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Tentativas de reacção aos “labirintos” românticos da sacralização da música 57

1.2. Paradigmas históricos 24

1.2.3. O paradigma da “arte absoluta” 54

1.2.3.2. Tentativas de reacção aos “labirintos” românticos da sacralização da música 57

A sacra sublimação da música realizada pelo romantismo teve o mérito de pro- curar encontrar o «espaço expressivo da própria música»280, na sua relação com as ou- tras artes (particularmente a poesia). A noção de música como “linguagem sem pala- vras” tem efectivamente consequências interessantíssimas para a reflexão teológica281.

Possui também o risco de atribuir à música capacidades que de facto não lhe são pró- prias, nem lhe podem ser exigidas. As reacções fizeram-se sentir ainda dentro da própria época romântica: o formalismo de E. Hanslick, em sede propriamente musicológica, e o cecilianismo, no âmbito da música sacra, são os dois exemplos apresentados por P. Se- queri.

«A questão da diferença — e da relação — entre música religiosa e religiosidade da música não mais se deixará decidir teoricamente, depois da viragem clássico- -romântica, simplesmente em termos litúrgicos»282. A ausência de uma teologia ade-

quada à nova poética musical conduziu ao predomínio dos critérios empíricos, funcio-

no que une os dois continentes da poesia e da dança. «A música é o coração do homem» e «o órgão do

coração é a sonoridade». A crítica cerrada a toda a tradição musical (particularmente a música cristã, o

contraponto e a ópera) desemboca na exaltação do pioneirismo de Beethoven como aquele que soube

abrir para a arte do futuro a exploração da imensidão deste oceano e das suas longínquas margens, com a audácia de Colombo na travessia transatlântica, ou ainda como aquele que deu vida ao artista do futuro a partir da matéria sonora, à semelhança de Prometeu que forma o homem a partir da matéria do barro (cf. R. WAGNER, A obra de arte do futuro [Lisboa: Antígona 2003 (Original 1849)] 73-102).

279 Cf. P. SEQUERI, La Risonanza del Sublime, 110. 280 E. FUBINI, Estética da Música, 124.

281 Como procuraremos ir destacando ao longo da nossa reflexão, particularmente na análise ao

texto de Kierkegaard sobre Mozart, em 2.2.1.

nais, práticos, na hora de discernir o tipo de música apropriada à liturgia cristã283. O

discernimento não é difícil quando se trata de distinguir entre música de divertimento e música ritual cristãmente concebida. Neste ponto específico, também a antiga teologia permite reconhecer que o fim espiritual mais nobre da música é o louvor de Deus. «A história da música ocidental foi gerada assim»284. Precisamente por isso, a música ro- mântica «incorporou na sua concepção sonora (vocal e instrumental) estes valores»285, com uma síntese simbólica de inegável qualidade artística e espiritual. De facto, a nova concepção musical não rompe radicalmente os elos de ligação com a tradição cristã (textos e formas). Não pretende, contudo, colar a temática religiosa com a especificida- de da prática litúrgica e a qualidade teologal da fé286.

A reacção ceciliana ensaiará uma tentativa de recuperação de iniciativa da músi- ca litúrgica. O «pai espiritual»287 do movimento ceciliano, J. Thibaut, propôs Palestrina como modelo intemporal e criticou de forma rigorosa o uso da música instrumental na igreja (à excepção do órgão). As suas ideias foram formalizadas institucionalmente por K. Proske e F. Witt, no âmbito germânico. Depois da aprovação oficial da Associação de Santa Cecília por Pio IX, em 1870, vários países seguiram o exemplo alemão e for- maram associações correspondentes288.

A intencionalidade ceciliana esforçou-se por unir mais estreitamente a música e a liturgia. Um primeiro momento foi marcado por uma forte crítica ao estado de situa- ção da música litúrgica nos vários países. A música executada em muitas igrejas apro- ximava-se mais de uma concepção ornamental de música para o culto, influenciada pelo estilo operático, pela música de salão ou pela marcha militar, certamente em não con- formidade com a dignidade da liturgia. É neste contexto de um certo maneirismo e me- diocridade da prática musical litúrgica que se procurará recorrer aos modelos do passa- do, da música a cappella, particularmente Palestrina, e mais tarde, a recuperação do canto gregoriano289.

Os limites do cecilianismo, particularmente duma sua interpretação ideológica, residem no facto de fazer valer a exemplaridade do passado como modelo praticamente

283 Cf. P. SEQUERI, La Risonanza del Sublime, 110. 284 P. SEQUERI, La Risonanza del Sublime, 110. 285 P. SEQUERI, La Risonanza del Sublime, 111. 286 Cf. P. SEQUERI, La Risonanza del Sublime, 111. 287 E. JASCHINSKI, Breve storia della musica sacra, 100.

288 Cf. E. JASCHINSKI, Breve storia della musica sacra, 100; P. SEQUERI, La Risonanza del Su- blime, 111.

289 Cf. E. JASCHINSKI, Breve storia della musica sacra, 100-101; P. SEQUERI, La Risonanza del Sublime, 112.

exclusivo de toda a possível música de igreja, distanciando a música litúrgica do contac- to fecundo com os grandes compositores do tempo. F. Liszt, a título de exemplo, lamen- tava-se numa carta dirigida a um amigo: «Todos estão contra mim. Os católicos, porque consideram profana a minha música sacra; os protestantes, porque pareço-lhes católico; os maçons, porque pensam que a minha música é de igreja»290.

Um ciclo histórico de uma assídua frequentação litúrgica da música culta parece fechar-se aqui, «impondo à composição litúrgica a inevitável mediocridade de um epi- gonismo de maneira. Deste modo, mais do que uma tradição de insubstituível referên- cia, acabou por se canonizar a inevitável precariedade histórica de um estilo compositi- vo»291.

As louváveis excepções (de Solesmes a Perosi) não alteram substancialmente o estado geral da situação. Mormente, a nova consciência musical usará argumentos reli- giosos para imputar às igrejas a culpa de um abandono artístico das suas memórias sa- gradas, e da consequente degradação da sua pretensa missão espiritual292.

Fora do âmbito litúrgico, mas igualmente em reacção aos excessos sacralizantes da música romântica, está a tentativa de uma «estrutural secularização da nova ideia musical, subtraindo a lógica estética e artística a toda a intrínseca relação com o signifi- cado extra-musical»293. O formalismo estético de E. Hanslick está, no entanto, destinado a permanecer uma tentativa ineficaz e de certa forma ingénua. O seu ensaio O Belo mu- sical foi acolhido como um verdadeiro “manifesto” contra Wagner e contra a «redução da música a um auxílio ornamental e psicológico da ideologia»294. Surge com Hanslick,

na senda cultural, a figura do musicólogo como um «verdadeiro e próprio “operário es- pecializado” na crítica de um específico género de produtos culturais»295. O maxima- lismo formalista de Hanslick redundará numa autonomia “asséptica” da expressão mu- sical; esta não deverá conter nenhum conteúdo extra-musical. A distância crítica face a uma essência intencional da transmissão de conteúdos da prática musical acarreta inevi- tavelmente o esvaziamento existencial da experiência musical na sua potencialidade significante. Esta linha de pensamento terá de esperar pelo séc. XX para ser acolhida e desenvolvida, permanecendo um elemento estranho à concepção musical da época,

290 Cit. por E. JASCHINSKI, Breve storia della musica sacra, 102. 291 P. SEQUERI, La Risonanza del Sublime, 112-113.

292 Cf. P. SEQUERI, La Risonanza del Sublime, 114-115. 293 P. SEQUERI, La Risonanza del Sublime, 115. 294 P. SEQUERI, La Risonanza del Sublime, 115.

295 G. GUANTI, Romanticismo e musica. L’estetica musicale da Kant a Nietzsche (Torino: E.D.T.

mesmo aquela de alguns compositores românticos que procuraram demarcar-se da pers- pectiva mais totalizante de Wagner, como Brahms, Liszt e Bruckner296.