entre as crenças indígenas e seus praticantes pode ser mais bem definido como devoções. A categoria se mostra mais flexível, abarcando uma ampla superfície de rituais e observâncias. Essas devoções partiram de um conjunto de pressupostos fundamentais sobre o cosmos e alheios às tradições ocidentais. Logo, as devoções indígenas devem ser consideradas, sempre que possível, em seus próprios termos.44

Embora estivessem pautados em uma grande diversidade de concepções, os níveis comunal (coletivo) e privado (eletivo) das práticas devocionais estavam integrados a partir de teorias de grande escala sobre a organização cosmológica. O caráter íntimo e o público das crenças se orientavam no sentido de compreender, propiciar e manipular as entidades mais importantes do cosmos. Acreditava-se que as ações rituais tinham um significado cosmológico que podia abarcar os âmbitos familiares, comunitários e estatais. Em contradição quanto às sociedades cristãs, nas comunidades mesoamericanas a filiação dos indivíduos a um grupo de devotos não estava baseada na aceitação de um dogma, mas em um núcleo de práticas rituais (corporativas ou estatais) vinculadas à legitimidade política. Os indivíduos e as famílias participavam na esfera eletiva de maneira voluntária, com objetivos variados. Neste sentido, os especialistas rituais estruturavam suas práticas a partir de conhecimentos rituais que estavam em constante fluxo e mudança.45

A divisão entre eletivo e coletivo dentro do aspecto devocional não era rígida, muito menos impermeáveis. Um dos exemplos levantados por Tavárez

44 TAVÁREZ BERMUDEZ, David. Las Guerras Invisibles: devociones indígenas, disciplinas y

disidencias en el México Colonial. México: CIESAS, 2012, p. 21.

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Bermúdez trata das distinções entre os especialistas rituais. Os membros vinculados às elites indígenas mantinham oposição apenas no que corresponde à estratificação social e legitimidade política. Dessa forma, havia pouca ou nenhuma distinção epistemológica entre crenças verdadeiras ou falsas. Tal fato, torna a dicotomia ortodoxia versus heterodoxia uma concepção inexistente nas comunidades mesoamericanas. Apesar da existência de diferenciações entre os rituais de elite e os praticados pelos demais membros da sociedade, não existiu uma interpretação deles como a crença verdadeira em detrimento das demais.46

Tamanha discrepância entre as sociedades indígenas mesoamericanas e o cristianismo pregado pelos evangelizadores assume grande relevância no entendimento das ações inquisitoriais. Desde a primeira metade do século XVI, os especialistas rituais indígenas foram absorvidos dentro de esquemas classificatórios cristãos, recebendo a designação de “idólatras”, “bruxos”, “feiticeiros” ou “supersticiosos”. Essas reduções abarcaram tanto os aspectos privados, quanto as práticas coletivas das devoções indígenas.47

Em meio à figuração processual da Inquisição episcopal, os rituais indígenas foram vistos como uma antítese unificada do cristianismo. A procedura do Santo Ofício adequou categorias heréticas como a de “idolatria” na leitura e recolhimento dos encargos probatórios. Em outras palavras, a categorização surge como aporte de construção para o mundo indígena por meio dos fenômenos reencenados dentro do âmbito processual, apresentação proporcionada por meio da junção dos enunciados dos acusadores, suspeitos e testemunhas. Assim sendo, a noção de “idolatria” não pode ser empregada como uma categoria de análise sistemática para os fenômenos manifestados na exterioridade dos tribunais, ela sequer correspondeu a uma classificação jurídica estável.48 Em resumo, a chamada

“idolatria colonial” pode ser adjudicada apenas depois da verificação da

46 Ibidem, pp. 31-32.

47 Ibidem, p. 39; BERNAND, Carmen; GRUZINSKI, Serge. De la Idolatría: una arqueología de las

ciencias religiosas. México: FCE, 1992.

48 TAVÁREZ BERMUDEZ, David. Idolatry as an Ontological Question: Native Consciousness and

Juridical Proof in Colonial Mexico. In: Journal of Early Modern History, Minnesota, n. 6, v. 2, pp. 114-139.

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transposição da barreira epistemológica que dividia o sentido das falas dos acusados com relação às acusações inquisitoriais. Seu exame pressupõe, então, uma verificação mais rente aos expedientes que serão analisados. Esse tratamento dos processos passa por sua acepção como forma de saber.

O inquérito, desde seu surgimento na Idade Média, configurou-se como uma forma do poder se exercer. Acertadamente, deriva-se de um certo tipo de relações de poder. De acordo com Foucault, “o inquérito é precisamente uma forma política, uma forma de gestão, de exercício de poder” que, mediante as instituições jurídicas, tornou-se um meio de “autentificar a verdade, de adquirir coisas que vão ser consideradas como verdadeiras e de as transmitir”.49 A intervenção jurídica foi,

também para os indígenas, um dos meios institucionais de se legitimar o caráter “idolátrico” e “diabólico” de suas devoções. Pressuposto nessa mecânica de funcionamento encontram-se imbricados saber e poder, duas instâncias diretamente implicadas. Ora, os procedimentos inquisitoriais apenas podiam se legitimar como elementos de subjugação por meio da constituição de uma série de saberes em seu funcionamento. Afinal, parece-nos inevitável enxergar a instalação do Santo Ofício sem pressupor os saberes que o legitimaram como uma instância de poder. Na advertência de Foucault, “não há relação de poder sem constituição correlata de um campo de saber, nem saber que não suponha e não constitua ao mesmo tempo relações de poder”.50

O processo inquisitorial, independente do réu protagonista, é uma forma de gestão e autenticação de verdades.51 No que concerne à Inquisição episcopal, a

procedura aparece como uma das formas que legitima e autentica a administração mais estrita de castigos pelos evangelizadores com relação aos indígenas. Ela constituiu um dos elementos das novas dinâmicas de domínio impostas pela conquista espanhola. Não obstante, compete dizer que toda a movimentação do tribunal de Zumárraga também pressupunha, dentro de si, uma longa trajetória

49 FOUCAULT, Michel. A Verdade e as Formas Jurídicas. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2003, pp.

77-78.

50 FOUCAULT, op. cit., 2007, p. 27. 51 FOUCAULT, op. cit., 2003, pp. 53-78.

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jurídica vinculada ao enraizamento social do cristianismo católico e seu combate histórico às instâncias contrárias.

4. Heresia e origens da Inquisição

O surgimento dos tribunais de Inquisição possui um vínculo direto com os enfrentamentos entre o cristianismo católico e as manifestações dissidentes, identificadas pela Santa Sé como heréticas. Entre os séculos XII e XIII, o papado identificou nos movimentos heterodoxos de grande abrangência um dos grandes perigos à unidade da fé, especialmente, frente aos chamados cátaros ou albigenses. A atividade dos bispos estava limitada à territorialidade diocesana, que alcançava pouco ou nenhum resultado na perseguição às tendências contrárias que excediam os limites espaciais de cada bispado. Quase duzentos e cinquenta anos antes da fundação da Inquisição espanhola pelos Reis Católicos, o Santo Ofício foi o resultado dos combates contra os denominados hereges da Occitânia – região situada entre o sul da França, norte da Itália e partes da Catalunha. Os primeiros Tribunais da Fé que mais tarde marcaram a consolidação institucional da Inquisição, foram, grosso modo, o efeito de uma série de recursos utilizados pela Igreja na luta da então heresia cátara, na época, disseminada por quase todo o oeste europeu.52

O termo herege, de origem grega (hairesis) e latina (haeresis), designava todos os indivíduos que professavam qualquer doutrina contrária ao que havia sido definido pela igreja. Como ressaltado por Anita Novinsky, herege ou hairetikis, em língua grega, significa “aquele que escolhe”. Portanto, o termo caracterizava os indivíduos que isolavam “de uma verdade global uma verdade parcial” e, em

52 ESCUDERO, José, A. Estudios Sobre la Inquisición. Madrid: Marcial Pons, 2005, pp. 17-18;

RUIZ, Teófilo. La Inquisición medieval y la moderna: paralelos y contrastes. In.: ALCALÁ, Ángel; et. al. Inquisición Española y Mentalidad Inquisitorial: ponencias del Simposio Internacional sobre Inquisición, Nueva York, abril de 1983. Barcelona: Ariel, 1984, pp.45-66; TURBERVILLE, Arthur Stanley. La Inquisición Española. México: FCE, 1985, pp. 9-13.

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seguida, obstinaram-se em sua prática.53 Na história do cristianismo ocidental, o

apontamento de crenças heréticas caminhou lado a lado ao enraizamento da Igreja Católica, tanto na Europa, quanto na América. Apesar das perseguições, antes e durante os períodos de estabelecimento dos tribunais de Inquisição, o surgimento e a renovação de visões contrárias à ortodoxia católica nunca foram completamente suprimidos. Ortodoxia e heterodoxia aparecem como dois polos inseparáveis e suscitaram conflitos à medida que essa relação comprometia o funcionamento das instituições clericais vinculadas, de forma mais estreita, aos governantes seculares.54

Na Idade Média, o surgimento da Inquisição foi decorrente do processo de estreitamento no que diz respeito à tolerância perante às heresias. Os anos de 1232 e 1233 marcaram o início do que se transformou, no decorrer dos anos de prática persecutória, no complexo tribunal do Santo Ofício. A ordem dos dominicanos foi especialmente designada pela Santa Sé para combater os hereges, acompanhados pelos franciscanos e atuando de modo intenso no Midi55. As duas

ordens atuaram com total independência dos bispos locais e estiveram sujeitas apenas aos arbítrios do sumo pontífice. Esses regulares, responsáveis “el asunto de la fé”, foram autorizados pelo papa Gregório IX a agir e formaram, no decorrer dos procedimentos dessa “Inquisição delegada”, um corpo de princípios jurídicos distintos dos procedimentos usuais das sedes episcopais. O papel dos frades mendicantes foi determinante. Desde 1216, Domingo de Gusmão, fundador da ordem dos dominicanos, havia criado uma confraria especial para preparar e formar os combatentes que lutariam pela pureza do catolicismo.56 Os bispos, anteriormente

53 NOVINSKY, Anita. A Inquisição. São Paulo: Brasiliense, 2012, p. 13. 54 Ibidem, pp. 11-13.

55 Sul da França mediterrânica, que engloba as regiões de Languedoc-Roussillon, Aquitânia,

Midi-Pirinéus, o sul de Poitou-Charentes, Rhône-Alpes e Provença-Alpes-Costa Azul.

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responsáveis pelo combate das manifestações heterodoxas em seu perímetro diocesano, passaram a ceder lugar aos inquisidores designados pelo papa.57

Diante dos procedimentos comuns dos tribunais eclesiásticos ordinários, baseados no pressuposto de denúncia e acusação (denunciatio, accusatio), surgiram novos trâmites jurídicos, característicos dos processos inquisitoriais. Para além do habitual, o Santo Ofício utilizou-se do sigilo, isentando os réus de qualquer informação acerca dos denunciantes, das testemunhas ou dos motivos pelos quais estavam encarcerados. Os processos de Inquisição também estavam compostos por dois princípios consecutivos: a investigação prévia (inquisitio generalis), seguida pelo juízo da pessoa acusada (inquisitio specialis).58

O direito penal da Inquisição aparece como um produto doutrinal em meio à literatura jurídica do Antigo Regime. Os tribunais foram concebidos para que de forma alguma o réu ficasse impune. Era recomendado nos manuais de inquisição o uso de elementos de coação diversos, tais como ameaças, truques retóricos e a presença de embusteiros no cárcere para obter mais informações dos suspeitos de heresia. Na finalização dos processos, somente a comprovação de falsos testemunhos podia determinar a absolvição do réu. Todos os outros casos implicavam em condenação ou suspensão da causa movida, podendo ser reaberta a qualquer momento.59

Comparada aos tribunais seculares, a Inquisição sempre guardou certas semelhanças, principalmente, no que dizia respeito a exemplaridade, utilitarismo, oportunismo e arbitrariedade em sua procedura. As penas guardavam uma função intimidadora, administradas no intuito de servirem de exemplo e lição social. Essa característica era evidenciada na plasticidade dos autos-de-fé, nos atavios impostos

57 ALCALÁ, Ángel. Herejía y Jerarquía: la polémica sobre el tribunal como desacato y usurpación de

la jurisdicción episcopal. In.: ESCUDERO, José A. (ed.). Perfiles Jurídicos de la Inquisición

Española. Madrid: Instituto de Historia de la Inquisición, Universidad Complutense de Madrid, 1992,

pp. 61-70.

58 ESCUDERO, op. cit., 2005, p.18.

59 GACTO, Enrique. Aproximación del derecho penal de la Inquisición. In.: ESCUDERO, José A.

(ed.). Perfiles Jurídicos de la Inquisición Española. Madrid: Instituto de Historia de la Inquisición, Universidad Complutense de Madrid, 1992, pp. 177-179.

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aos penitentes, na exumação de cadáveres e na queima de efígies. O Santo Ofício também podia criar compatibilidade das penas com a obtenção de algum proveito, em compensação ao prejuízo causado. Tal qual nos inquéritos civis, o condenado poderia ser incumbido da construção de igrejas ou receber penas de trabalhos forçados, em minas ou nas temidas galeras. As sentenças eram, frequentemente, graduadas a partir da atenção dada às circunstâncias perseguidas, segundo a conveniência, mas, alheias à responsabilidade individual do delinquente. Sobretudo, a Inquisição resguardou a arbitrariedade das instâncias jurídicas de sua época.60

No entanto, o Tribunal da Fé atuava mediante o caráter de direito privilegiado, constituído por sanções mais benignas que as do direito penal ordinário. Enquanto os tribunais seculares puniam o delito de lesa majestade com pena de morte, de forma inapelável, a Inquisição mantinha uma via de escape ao delito de lesa majestade divina. Era possível evitar a sanção máxima ante os tribunais do Santo Ofício, ao menos uma vez, desde que o réu se confessasse e manifestasse seu arrependimento de forma suficiente aos olhos do Inquisidor.61

A Inquisição medieval, também conhecida como Inquisição “pontifícia”, devido ao seu controle pelo papado, atuou de forma mais intensa na Europa Ocidental. As perseguições alcançaram, principalmente, a Península Itálica, a Germânia e a França. Nesta última, Gregório IX nomeou, em 1235, um inquisidor geral e a prática de execução na fogueira já era utilizada contra os condenados. O mesmo rigor foi administrado na Germânia e na Itália, onde foram decretados, desde 1238, a entrega dos hereges à fogueira. A boa recepção do tribunal pelos monarcas Luís IX e Frederico II facilitou a consolidação do novo sistema jurídico-eclesiástico, garantindo a cooperação das autoridades civis, responsáveis pela execução das sentenças dos réus. Apesar disso, foi tímida a presença de instâncias inquisitoriais nas regiões da Hungria, Polônia e Boêmia. Ao que tudo indica, os tribunais nunca atuaram na região da Escandinávia. Na Inglaterra, os juízos

60 Ibidem, pp. 190-191. 61 Ibidem, p. 175.

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apareceram apenas nos procedimentos contra os templários, em 1309, quando comissários especiais enviados pelo papa processaram a ordem que estava afamada como herética, sem, no entanto, configurar um enraizamento local.62

Com exceção de Valência e Aragão, a atuação do Santo Ofício na região, que apenas geograficamente era conhecida como Espanha, teve pouco significado durante a Idade Média. O próprio Reino de Castela desconhecia as ações inquisitoriais antes do reinado de Isabel de Castela e Fernando de Aragão.63 No

Reino de Aragão, a presença do Santo Ofício fez parte da grande perseguição aos cátaros, funcionando desde as ordenações de Gregório IX (1232) ao arcebispo de Tarragona. Entre os inquisidores que atuaram na região, destaca-se Nicolás Eymerich, teólogo catalão famoso pela confecção do célebre Directorium Inquisitorum64. Apesar do reconhecido declínio da instituição inquisitorial após o

combate ao catarismo, Valência também contou com um tribunal de Inquisição autônomo, cuja atuação pôde ser verificada tardiamente em relação aos outros tribunais medievais, no decorrer do século XV.65

A instituição inquisitorial que atuou na baixa Idade Média guardou uma distância considerável de sua sucessora moderna, ainda que pautada em um mesmo fim declarado, qual seja, a perseguição das manifestações heterodoxas ao catolicismo. Esses tribunais foram idealizados e controlados pelo papado, sem, contudo, manterem relação direta ou de fidelidade com as monarquias que governavam os territórios de atuação do Santo Ofício.

Em resposta às petições feitas pelos Reis Católicos – Isabel de Castela e Fernando de Aragão – e, sob a chancela de Sisto IV, no primeiro dia do mês de dezembro de 1478, foi expedida a bula Exigit Sincerae Devotionis Affectus. O aval

62 As perseguições sofridas pelos cátaros na Inglaterra foram protagonizadas pelo monarca Henrique

II e não estão relacionadas com a Inquisição pontifícia. Cf. ESCUDERO, op. cit., 2005, pp. 17-18.

63 RUIZ, op. cit., 1985, pp. 52-53.

64 Compilação de textos do direito romano e canônico, nos quais era oferecido um guia prático para

a atuação dos inquisidores.

65 GARCÍA CÁRCEL, R. Orígenes de la Inquisición Española: el tribunal de Valencia – 1478-1530.

Referências

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