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3.1. O desenvolvimento da ideia musical: modulações 107

3.1.1. O sentido da arte 108

Haverá algo comum a todas as artes? H. U. von Balthasar responde desta forma: «Todas as artes estão ordenadas concentricamente a partir de um ponto do qual irradi- am. Este ponto é-lhes comum: através dele, elas se interpenetram e a partir dele podem ser todas interpretadas. É o sentido»550.

O sentido, como o apresenta H. U. von Balthasar, constitui como que a “matéria prima” de todas as artes, e a sua expressão particular (como música, poesia, teatro, etc.) é como que a sua forma. A diversidade das artes é, nesta perspectiva, apenas formal, já que a sua raiz, o seu fundamento, o seu alicerce núclear é essencialmente o mesmo. «É como se falassem somente dialectos diferentes da mesma língua»551. Wagner intuiu esta fundamental unidade entre as artes e tentou expressá-la no seu trabalho artístico, ao pro- curar a síntese perfeita entre música, poesia e dança, nos seus dramas. O ideal da “arte

549 Die Entwicklung der musikalischen Idee é o título original da obra acima citada de H. U. VON

BALTHASAR, Lo sviluppo dell’idea musicale, 10. A estruturação de 3.1. é decalcada desta obra da juven-

tude do teólogo suíço. A pertinência de uma colagem desta obra de H. U. von Balthasar com o pensamen- to de Sequeri justifica-se com o que já foi referido na nota 25. Limitamo-nos a relevar a capacidade sinté- tica deste texto — cujo subtítulo é precisamente Ensaio de uma síntese da música — que justifica agora o seu uso num capítulo que pretende ser mais sistemático e conclusivo. Acerca deste texto de H. U. von Balthasar, escreve Sequeri: «Die Entwicklung der musikalischen Idee (1925) é dedicado à sistemática re-

construção da ideia de música: desde os seus momentos constitutivos e desde os seus problemas específi-

cos. A exploração é conduzida a partir do eixo de uma fenomenológica reconstrução e de uma dedução

histórica cuja primeira característica é a identificação dos momentos de continuidade e ruptura que carac-

terizam a formação da ideia musical ao longo da “invenção” e do acumular das suas estruturas fundamen- tais: o ritmo, a melodia, a harmonia. A originalidade da abordagem fenomenológica e o rigor da constru- ção analítica estão ainda hoje em grau de despertar uma justificada admiração. Tanto mais quando se pensa que só recentemente a filosofia e a estética mostram sinais de uma renovada abertura de um inte- resse por tal [matéria], como perspectiva de interesse geral. E ao qual a análise musical só excepcional- mente se abre com adequada amplitude de horizonte» (P. SEQUERI, Anti-Prometeo, 83).

550 H. U. VON BALTHASAR, Lo sviluppo dell’idea musicale, 14. 551 H. U. VON BALTHASAR, Lo sviluppo dell’idea musicale, 14.

total” redundou afinal num absolutismo estético. A analogia de H. U. von Balthasar po- de ser mais explicitada: assim como a mera conjugação dos vários dialectos não consti- tui uma língua em si mesma, também a justaposição (mesmo criativamente genial) das várias artes não pode abarcar por si a ideia total, o sentido último. A “arte total” wagne- riana constitui-se, afinal, como somente mais uma forma específica, acidental (porven- tura nova), sempre distante de dizer o sentido em si, como messianicamente aspirava. Também em arte, o todo não é a soma das partes.

O sentido, enquanto “matéria prima”, não é uma pura indeterminação (a pura po- tencialidade da metafísica aristotélica). Antes, como recorda von Balthasar, recorrendo a Tomás de Aquino, toda a matéria é sempre materia signata552. Mesmo permanecendo essencialmente idêntico em todas as artes, o sentido é como que modificado em função de determinada forma, aparece como que diferenciado a partir da manifestação aciden- tal que se estabelece em cada arte553. A tentativa wagneriana havia de permanecer ne- cessariamente infecunda. No entanto, a intuição original não é de desprezar: a ideia de uma nuclear conexão das artes dá-nos «as coordenadas nas quais podemos colocar a música, dá-nos a possibilidade de falar de um significado, de uma ideia, de uma objecti- vação da música»554. Apesar de tudo, a matéria apresenta-se sempre assinalada (signa- ta) pela sua forma acidental; há como que um resíduo intraduzível que permanece em cada forma artística, que não pode ser expresso por nenhuma outra forma555.

Este resíduo é o que permite a cada arte aproximar-se, pela sua via específica (formal), da matéria originária, da ideia espiritual (o sentido). Essa aproximação, além de acontecer de modo diverso nas várias artes, também se constitui em diversos graus de intensidade no interior da mesma arte. «Dentro de cada arte singular existe necessa- riamente um máximo, ou seja, uma perfeita completude que, teoricamente, não é de fac- to inalcançável»556. Como é próprio de tudo o que é sensível mover-se em direcção a um fim, também na arte (enquanto expressão sensível de uma ideia) encontraremos este

552 Cf. H. U. VON BALTHASAR, Lo sviluppo dell’idea musicale, 14. O uso da expressão é recor-

rente na reflexão de Tomás de Aquino, particularmente identificado com o princípio da individuação, que procura explicar a diferenciação dos indivíduos dentro da mesma espécie. Tomás encontra no conceito uma explicitação equilibrada para a questão medieval da distinção entre a alma humana e os espíritos puros. A matéria e a forma, na definição de homem, são conhecidas à maneira de corpo e alma, não se podendo dizer que nenhum destes compostos constitua por si a essência de homem. A matéria, neste sen- tido, não é pura potencialidade abstracta, mas “matéria delimitada” (preferimos traduzir por assinalada),

materia signata (cf. THOMÆ DE AQUINO, De ente et essentia, I cap., trad. pt. M. CARVALHO [Porto: Ed. Contraponto 1995] 73 e 75; C. PIRES, Princípio da Individuação in R. CABRAL et al [dir.], Logos. Enci-

clopédia Luso-Brasileira de Filosofia, II [Lisboa/São Paulo: Verbo 1999] 1403-1408).

553 Cf. H. U. VON BALTHASAR, Lo sviluppo dell’idea musicale, 14. 554 H. U. VON BALTHASAR, Lo sviluppo dell’idea musicale, 15. 555 Cf. H. U. VON BALTHASAR, Lo sviluppo dell’idea musicale, 15. 556 H. U. VON BALTHASAR, Lo sviluppo dell’idea musicale, 15.

dinamismo. Se a premissa da metafísica clássica não perdeu ainda totalmente a sua ori- ginária qualidade de dizer a verdade do real (independente da sua formulação aristotéli- ca, como causalidade, como finalidade, como movimento), então podemos afirmar, com von Balthasar, que também «a arte suscita um desenvolvimento em direcção a um fim»557.