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Don Giovanni, e a perfeita unidade entre o meio musical e a ideia sensual 74

2.2. Prolegómenos à interrogação pela qualidade teológica da música de Mozart 73

2.2.1. A “via dialéctica” de S Kierkegaard 74

2.2.1.1. Don Giovanni, e a perfeita unidade entre o meio musical e a ideia sensual 74

O tema da relação entre o musical-erótico e o cristianismo histórico é aprofun- dado pelo filósofo dinamarquês no ensaio Ou-Ou, Um Fragmento de vida, no capítulo intitulado «Os Estados Eróticos Imediatos, ou o Erótico-Musical»369. Para compreender

364 P. SEQUERI, Eccetto Mozart, 12. 365 P. SEQUERI, Eccetto Mozart, 14. 366 P. SEQUERI, Eccetto Mozart, 17. 367 P. SEQUERI, Eccetto Mozart, 17. 368 Cf. P. SEQUERI, Eccetto Mozart, 17-18.

369 S. KIERKEGAARD, Ou-Ou, Um Fragmento de vida, I (Lisboa: Relógio D’Água 2013 [Original

1844] 81-171). O texto dedicado ao Don Giovanni de Mozart está incluído num conjunto de escritos, referidos inicialmente ao editor pseudónimo Victor Eremita, e apresentados sob o título de «Cartas de A» (cf. P. SEQUERI, Eccetto Mozart, 19; E. M. DE SOUSA, Introdução, in S. KIERKEGAARD, Ou-Ou, Um Fra-

gmento de vida, 10). Na Introdução à edição portuguesa pode ler-se: «O [IV] capítulo é bastante mais do

que uma análise pormenorizada da ópera Don Giovanni de Mozart, embora essa análise, por si só, tenha sido o suficiente para que se tornasse um marco incontornável na recepção da obra-prima mozartiana. Encontramos aí tratados quatro dos mais significativos fios condutores de Ou-Ou, a saber, a representação e a apresentação, a imediaticidade e a reflexão» (E. M. DE SOUSA, Introdução, in S. KIERKEGAARD, Ou-

a sofisticada operação kierkegaardiana, Sequeri procura «reconstruir esquematicamente a trama essencial dos seus argumentos»370.

O ensaio sobre o «Erótico-Musical» apresenta-se sob a forma de uma inclusão: uma longuíssima digressão está embutida entre duas breves proclamações de uma in- condicionada fé em Mozart371.

A abordagem à qualidade específica de Don Giovanni é introduzida por Kierke- gaard a partir de uma reflexão sobre a qualidade do meio musical através do qual a obra se realiza. O autor pretende demonstrar a perfeita coerência entre o meio musical e a ideia da obra, que segundo Kierkegaard é a genialidade do eros372.

A conjugação acontece, reconhece Kierkegaard, através da distância que o meio musical e a ideia sensual estabelecem relativamente a outros meios e ideias, pela via da abstracção. Pela sua imediaticidade, música e sensualidade são, de facto, momentos histórica e conceptualmente não representáveis: a música não usa conceitos (que, como será explicitado mais à frente, são próprios da linguagem) e não pode exprimir o que é histórico no tempo, pois não possui as condições necessárias para expressar semantica- mente a determinação histórica dos eventos373.

«Ora qual é a ideia mais abstracta? [...] Qual dos meios é o mais abstracto?»374. Kierkegaard começa pela segunda pergunta. Partindo da premissa anteriormente defen- dida de que «a linguagem é o mais concreto de todos os meios»375, o mais abstracto será portanto aquele que «mais afastado estiver da linguagem»376.

Os meios abstractos são tanto a arquitectura quanto a escultura, a pintura e a música. [...] A ideia mais abstracta, que é pensável, é a genialidade sensual. Mas através de que meio é ela apresentável? Única e exclusivamente através da música. Não se deixa apresentar na escultura, visto que esta é em si mesma uma espécie de determinação da interioridade; também não se deixa pintar, visto que não é possível captá-la com contornos definidos [...]. O facto de ocorrer numa sucessão de momentos exprime o seu carácter épico, mas

370 P. SEQUERI, Eccetto Mozart, 18.

371 Cf. P. SEQUERI, Eccetto Mozart, 19. «Com o seu Don Juan, Mozart entra no pequeno grupo

imortal de homens cujos nomes e obras o tempo não esquecerá, visto que a eternidade os recorda. [...] Embora seja tão infantil lutar pelo lugar superior ou inferior quanto por um lugar na igreja a caminho do altar durante uma confirmação, ainda sou todavia muito criança, ou melhor, sou como uma rapariguinha apaixonada por Mozart, e tenho de o pôr no lugar cimeiro, custe o que custar. E irei ter com o sacristão, com o pastor, com o vigário, com o bispo e com todo o consistório, e hei-de pedir e rogar que se dignem cumprir a minha prece, e hei-de implorar o mesmo a toda a congregação e, se a minha prece não for aten- dida, se o meu infantil desejo não for cumprido, sairei então da comunidade, separar-me-ei dessa maneira de pensar, fundo então uma seita que não se limite a colocar Mozart em lugar cimeiro, mas que nem se- quer tem mais ninguém além de Mozart» (S. KIERKEGAARD, Ou-Ou, Um Fragmento de vida, 84-85).

372 Cf. P. SEQUERI, Eccetto Mozart, 21-22. 373 Cf. P. SEQUERI, Eccetto Mozart, 22.

374 S. KIERKEGAARD, Ou-Ou, Um Fragmento de vida, 92. 375 S. KIERKEGAARD, Ou-Ou, Um Fragmento de vida, 91. 376 S. KIERKEGAARD, Ou-Ou, Um Fragmento de vida, 92.

não é todavia épico em sentido mais rigoroso, visto não estar tão dilatado que se concreti- ze em palavras; move-se continuamente numa imediaticidade. Na poesia, também não se deixa pois apresentar. O único meio capaz de a apresentar é a música377.

A abstracção da ideia sensual é de tal modo absoluta, segundo Kierkegaard, que o meio que mais perfeitamente a representa deve também ele ser absolutamente abstrac- to. É neste sentido que o nosso autor pode falar de uma singularidade irrepetível na ópe- ra de Mozart. «Só se pode repetir o que é representável, o que é determinado»378. Kier- kegaard fundamenta, assim, a unicidade da obra mozartiana, já que a música correspon- de perfeitamente à vivência do sensual que ela deve representar. Esta vivência é, na ópera em questão, “o” sujeito da representação, já que Don Giovanni é mais do que uma personagem. «As condições perfeitas para essa plena representação são dadas pela so- breposição entre a vocação própria da música (mostrar a beleza absoluta da emoção de amor) e a matéria do drama (a felicidade absoluta da sedução de amor)»379.

Para Kierkegaard, a consequência desta perfeita unidade é clara: na medida em que Mozart conseguiu realizar a absoluta adesão da música ao eros,

nenhuma probabilidade existe de Mozart encontrar alguma vez um concorrente. O que há de feliz para Mozart é ter ele encontrado uma matéria que em si mesma é absolutamente musical, e houvesse um outro compositor de rivalizar com Mozart e, então, nada mais lhe restaria fazer a não ser compor Don Giovanni outra vez380.