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2.3. Contrapontos teológicos 84

2.3.3. Hans Küng 96

2.3.3.2. O núcleo crente da biografia mozartiana 98

A ressonância da criação é o que distancia a música de Mozart de uma perspec- tiva catequética ou confessional de outras abordagens da música religiosa.

Torna-se claro que a música de Mozart não contém nenhuma mensagem de fé como a de Bach, nem é uma confissão de vida como a de Beethoven ou de Bruckner, muito menos é uma música programática como a de Listz ou de Wagner. Mesmo nas suas óperas, até na

Flauta Mágica, Mozart não pretende ensinar ou moralizar [...]. A principal preocupação

de Mozart foi simplesmente fazer música [...]. A música foi o seu ser e o seu tudo508.

O prodigioso equilíbrio musical de Mozart brota, defende H. Küng, precisamen- te do seu contexto biográfico. A dureza dramática da sua existência concedeu-lhe um particular sentido crítico relativamente às convenções sociais do seu contexto cultu- ral509. A sua consciência civil (certamente crítica relativamente ao contexto político do regime absolutista), de traço inevitavelmente iluminístico, não permite argumentar, no entanto, no sentido de uma evolução biográfica de determinação agnóstica, nem mesmo arreligiosa. Pelo contrário, o espírito crítico-iluminístico que o jovem músico foi assimi-

507 Cf. P. SEQUERI, Eccetto Mozart, 100, 102.

508 H. KÜNG, Mozart, 21; cf. P. SEQUERI, Eccetto Mozart, 103. A tradução desta última frase não

é fácil: na edição consultada lê-se «music was his be-all and end all»; a tradução italiana usada por Seque- ri sugere «la musica era veramente il suo unico e il suo tutto».

509 Particularmente o ano de 1778, com a ida para Paris e a morte da mãe, parece ser aqui um

passo marcante da sua vida, a juntar ao romance frustrado com Aloysia Weber, ao aparente insucesso em Paris, às críticas do pai pela sua incapacidade em se saber movimentar nos meios sociais influentes e às suspeitas de intrigas em torno da sua pessoa. A inquietação latente na Sinfonia nº 31, (apelidada “Paris”, K. 297/300a) parece reflectir em música este período difícil da sua vida (cf. N. KENYON, Mozart. Vida,

Temas e Obras [Lisboa: Edições70 2008 (Original 2005)] 79-80; P. SEQUERI, Eccetto Mozart, 103-104).

De notar ainda que o último ano da vida de Mozart (o ano do seu Requiem) coincide com o ano da queda da monarquia francesa e a conturbada elaboração da primeira Constituição. Mozart não foi, de certo, indi- ferente ao ambiente revolucionário que perpassava a Europa a partir de França, precisamente nos últimos anos da sua vida. As implicações do contexto social europeu na biografia de Mozart exigiriam uma inves- tigação histórica aprofundada que não cabe no âmbito da nossa abordagem.

lando conduziu, segundo a análise de Küng, a uma consciência religiosa/católica con- centrada no núcleo essencial da fé (como fiel adesão a Deus). É o que se depreende da interessante correspondência que Mozart foi estabelecendo com o seu pai, onde expres- sa, para além da importância da sua formação religiosa, a nuclear convicção da sua fé católica. Sequeri cita textualmente uma destas últimas cartas, onde se percebe, pela pró- pria pena de Mozart, a espessura da sua fé (simultaneamente simples e profunda) na Omnipotência e Misericórdia divinas, juntamente com uma serena tranquilidade perante a morte, que já ameaçava a sua curta vida510.

A ordem da criação, que a música de Mozart expressa de forma tão feliz, e a or- dem da redenção/salvação, que se percebe no seu caminho existencial, apontam, segun- do H. Küng, para uma consciência da Providência divina característica da percepção popular da tradição tipicamente católica do cristianismo511. A proximidade a uma fé popular, não teologicamente reflectida, influirá certamente na singularidade da universal compreensibilidade musical de Mozart:

A música de Mozart é para mim religiosamente relevante não só quando são postos em música os temas ou formas religiosas e eclesiais, mas precisamente na técnica compositi- va da música não vocal, puramente instrumental, através do modo como esta música in- terpreta o mundo, um modo que transcende a conceptualização extra-musical512.

Certamente, a música de Mozart «não é uma demonstração da existência de Deus». No entanto, «às pessoas sensíveis e dispostas a escutar» pode ser dado, mediante uma música em que ressoa a persuasiva vitalidade da beleza, «um totalmente Outro»513. Isto é válido, segundo Sequeri, para a análise da história da escuta de Mozart; mas tam- bém o é, hoje, para os nossos contemporâneos, que continuam a encontrar na música mozartiana a explosão de uma particular persuasão racional e de um sentimento afectivo de Deus, que ressoa também aos ouvidos daqueles que não possuem intencionalmente

510 «Dado que a morte (reflectindo bem) é o último verdadeiro fim da nossa vida, [...] ganhei tal

familiaridade com esta sincera e caríssima amiga do homem, que a sua imagem não só não tem para mim nada de terrível, mas até me parece muito tranquilizadora e consoladora! E dou graças a Deus por me haver dado a fortuna de ter a oportunidade (Ele me compreende) de reconhecer nela a chave que abre a porta da nossa autêntica felicidade. Não adormeço mais sem pensar que (por mais jovem que seja) ama- nhã talvez já cá não esteja. Mas ninguém, de entre todos aqueles que me conhecem, poderá dizer que a minha companhia é triste ou de péssimo humor. E por esta fortuna dou graças todos os dias ao meu Cria- dor e a desejo com todo o coração para todos os meus semelhantes» (cit. por P. SEQUERI, Eccetto Mozart, 105-106). Esta carta está datada de 4 de Abril de 1787, pouco mais de um mês antes da morte do pai, e quatro anos antes da sua própria morte em 5 de Dezembro de 1791 (cf. N. KENYON, Mozart. Vida, Temas

e Obras, 100 e 111).

511 Cf. P. SEQUERI, Eccetto Mozart, 106.

512 H. KÜNG,Mozart, 33-34; cf. P. SEQUERI, Eccetto Mozart, 107. 513 H. KÜNG,Mozart 34; cf. P. SEQUERI, Eccetto Mozart, 107.

uma consciência crente.514 Enfim, quem escuta o seu «último canto», o Requiem, escrito

no ano da sua própria morte, é levado a pensar, com uma convicção própria de quem não sabe traduzir em palavras a certeza que a música desperta no espírito, que «também a sua obra, e não simplesmente a existência ou a pessoa de Mozart, tem o poder de nos preservar do não sentido e da dúvida»515.