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Capítulo IV: Exemplaridade Punitiva e Efeito Público

3. Vozes e contenções

A cena pública iniciada pela humilhação dos indígenas encontrava nos açoites e na queima das efígies seu ápice. Contudo, o destino dos condenados nem sempre terminava nas detrações e flagelos, pois outras sanções podiam aguardar os processados. O pronunciamento das penas de abjuração, reclusão penitencial, desterro e confisco de bens também figuraram nos inquéritos contra indígenas (Quadro V). Eram encerramentos fundamentais dentro das concepções do castigo inquisitorial.

As abjurações forneciam ao público a confissão do inquirido e a profissão de fé católica – pressuposto usado por Zumárraga para a reconciliação dos réus e antecedido pela ameaça de execução na fogueira em caso de reincidência. O Inquisidor dava a entender “que, si otra vez lo hace, que será quemado por relapso”458. O reconhecimento das faltas justificava, mediante a voz do condenado,

a intervenção inquisitorial e atestava o compromisso de não incorrer uma outra vez nos atos julgados perante as autoridades eclesiásticas.459

Os modos declaratórios formais administrados pela Inquisição episcopal no que diz respeito aos indígenas tiveram lugar tanto nos espaços abertos, quanto em âmbito mais restrito. Os pronunciamentos das abjurações dos réus foram consecutivos à humilhação e ao açoitamento público ou tomaram o lugar das missas, visivelmente diante de todos que compareciam. A abjuração em praças,

458 AGN, Inquisición, vol. 37, exp. 2, f.19.

mercados ou nas principais ruas da cidade finalizava a exposição dos indivíduos penitenciados, demonstrando sua confissão, arrependimento e alertando aos presentes acerca dos delitos cometidos, tal como se pode observar no processo contra Andrés Mixcóatl e Cristóbal Papalotl, de julho de 1537. Consta no expediente que os réus foram remetidos ao seu local de origem, obrigados a reconhecer seus erros e abjurar de suas “herejías” para que todos observassem o arrependimento deles:

(...) Sean llevados por las calles públicas (…) y por los tiangues, y en las espaldas les sean dados cada cien azotes, e sean remitidos a los lugares [de] donde son, y donde predicaron y dogmatizaron, en especial en los lugares más grandes (…) y delante de mucha gente abjuren las herejías que han predicado, y juren que no tornarán a ellas, so pena de relapsos (…).460

O plano punitivo exposto traz implícito o verdadeiro alvo do castigo. Os condenados deveriam ser enviados aos locais específicos “donde predicaron y dogmatizaron”. O público aparece sempre como o destinatário ao qual se deseja enviar o recado: “delante de mucha gente abjuren las herejías que han predicado”.

Por outro lado, alguns dos penitenciados podiam compor cenas menos apelativas. Apresentados no ambiente das igrejas ou capelas, alguns indivíduos tomavam o lugar de exemplos vivos para os sermões proferidos nas missas. Os condenados permaneciam prostrados e materializavam um traslado pecaminoso. Exemplaridade personalizada por Ana de Xochimilco: “sacada con una coroza en la cabeza, y llevada a la Iglesia Mayor de esta ciudad (…) con una candela en la mano, ardiendo, esté en misa que dijere en la dicha Iglesia, en pie”461. Da mesma forma,

Marcos Atlahuacatl foi levado à igreja de Santiago de Tlatelolco, onde deveria comunicar os erros dos quais era acusado:

460 AGN. Inquisición, vol. 38, exp. 7, f. 201.

461 Proceso del Santo Oficio contra una India. In.: Boletín del Archivo General de la Nación,

(…) A la iglesia de Santiago, y allí el dicho Marcos abjure por la mejor vía que se le pudiese dar a entender su mala vida y errores, y se retrate dellos diciendo que, si el los ha dicho, que no estaría en su juicio ni seso, sino borracho, e que él ha y tiene lo que la Santa Madre Iglesia y en la doctrina cristiana, y en ello entiende perseverar e morir, e así lo jure (…)462

As declarações funcionavam dentro dos graus de exemplaridade desejados e dependiam do nível de exposição do condenado. De uma forma ou de outra – seja diante de um grande público ou dos expetadores que ocupavam as capelas e Igrejas – era alcançada a lição edificadora, que consistia na operação de um modelo coercitivo, amedrontador e doutrinador.

A igreja de Santiago de Tlatelolco, onde Marcos Atlahuacatl foi obrigado a abjurar, foi a pedra angular das idealizações evangélicas na Nova Espanha.

Não se tratava de um local aleatório, porque, desde cedo, foi reservado como “doctrina” para catequização dos indígenas convertidos. O dia 6 de janeiro de 1536 marcou o início de um projeto mais ambicioso. Seis meses antes de fundar um tribunal de Inquisição junto ao episcopado, Juan de Zumárraga e os evangelizadores franciscanos inauguraram o Colegio de Santo Cruz de Tlatelolco. A criação do centro de estudos foi endossada pelo vice-rei Antonio de Mendoza e destinava-se ao ensino dos filhos das elites indígenas.463 A criação de centros de

instrução para os jovens indígenas havia sido fomentada desde o princípio da evangelização pelas autoridades civis e eclesiásticas.464 Em meio aos estudantes

do Colégio de Santa Cruz e outros indígenas aos quais eram reservados os sermões da Igreja de Tlatelolco, o penitenciado figurava como elemento pedagógico.

462 AGN, Inquisición, vol. 42, exp. 17, f. 145.

463 GONZALBO AIZPURU, Pilar. Historia de la Educación en la Época Colonial: el mundo

indígena. México: El Colegio de México, 2008, p. 112.

464 Memorial sobre asuntos de buen gobierno que um desconocido hizo por orden del emperador

(1526). In: CUEVAS, Mariano (org.). Documentos Inéditos del Siglo XVI Para la Historia de

As abjurações legitimavam a verdade da acusação formalizada no âmbito dos processos. Elas evidenciavam outro objetivo do Santo Ofício da Inquisição – a extração da confissão do réu culpabilizado. Tal ideal era alcançado muitas vezes pela flagelação do corpo e debilitação psicológica dos indivíduos processados.465 As palavras de arrependimento dos condenados e a invalidação

verbal feita ao final das punições finalizavam a montagem. A confissão proferida pela boca do condenado aparecia aos expectadores em seu papel de “verdade viva”, e ninguém era mais adequado do que o próprio penitente para se auto invalidar suas palavras.466 Diante do público, as palavras forneciam o

reconhecimento da justiça feita por meio do castigo e reforçando, uma vez mais, a imagem de fragilidade das elites indígenas diante do cristianismo dos espanhóis.

Ainda assim, houve grande preocupação quanto ao retorno dos indivíduos castigados à suas comunidades de origem, na finalização dos inquéritos. A influência que os reconciliados podiam exercer sobre os demais indivíduos foi sempre um objeto das preocupações da Inquisição episcopal. Em decorrência, a contenção dos réus tomou forma nas sentenças de desterro e nas reclusões penitenciais que afastavam de imediato os membros condenados de sua localidade.

O distanciamento imposto pelos desterros ou reclusões tinha consequências graves para o núcleo familiar ao qual o indivíduo condenado pertencia. Sua ausência podia significar um período de grande instabilidade no seio das famílias e no cenário político local. A repercussão econômica do desterro ou do afastamento dos penitentes era sempre negativa, apartando-os das atividades produtivas.467 Juntamente com a pena de confisco dos bens, a intervenção

inquisitorial podia debilitar, consideravelmente, os núcleos familiares. E esse é um pressuposto considerado por frei Juan de Zumárraga no momento de desferir as penas que tinham efeitos econômicos. Apenas no processo contra Martín Océlotl,

465 PÉREZ MARTÍN, Antonio. La doctrina jurídica y el proceso inquisitorial. In: ESCUDERO, José A.

(ed.). Perfiles Jurídicos de la Inquisición Española. Madrid: Instituto de Historia de la Inquisición, Universidad Complutense de Madrid, 1992, p. 312.

466 FOUCAULT, op. cit., 2007, pp. 34-35.

foram pronunciadas, em conjunto, as penas de desterro e confisco dos bens (Quadro V, caso 3). Especificidade inteligível se forem considerados o desterro perpétuo e a remissão sofrida pelo condenado aos tribunais Espanha. Com a exceção de Océlotl, o inquisidor Zumárraga evitou o pronunciamento consecutivo dos dois castigos, visto que poderia fadar os indivíduos a um estado de completa miséria.

Os desterros poderiam ser temporários ou perpétuos e destinando-se, sobretudo no caso dos indígenas, a mantê-los ausentes de sua margem de influência social. As reclusões penitenciais complementavam o afastamento com as disciplinas catequéticas. Os indivíduos por vezes ficaram reclusos em monastérios, escolas ou hospitais, onde eram melhor instruídos acerca dos rudimentos do cristianismo. A função almejada pelo trato inquisitorial, em ambas as situações de afastamento, era conter o prejuízo, o dano que o penitenciado poderia causar aos outros convertidos. O que estava em jogo era a própria concepção de “delito” que trazia consigo um caráter intrinsecamente generalizante.468 O verdadeiro perigo que

as práticas consideradas heréticas despertavam nas mentes dos religiosos era a subversão da ordem almejada, o incentivo de outros hereges.

A prática inquisitorial de Zumárraga com os indígenas do Altiplano Mexicano demonstrou grande apreensão perante os indivíduos que poderiam afetar o futuro cristão almejado para as comunidades frequentadas pelos evangelizadores. As inquietudes dos regulares, com especial destaque para os franciscanos, tomaram sua forma mais palpável no processo inquisitorial contra don Carlos Ometochtzin. No fim do ano de 1539, o membro da elite texcocana, aparentado com eminentes líderes indígenas, terminou executado na fogueira.469

468 FOUCAULT, op. cit., 2007, p. 32.

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