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Os procedimentos estabelecidos pela Lei Maria da Penha simbolizam, mais uma vez, a diretriz central deste diploma legal, que é o oferecimento de proteção integral à mulher em situação de violência doméstica. Nessa monta, revela-se indispensável a análise de atuação da Lei 11.340/06.

3.2.1 Normas aplicáveis

Para o processo, julgamento e execução das causas cíveis e criminais abrangidas pela Lei Maria da Penha, é determinada a aplicação subsidiária tanto dos CPP, do Código de Processo Civil (CPC), como do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e do Estatuto do Idoso.11

Assim, o legislador optou em deixar expressa a possibilidade de aplicação subsidiária do CPC e do CPP, reduzindo a probabilidade de ocorrência de situações concretas que não fossem objeto de disposição específica na Lei Maria da Penha: em caso de lacuna, aplicam-se subsidiariamente as regras processuais gerais. (BIANCHINI, 2014, p. 214-215).

Ademais, é igualmente justificada a preocupação do legislador em apontar também a subsidiariedade do ECA e do Estatuto do Idoso, dirimindo qualquer dúvida que envolva a aplicação conjunta desses textos legais. Com efeito, em muitos casos, observa-se

11 Consoante dispõe o art. 13 da Lei 11.340/06: Ao processo, ao julgamento e à execução das causas cíveis e

criminais decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher aplicar-se-ão as normas dos Códigos de Processo Penal e Processo Civil e da legislação específica relativa à criança, ao adolescente e ao idoso que não conflitarem com o estabelecido nesta Lei. (BRASIL, 2006).

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uma sobreposição de vulnerabilidades sociais: a pessoa idosa do sexo feminino, a criança e a adolescente do sexo feminino apresentam especificidades nas demandas de proteção, as quais somente podem ser satisfatoriamente atendidas pela utilização de ambos os estatutos. (BIANCHINI, 2014, p. 214-215).

Nesse sentido, destaca Souza: “quando nessas outras leis houver alguma previsão mais favorável à mulher vítima de violência doméstica ou familiar, [...], este artigo 13 está expressamente autorizando a aplicação subsidiária da norma mais favorável.” (SOUZA, 2008, p. 93).

De qualquer modo, os diplomas legais em comento visam a concretizar valores constitucionalmente reconhecidos (arts. 226, §8º, 227 e 230 da CRFB/88). Descabe a aplicação pura e simples dos métodos tradicionais de solução de conflito (hierárquico, cronológico e especializado), o que evidencia o principal objetivo deste dispositivo: a possibilidade de resguardar ao máximo os direitos reconhecidos em cada uma dessas normas. (SOUZA, 2008, p. 93).

3.2.2 Os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher

O art. 14 da Lei 11.340/06 dispõe acerca da criação e da competência dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, estabelecendo sua abrangência às causas cíveis e criminais decorrentes da prática de atos de violência doméstica.12

Anteriormente à criação dos Juizados, a mulher, que já se encontrava em condição de vulnerabilidade, precisava buscar seus direitos e proteger-se da violência em diversos órgãos do Poder Judiciário, o que lhe dificultava o acesso à justiça. (BIANCHINI, 2014, p. 216).

Os Juizados representam, dessa forma, um dos maiores avanços da Lei Maria da Penha, pois, por meio deles, foi possível centralizar, num único procedimento judicial, todos os meios de garantia dos direitos da mulher em situação de violência doméstica e familiar, antes relegado a diversos órgãos jurisdicionais. (BIANCHINI, 2014, p. 216).

Todavia, a realidade aponta para o fato de que o número de Varas e Juizados especializados no país permanece reduzido. Até julho de 2012, o Brasil possuía apenas 66

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Assim preceitua: Art. 14. Os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, órgãos da Justiça Ordinária com competência cível e criminal, poderão ser criados pela União, no Distrito Federal e nos Territórios, e pelos Estados, para o processo, o julgamento e a execução das causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher.Parágrafo único. Os atos processuais poderão realizar-se em horário noturno, conforme dispuserem as normas de organização judiciária. (BRASIL, 2006).

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unidades judiciárias exclusivas de violência doméstica13, verificando-se que a distribuição delas encontra-se desproporcional entre os tribunais brasileiros e não obedece a critérios populacionais. (BIANCHINI, 2014, p. 218).

Nesse viés, o art. 33 da Lei Maria da Penha prevê que, enquanto não estiverem estruturados os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, as varas criminais podem acumular as competências cível e criminal para conhecer e julgar as causas decorrentes da prática de violência prevista na Lei. (BRASIL, 2006).

Dando prosseguimento ao estudo do art. 14, o seu parágrafo único autoriza a realização de atos processuais em horário noturno. Numa interpretação sistemática do ordenamento jurídico brasileiro, pode-se concluir que o legislador considera que o período noturno pode atuar como fator de aumento de vulnerabilidade em razão de ser o momento em que a maior parte das pessoas repousa, gerando redução de vigilância, além de que muitas repartições públicas encontram-se fechadas. (BIANCHINI, 2014, p. 219).

Tecidas as considerações que envolvem a criação e a competência dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, cumpre asseverar que a competência para os processos cíveis é regida pelo art. 15 da Lei Maria da Penha, que faculta à ofendida optar pelo seu domicílio ou residência; pelo lugar do fato em que a demanda é baseada ou no domicílio do agressor. (BRASIL, 2006).

Tal regra orienta-se justamente pelas partes envolvidas na demanda: a mulher agredida e seu agressor. Ao oferecer três possíveis foros competentes, o legislador manifesta seu entendimento acerca da complexidade das relações pessoais existentes entre as partes, com vistas a reduzir tanto quanto possível as dificuldades práticas para o ajuizamento dos processos cíveis, como, por exemplo, deslocamento até o foro da propositura da ação, localização de testemunhas. (BIANCHINI, 2014, p. 228).

Imperioso destacar que, quando os processos forem de natureza criminal, seguem- se os dispositivos gerais de competência estabelecidos no CPP. Aplica-se a regra geral em que o juiz é competente para o processamento e julgamento de uma causa em razão do lugar onde a infração se consumou, nos moldes do art. 70 deste diploma legal. (CUNHA; PINTO, 2008, p. 105).

13 Informação retirada do documento disponibilizado em: http://www.compromissoeatitude.org.br/lei-maria-da-

penha-varas-exclusivas-aumentam-a-credibilidade-do-judiciario-e-encorajam-a-denuncia/. Acesso em: 10 abril 2015.

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Superadas as questões que abrangem a competência, a Lei Maria da Penha trata, em continuidade, sobre a renúncia à representação nas ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida.14 (BRASIL, 2006).

Com efeito, é comum o fato de que as mulheres, quando o crime depende de representação, registrem ocorrência na delegacia de polícia, apresentem representação e, depois, reconciliadas com seus maridos ou companheiros, busquem a renúncia à representação, evitando-se, assim, o ajuizamento da ação penal. (NUCCI, 2008, p. 1138).

Com base nisso, o artigo em estudo procura dificultar essa renúncia à representação, determinando que somente será aceita se for realizada em audiência especialmente designada pelo juiz com essa finalidade, com prévia oitiva do Ministério Público. A audiência ocorrerá no Juizado de Violência Doméstica e Familiar e, na sua falta, na vara criminal. (NUCCI, 2008, p. 1138).

Apesar da maioria doutrinária15 concordar com a importância da audiência prevista no art. 16 da Lei, em casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, há posicionamentos contrários à sua previsão.

Maria Lúcia Karam, por exemplo, considera desnecessária tal audiência, entendendo que pode haver retratação independentemente da presença do juiz e do Ministério Público. Para a autora, o referido ato seria uma forma de procedimento discriminatório para a mulher, pois a Lei a obrigaria a fazer a renúncia perante o juiz, para que esse possa aferir sua real intenção. (KARAM apud BIANCHINI, 2014, p. 232).

Não obstante, analisando referida questão sob a óptica do objetivo da Lei em comento, entende-se que a audiência prevista no art. 16 da Lei Maria da Penha demonstra uma forma de garantir que a vítima não está sendo pressionada a renunciar a representação, já que a agredida encontra-se em situação vulnerável, por conta do processo de violência que sofria.16

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Nessa esteira, dispõe o art. 16 da Lei em estudo: Art. 16. Nas ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida de que trata esta Lei, só será admitida a renúncia à representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público. (BRASIL, 2006).

15 Fazem coro favorável à audiência: Alice Bianchini; Maria Berenice Dias, Leda Maria Hermann; Rogério

Sanches Cunha e Ronaldo Batista Pinto. (BIANCHINI, 2014, p. 233; DIAS, 2012, p. 101; HERMANN apud BIANCHINI, 2014, p. 232; CUNHA; PINTO, 2008, p. 111-114).

16 Nesse sentido, já proferiu o TJRS: Correição parcial. Violência doméstica. Audiência, nos termos do art. 16 da

Lei 11.340/06. Renúncia. Não comparecimento da vítima. A manifestação expressa da vítima, em juízo, é obrigatória, para fins de renúncia, e não para o prosseguimento da ação penal. O procedimento adotado põe em risco a eficácia da Lei Maria da Penha, criada para proteger o mais fraco na relação familiar ou doméstica. Precedentes jurisprudenciais. Confirmação da liminar. Correição parcial provida. (RIO GRANDE DO SUL, 2012b).

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O capítulo que trata sobre as disposições gerais dos procedimentos previstos na Lei 11.340/06 impõe, por fim, a vedação da aplicação de penas restritivas de direito, consoante rege o art. 17 da Lei. (BRASIL, 2006).

Antes da promulgação da Lei dos Juizados Especiais (Lei 9.099/95), criada com o objetivo de imprimir celeridade aos processos de resolução de conflitos de menor potencial ofensivo, os casos notificados de violência contra a mulher eram encaminhados às Varas Criminais Comuns. A partir da promulgação da Lei 9.099/95, houve uma entrada considerável de casos que compreendem violência doméstica nos Juizados Especiais Criminais. (BIANCHINI, 2014, p. 233).

Consequentemente, significativa parte dos delitos que envolviam a questão da violência doméstica e familiar era solucionada com base no art. 76 da Lei 9.099/95, que prevê a transação penal com aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multa, ou através do art. 89 do mesmo diploma legal, que prevê a suspensão condicional do processo para crimes com pena mínima igual ou inferior a um ano. A proposta para estes casos se resumia, principalmente, à obrigatoriedade da distribuição de cesta básica em instituição de caridade ou ao pagamento de multa. (BIANCHINI, 2014, p. 234).

A inépcia dos Juizados Especiais em proporcionar resposta satisfatória às vítimas de violência doméstica impulsionou a banalização da violência doméstica por parte dos Juizados Especiais Criminais e a consequente vulnerabilização da vítima. Afinal, a solução dada para esses casos não era nada educativa para o agressor, que era estimulado a desvalorizar, ainda mais, a vítima, cuja dor era compensada com cestas básicas ou por pagamento em dinheiro. (BIANCHINI, 2014, p. 234).

Nessa senda e em consonância com o art. 41 da Lei Maria da Penha – que veda a aplicação da Lei 9.099/95 aos crimes praticados com violência doméstica e familiar –, o legislador, ao dispor sobre a proibição de cesta básica ou outras de penas pecuniárias, refere- se àquelas penas restritivas de direitos (art. 43 do CP), aplicáveis em substituição daquelas privativas de liberdade (art. 44 do CP). Vale destacar que a pena de multa pode ser aplicada como pena principal, podendo ainda ser aplicada de forma substitutiva, desde que não seja isoladamente. (SOUZA, 2008, p. 113-114).

Portanto, o objetivo do artigo em estudo consiste em impedir que eventuais substituições de penas privativas de liberdade por penas restritivas de direito se resumissem ao pagamento de cestas básicas ou determinada pecúnia e, por conseguinte, deixassem de minorar a violência doméstica e familiar contra a mulher. (BIANCHINI, 2014, p. 236).

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A criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, incorporada com suas regras de competência, introdução da audiência especial para renúncia à representação e sua vedação expressa de aplicação de penas restritivas de direito, constituem uma das principais inovações da Lei Maria da Penha. Igualmente, as medidas protetivas de urgência previstas na Lei caracterizam-se como outra importante novidade, merecendo, desta forma, uma análise detida sobre o tema.