• Nenhum resultado encontrado

Dos critérios para se valorar a gravidade do descumprimento

É importante delinear exatamente os critérios para se valorar a gravidade do descumprimento, uma vez que se trata de expressão de conteúdo vago e impreciso, que merece atenção especial. Sem esta questão corretamente delineada não se pode averiguar a substancialidade do adimplemento ou, contrariamente, a insignificância do inadimplemento, motivo pelo qual se entende fundamental levantar todas as características do caso concreto, isto é, a situação de fato ocorrida, os interesses e a conduta das partes, assim como todas as demais circunstâncias que no caso se mostrem relevantes.186

O enquadramento do equilíbrio contratual como sendo ou não de escassa importância há de levar em consideração a concreta relatividade contratual. O ponto central neste assunto é verificar o interesse objetivo das partes em receber a prestação parcial, sem o qual não poderá se configurar o adimplemento substancial. Ademais, deve-se atentar ao programa contratual como um todo, sua natureza, suas cláusulas, bem como as conseqüências que o inadimplemento acarreta na economia do contrato.187

Por este motivo a doutrina italiana, ao se debruçar sobre a discussão do parâmetro adequado à valoração do inadimplemento, com relação ao art. 1455 do Códice Civile, afastou o critério subjetivo188, que leva em consideração a vontade hipotética do contratante não inadimplente, adotando para este fim o critério objetivo que leva em conta a economia do contrato, a globalidade da relação existente e o desequilíbrio ocasionado pelo

185 Além desse critério, a doutrina italiana costuma afirmar que também deve se utilizar o critério de

proporcionalidade, de forma que um inadimplemento de escassa importância não pode justificar que a parte contrária, valendo-se da cláusula em questão, nada cumpra do contratado. ROPPO, Vicenzo, op. cit., p. 988.

186 Nesta investigação a doutrina costuma destacar o uso da tópica em que se procede à verificação das

circunstâncias relevantes do caso específico, ponderando em que medida o descumprimento abala os interesses envolvidos no contrato, a fim de decidir, a partir de então, qual a solução justa para o caso. A este respeito, ver VIEHWEG. Tópica y jurisprudência. Tradução de Luis Diez Picazo. Madrid: Taurus, 1986.

187 TURCO, Cláudio, op. cit., p.111 e PROENÇA, José Carlos Brandão, op. cit., p. 143.

188 Por tal critério, seria considerado suficientemente grave o inadimplemento, dando direito à parte contrária de

buscar a dissolução do vínculo, quando fosse possível concluir que a parte não inadimplente não realizaria a contratação se soubesse ou suspeitasse que tal inadimplemento pudesse ocorrer. SCHIMPERNA, Pamela. Importanza dell’ inadempimento nella risoluzione del contratto. Giustizia Civile. Milano: Giuffrè, v.35, p.497- 514, out.1995.

descumprimento deixando de lado qualquer valoração subjetiva que o contratante possa fazer do seu interesse.189

Tal verificação na prática se consubstancia no exame comparativo entre o que havia sido programado e aquilo que realmente foi realizado, conforme tem inclusive sido decidido pelo Superior Tribunal de Justiça e o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul em casos referentes a pedido liminar de busca e apreensão de bens alienados fiduciariamente, em que foi afastada a possibilidade desta medida considerando o pequeno valor da dívida em relação ao valor do bem190, assim como contratos de seguro, em que a seguradora não pode extinguir o contrato de seguro por falta de pagamento da última parcela do prêmio pelo segurado, hipótese em que se verifica o adimplemento substancial191.

Diferente de tais casos seria uma transação de compra e venda em prestações, em que tenham sido pagas tão somente as primeiras prestações. Nesse caso o inadimplemento não é de escassa importância, e sim grave e, por isso, inaplicável esta teoria, conforme já decidiu o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que afirmou que uma situação como esta “está longe de configurar adimplemento substancial.”192

189 SCHIMPERNA, Pamela, op. cit., p.501.

190ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. Busca e apreensão. Deferimento liminar. Adimplemento substancial. Não viola

a lei a decisão que indefere o pedido liminar de busca e apreensão considerando o pequeno valor da dívida em relação ao valor do bem e o fato de que este é essencial à atividade da devedora. Recurso não conhecido. (REsp 469.577-SC, rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, 4ªTurma, j.25-3-2003) e ver também precedente transcrito no item 3.3.4 supra.

Apelação cível. Alienação fiduciária. Ação de busca e apreensão. Contrato de financiamento. Ação revisional. Caso concreto. Julgamento de improcedência proferido na origem para ambas as ações. Adoção da teoria do adimplemento substancial. Adimplemento de 41 parcelas de um total de 48 prestações previstas no contrato. Medida desproporcional adotada pelo credor fiduciário, ante os pagamentos efetuados pelo devedor fiduciante e os depósitos ofertados na demanda revisional. Precedentes jurisprudenciais. Sentença de improcedência da busca e apreensão mantida. Recurso desprovido. (Apelação Cível Nº. 70021526066, Décima Terceira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Ângela Terezinha de Oliveira Brito, Julgado em 18/12/2007)

191 Ver precedente transcrito no item 3.3.4 supra.

192 Ação de resolução de contrato de promessa de compra e venda de imóvel ajuizada pela parte vendedora.

Sentença de procedência do pedido. Recurso de apelação dos demandados. Preliminar. Alegação de cerceamento de defesa. Não-configuração. Mérito. A alegação de adimplemento substancial das obrigações não merece acolhimento porque, das 60 parcelas mensais ajustadas entre as partes, os demandados efetuaram o pagamento de apenas 23, o que está longe de configurar adimplemento substancial. Indenização de benfeitorias. Matéria suscitada apenas em grau de apelação, de modo extemporâneo. Apelação desprovida. (Apelação Cível Nº. 70020393559, Vigésima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Carlos Cini Marchionatti, Julgado em 19/12/2007)

Cumpre ressaltar também os casos em que há somente descumprimento de dever lateral e acessório, e que a obrigação principal foi adimplida integralmente. Nesses casos, é fundamental indagar-se o efetivo interesse do credor no recebimento da prestação que, não obstante, ao aproximar-se do conteúdo contratual previsto, é inexata.

Tal interesse do credor em receber a prestação é requisito para a aplicação da teoria do adimplemento substancial no Direito italiano, nos termos do já citado art. 1.455, parte final, do Código Civil. Contudo, este interesse não é avaliado subjetivamente mediante uma valoração que o credor faz do seu próprio interesse, mas sim de acordo com a função social do contrato193, trazendo o conceito de causa do contrato194.

Dessa forma, evidencia-se que ao se trazer a noção de causa à avaliação do inadimplemento, pode-se afirmar que haverá inadimplemento de escassa importância quando, não obstante a lesão do direito do credor, o contrato mantém a sua função econômico-social, o que significa dizer, o resultado prático perseguido pelas partes, em que pese o inadimplemento ocorrido, efetivamente se realiza. Ao contrário, o inadimplemento será considerado substancial ou de importância quando o fim prático previsto no tipo contratual e buscado pelo agente não for alcançado, de forma que a prestação realizada não conserva a sua utilidade para o credor.195

Vale dizer, em casos de alienação fiduciária em garantia, tendo sido pago o preço em grande parte, entende-se que o contrato cumpriu sua função econômico-social, de modo que

193 Cláudio Luiz Bueno de Godoy explica que a função social do contrato hoje integra seu conceito, o conceito

mesmo de autonomia provada. Ou se se quer falar em limite, a função social do contrato é um limite interno, constante, e de vertente também positiva, promocional de valores básicos do ordenamento. (...) Trata-se, também, de o contrato, funcionalizando, servir à promoção daqueles valores, das escolhas do sistema. O que se tem enfim é a função social do contrato integrando-lhe o conteúdo, garantindo que o ato de vontade receba tutela jurídica, desde que seja socialmente útil e sirva à promoção e valores constitucionais fundamentais – portanto uma função não só negativa limitativa -, dentre os quais dignidade humana, de que, é certo, o exercício da liberdade contratual não deixa de ser uma expressão como visto. Ou seja, a vontade não fica excluída do processo formador do contrato, não deixa de ser móvel criador do negócio, mas cujo efeito normativo encontra suas origem na incidência do ordenamento, condicionada à verificação da consonância do ato de iniciativa da parte às escolhas e valores do sistema. De resto, mais, como uma forma de prestigiá-los e fomentá-los. GODOY, Cláudio Luiz Bueno de, op. cit., , p. 190-191.

194 Segundo Emilio Betti, a causa ou razão determinante do negócio jurídico identifica-se com a função

econômico social do contrato, considerado merecedor de tutela jurídica, ou com a “típica função do interesse público à qual deve corresponder a providência concreta. BETTI, Emílio. Teoria geral do negócio jurídico. Tradução de Ricardo Rodrigues Gama. Campinas: LZM, 2003. t.1, p.258.

se inviabiliza o desfazimento do negócio, com a busca e apreensão do objeto vendido, justificado normalmente por cláusula resolutiva expressa. Em caso análogo, em contrato de compra e venda com prestações, se pequena parte do preço restar inadimplida, mas a avença cumpriu sua função de transmissão de bens e valores, não se admite a resolução, restando ao credor tão somente a execução específica do valor não pago.

Dessa forma, pode-se dizer que na valoração do inadimplemento o juiz, em última análise, deverá levar em consideração as circunstâncias relevantes do caso, sobretudo os efeitos do incumprimento para o equilíbrio sinalagmático do contrato, a natureza da obrigação e o comportamento das partes. Nessas hipóteses, verifica-se necessariamente se o contrato foi executado segundo a boa-fé objetiva, se o devedor tomou alguma providência para reduzir o período de duração do inadimplemento, além da natureza e qualificação do contrato.

Ruy Rosado de Aguiar Júnior ressalta que não se trata de uma mera estimativa de valor do dano causado, mas sim “calculado em função da ofensa provocada à economia do contrato” e que “há de se ponderar a gravidade da infração e não em razão do prejuízo ocasionado ao credor, que poderá ser – em razão das circunstâncias particulares e estranhas a contrato – de maior ou menor repercussão.” 196 Além disso, este autor ensina que a avaliação quanto ao interesse satisfeito do credor somente poderá ser valorado no momento em que deveria ser satisfeito e não o foi.197