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Natureza jurídica das medidas protetivas de urgência que obrigam o agressor

4.2 A DIVERGÊNCIA ACERCA DA NATUREZA JURÍDICA DAS MEDIDAS

4.2.2 Natureza Cautelar

4.2.2.1 Natureza jurídica das medidas protetivas de urgência que obrigam o agressor

15 Com efeito, Porto assevera que algumas medidas possuem caráter civil porque concernem, sobretudo, à

privação do uso de bens materiais, como a casa de moradia, estabelecimento de trabalho ou à vedação de negócios. (PORTO, 2007, p. 88-89).

73 As medidas protetivas que obrigam o agressor encontram-se previstas no art. 22 da Lei, já oportunamente estudado. Primeiramente, há de convir-se que tais medidas possuem em comum o condão de resguardar a integridade física e psicológica da mulher. Por outro lado, não se pode olvidar que cada uma dessas medidas se comportam de maneira diferente, já que apresentam natureza penal e civil. (SENTONE, 2011).

Prevista no inciso I, a suspensão de posse ou restrição do porte de armas é vista, de modo geral, como uma medida preventiva, de caráter cautelar penal, que intenta combater os altos índices de crimes contra mulheres com o uso de arma de fogo. (SENTONE, 2011).

Considerações peculiares hão de ser feitas no que se refere ao afastamento do agressor do lar, domicílio ou local de convivência (art. 22, inciso II). No que concerne ao seu processamento, os operadores do direito não chegaram num consenso. Há uma corrente que prega que a medida protetiva de afastamento do agressor do lar só difere da separação de corpos prevista no CPC porque naquela há violência de gênero contra a mulher. (SENTONE, 2011).

Os defensores16 da tese acima alegam que o legislador procurou tratar a violência doméstica como um fenômeno único, independentemente da natureza da ação, e encerrou a dicotomia cível/criminal para a propositura das demandas. Logo, a competência para julgamento das medidas protetivas e da ação principal é dos Juizados Especiais de Violência Doméstica e Familiar. (SENTONE, 2011).

Diferentemente, Cunha e Pinto aduzem que cabe ao juiz dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher a determinação da separação de corpos – que parece ser o entendimento mais viável –, assim entendida como uma medida protetiva de urgência. A ação principal, de separação judicial, dissolução de sociedade de fato, nulidade ou anulação de casamento etc., deverá ser proposta perante a vara cível competente.17 (CUNHA; PINTO, 2008, p. 151-152).

Além disso, calha acentuar que, para Didier Júnior e Oliveira, a separação de corpos de que trata o art. 23, VI, é medida que possui eficácia meramente jurídica, já que desconstitui o vínculo jurídico existente entre agressor e ofendida. Discrepantemente, as

16 Filia-se a esse entendimento: Shelma Lombardi de Kato (apud Sentone, 2011).

17 Corroboram esse entendimento: Luiz Antônio de Souza e Vitor Frederico Kumpel e Sérgio Ricardo de Souza

(SOUZA; KUMPEL, 2008, p. 118; SOUZA, 2008, p. 135). Nesse sentido, já decidiu o TJRS: Conflito negativo de competência. Cautelar de afastamento do lar conjugal. Ainda que o pedido cautelar de afastamento de lar conjugal tenha vindo fundamentado em receio pela integridade física da mulher, a competência para processar e julgar a demanda não é do juízo criminal, conforme dispõe a Lei 11.340/06, a Lei Maria da Penha, mas sim do juízo cível de família, por se tratar de cautelar preparatória à futura ação de dissolução de união estável. Julgaram improcedente o conflito. (RIO GRANDE DO SUL, 2007c).

74 medidas de afastamento do agressor (art. 22, II) ou da ofendida (art. 23, III) têm nítida eficácia material, eis que visam ao afastamento de fato entre agressor e vítima, a fim de coibir os atos de violência. (DIDIER JÚNIOR; OLIVEIRA, 2010).

Analisados tais posicionamentos, pode-se concluir que a separação de corpos, prevista no art. 888, VI, do CPC, é uma cautelar cível, que trata da situação jurídica existente entre a vítima e o agressor.18 Já o afastamento do agressor do lar possui natureza eminentemente penal, motivo pelo qual o comportamento processual de ambos é diferente.

Em relação ao distanciamento do agressor da ofendida, seus familiares e testemunhas, alíneas a, b, e c do artigo 22, inciso III, esses dispositivos têm por objetivo preservar a incoluminadade da vítima, tanto física quanto mental. (SENTONE, 2011).

Bem como as medidas elencadas nos dois primeiros incisos, as alíneas a, b e c do art. 22, também ostentam natureza penal, isso porque se comportam como cautelares satisfativas, que independem de uma ação principal, isto é, o seu objetivo primeiro é, além de proteger a vítima, assegurar o resultado útil do processo como espécie de alternativa ao encarceramento do direito do agressor. (SENTONE, 2011).

No que tange à restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores (art. 22, IV, da Lei), é certo que possui natureza cautelar de direito de família, uma vez que se refere à regulamentação do direito de visitas e, em casos mais graves, a suspensão delas. (SENTONE, 2011).

Cabe ressaltar que, caso a questão também tramite ou passe a tramitar na vara de família, poderá o juiz de família regular de maneira diferente, prevalecendo a decisão deste último. Porém, isso não impede que, caso aconteça qualquer novo incidente no âmbito de proteção da mulher, possa o juiz criminal determinar a restrição ou suspensão de referidas visitas, comunicando o juízo da família que poderá reavaliar a questão. (SOUZA; KUMPEL, 2008, p. 121).

18 Ressalta-se que, segundo Dias (2012, p. 148), em sede de direito familiar, a medida cautelar não perde a

eficácia, se não intentada no prazo legal. Ao encontro, extrai-se da jurisprudência: PROCESSUAL CIVIL. DIREITO DE FAMÍLIA. AÇÃO CAUTELAR DE SEPARAÇÃO DE CORPOS. EXTINÇÃO DO PRESENTE FEITO SEM RESOLUÇÃO DO MÉRITO ANTE A NÃO PROPOSITURA DA AÇÃO PRINCIPAL NO PRAZO LEGAL DE 30 (TRINTA) DIAS. IMPOSSIBILIDADE. MEDIDA DE

CARÁTER SATISFATIVO, NÃO CESSANDO TAL EFICÁCIA NA AUSÊNCIA DE

AJUIZAMENTO DA DEMANDA PRINCIPAL. NÃO INCIDÊNCIA DOS ARTIGOS 806 E 808, I, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL, ESPECIALMENTE EM FACE DA RELEVÂNCIA DA

MEDIDA. INAPLICABILIDADE DO § 3º, DO ART. 515, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. CAUSA QUE NÃO SE ENCONTRA EM CONDIÇÕES DE JULGAMENTO IMEDIATO. SENTENÇA TERMINATIVA ANULADA. BAIXA DOS AUTOS À ORIGEM PARA PROSSEGUIMENTO DO FEITO EM SEUS ULTERIORES TERMOS. RECURSO PROVIDO. (SANTA CATARINA, 2009b, grifo nosso).

75 O art. 22, inciso V, por sua vez, diz respeito à prestação de alimentos provisórios ou provisionais. Tal como a medida anterior, a possibilidade de prestação de alimentos porta- se como uma medida cautelar cível, já que visa assegurar o resultado de um processo cível, seja de regulamentação de direito de visitas ou de separação judicial, ação de alimentos, etc. (SENTONE, 2011).

Sustenta Didier Júnior e Oliveira que, deferidos os alimentos, cessada a violência, deixa de existir fundamento para a sua manutenção. Nesse caso, a fixação de nova prestação depende do ajuizamento de ação própria perante o juízo de família.19 (DIDIER JÚNIOR; OLIVEIRA, 2010).

Contudo, para Dias, descabe tal necessidade, uma vez que não há como sujeitar alimentos à condição resolutiva, qual seja o fim da violência. Logo, deferidos os alimentos, a ofendida não precisa propor ação principal no prazo de 30 (trinta) dias.20 Indeferida a pretensão alimentar em sede de medida protetiva de urgência, nada impede que o pedido seja levado a efeito por meio de ação de alimentos perante o juízo cível. (DIAS, 2012, p. 157).

Considerando que o art. 14 da Lei Maria da Penha dispõe que a competência do Juizado, cível ou criminal, restringe-se a situações de violência doméstica e familiar contra a mulher, constata-se que cabe ao juiz adotar, no âmbito da apreciação liminar, apenas a medida de caráter emergencial, caso assim julgar necessário. (SENTONE, 2011).

Por todo o exposto, pode-se concluir que as medidas protetivas de urgência ostentam tanto caráter penal como cível. Seu comportamento, por conseguinte, molda-se de acordo com sua natureza: as que detêm cunho penal são cautelares satisfativas, já que podem perdurar até o cessamento da situação de violência, até a conclusão do processo criminal ou ao tempo de execução da pena, ou, ainda, ao prazo que o juiz determinar, não dependendo de ajuizamento de ação principal.

19 Nesse sentido, já decidiu o TJSC: APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO CAUTELAR DE ALIMENTOS.

EXTINÇÃO DA AÇÃO POR AUSÊNCIA DE AJUIZAMENTO DA AÇÃO PRINCIPAL NO PRAZO DE 30 (TRINTA) DIAS. PROCEDIMENTO PREPARATÓRIO. INOBSERVÂNCIA DO PRAZO DO

ARTIGO 806 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. INEXISTÊNCIA DE AJUIZAMENTO DA AÇÃO PRINCIPAL NO TRINTÍDIO LEGAL. EXTINÇÃO DO PROCESSO. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO CONHECIDO E IMPROVIDO. (SANTA CATARINA, 2010b, grifo nosso).

20 Por esse ponto de vista, já decidiu o TJSC: EXECUÇÃO DE ALIMENTOS PROVISÓRIOS. DECRETO

PRISIONAL EM DESFAVOR DO AGRAVANTE. EXECUÇÃO DE DECISÃO JUDICIAL PROFERIDA EM AÇÃO CAUTELAR DE SEPARAÇÃO DE CORPOS C/C ALIMENTOS PROVISÓRIOS. AFIRMAÇÃO DE QUE NÃO HOUVE O AJUIZAMENTO DA AÇÃO PRINCIPAL NO PRAZO DE 30 (TRINTA DIAS) ESTABELECIDO PELO ART. 806 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. MATÉRIA NÃO ENFRENTADA NA DECISÃO RECORRIDA. PRAZO, DE QUALQUER FORMA, QUE NÃO

SE APLICA NAS DEMANDAS QUE VERSAM SOBRE DIREITO DE FAMÍLIA. (SANTA

76 Por outro lado, as medidas protetivas classificadas como cíveis condicionam-se, segundo alguns doutrinadores, ao prazo dado pelo CPC para o ajuizamento de processo principal, qual seja, 30 dias, ao passo que outros pregam sua natureza satisfativa, que, aliás, se mostra como o posicionamento mais adequado, frente às peculiaridades que envolvem o direito de família.

Vale destacar que a referida conclusão circunda as medidas protetivas de urgência da Lei quando a apuração dos fatos originar-se da deflagração de inquérito policial. A vítima, neste caso, recorre à delegacia de polícia e, consequentemente, usa do amparo estatal para obter proteção contra o agressor. A interposição de eventual ação principal cível, se necessário, ficaria a seu cargo.

Em 2014, o STJ admitiu, de forma inédita, a aplicação das medidas protetivas da Lei 11.340/06 em ação cível21, mesmo que inexistente inquérito policial ou processo penal contra o suposto agressor, por considerar que elas possuem caráter cível.

A perspectiva de aplicar as medidas protetivas de urgência num processo desvinculado de qualquer meio penal, tal como decidiu o STJ, desencadeia a necessidade de aprimorar o estudo delas na seara cível, notadamente quanto sua utilidade como uma medida cautelar.

4.3 (IM) POSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DAS MEDIDAS PROTETIVAS DE

URGÊNCIA COMO UMA MEDIDA CAUTELAR CÍVEL

Com efeito, a discussão tratada no presente permeia a natureza jurídica das medidas protetivas de urgência, que ora são tituladas como satisfativa, ora cautelares, de cunho cível, penal ou ainda mista. Desse modo, fora abordado, primeiramente, os principais aspectos processuais dessas medidas, além da análise aprimorada da aludida divergência.

Nessa senda, concluiu-se, após o debate de cada posicionamento, que as medidas protetivas possuem caráter cautelar, com natureza jurídica cível e penal, quando vinculadas aos meios processuais penais, em especial, o inquérito policial. De forma inovadora, o STJ admitiu, conforme já acentuado, a aplicação dessas medidas independente de qualquer regulamentação penal.

De fato, a decisão em comento, proferida no ano 2014, ganhou repercussão nacional ao agregar, pela primeira vez, caráter cível às medidas protetivas à mulher –

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77 conferindo-as natureza cautelar cível satisfativa –, embasados na pretensão de ampliar consideravelmente a proteção das vítimas de violência doméstica.

Receosa com o comportamento de um de seus filhos, que não se conformou com a divisão de bens que os pais fizeram ainda em vida, uma senhora ajuizou uma ação protetiva dos direitos da mulher, com aplicação de medidas protetivas de urgência previstas na Lei Maria da Penha como uma medida cautelar contra o filho, para que ele fosse impedido de se aproximar dela e dos irmãos. (BRASIL, 2014b).

Em primeira instância, o processo foi extinto sem julgamento do mérito, pelo fato de o magistrado entender que as medidas protetivas são de natureza processual penal e, portanto, vinculadas a um processo criminal. O Tribunal de Justiça de Goiás (TJGO) reformou a sentença e aplicou as medidas protetivas, por entender que elas têm caráter civil. Houve a interposição de recurso ao STJ, que confirmou a decisão do TJGO. (BRASIL, 2014b).

A decisão do STJ, proferida pelo relator ministro Luis Felipe Salomão, ancora-se, primeiramente, na compreensão de que a exata posição assumida pela Lei Maria da Penha no ordenamento jurídico brasileiro é observar que o mencionado diploma veio objetivando a ampliação dos mecanismos jurídicos e estatais de proteção da mulher. Nesse diapasão, destaca o art. 4º da própria Lei (BRASIL, 2006): “Na interpretação desta Lei, serão considerados os fins sociais a que ela se destina e, especialmente, as condições peculiares das mulheres em situação de violência doméstica e familiar.” (BRASIL, 2014b).

Ademais, a decisão em estudo avoca, como fundamentação, a Convenção de Belém do Pará – que é seguida pela norma doméstica de 2006 –, já que tal instituto preocupa- se, sobretudo, com a proteção da mulher submetida à violência, mas não somente pelo viés da punição penal do agressor, mas também pelo sistema de prevenção por instrumentos de qualquer natureza civil ou administrativa. (BRASIL, 2014b).

Por tais considerações, decidiu que o intento de prevenção da violência doméstica contra a mulher pode ser perseguido com medidas judiciais de natureza não criminal, até porque a resposta penal estatal só é desencadeada depois que o ilícito penal é cometido. Sendo assim, o ministro relator arremata: “[...] franquear a via das ações de natureza cível, com aplicação de medidas protetivas da Lei Maria da Penha, pode evitar um mal maior, sem necessidade de posterior intervenção penal nas relações intrafamiliares.” (BRASIL, 2014b).

Nas razões de decidir, o ministro fez referência ao art. 461, §5º, do CPC, citado textualmente na Lei Maria da Penha. Assim argumentou (BRASIL, 1973): “[...] o mencionado dispositivo do diploma processual não estabelece rol exauriente de medidas de apoio, o que

78 permite, de forma recíproca e observados os específicos requisitos, a aplicação das medidas previstas na Lei n. 11.340⁄2006 no âmbito do processo civil. [...].” (BRASIL, 2014b).

Por todo o exposto, a decisão deixa certo que as medidas protetivas previstas na Lei 11.340/06 podem ser pleiteadas de forma autônoma para fins de cessação ou de acautelamento de violência doméstica contra a mulher, independente da existência presente ou futura de um processo crime ou ação principal contra o suposto agressor. Nessa hipótese, as medidas protetivas terão natureza cautelar cível satisfativa, não se exigindo instrumentalidade a outro processo cível ou criminal, sendo que as regras aplicáveis são as do CPC, obedecendo às normas de competência desse diploma e das leis locais. (BRASIL, 2014b).

Há de convir-se que a Lei 11.340/06, em consonância com os tratados e convenções internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil e atendendo ao disposto no §8º do art. 226 da CRFB/88, nada mais busca do que imprimir meios de coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, especificada no gênero.

Como a principal forma de conferir proteção à vítima, o aludido diploma disponibiliza ao Ministério Público, ao Juiz de Direito e à ofendida a postulação das medidas protetivas de urgências estampadas nos arts. 22 a 24 da Lei, as quais podem ser direcionadas em favor da vítima ou contra o agressor, bem como destinadas ao patrimônio envolvido na lide.

Trazendo à tona a recente decisão do STJ, as medidas protetivas de urgência em estudo podem ser tituladas como cíveis e de cunho satisfativo22, muito semelhantes àquelas estabelecidas no art. 888 do CPC, cujo rol é meramente exemplificativo.

Tratando-se de medidas protetivas de urgência postuladas por meio de uma medida cautelar cível, a sua determinação encontra-se condicionada à configuração de requisitos e pressupostos inerentes a esta natureza: o fumus boni iuris e o periculum in mora. Ademais, lidando-se com uma tutela satisfativa, autônoma e urgente, não há que se perquirir acerca da acessoriedade com um processo principal.

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Nesse sentido, já decidiu o TJSC: AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO CAUTELAR INOMINADA VISANDO A APLICAÇÃO DAS MEDIDAS PROTETIVAS PREVISTAS NA LEI 11.340/06. RECURSO DISTRIBUÍDO À CÂMARA CIVIL ESPECIAL. DECISÃO RECONHECENDO A INCOMPETÊNCIA COM A DISTRIBUIÇÃO PARA UMA DAS CÂMARAS CRIMINAIS POR ENTENDER QUE A LEI 11.340/06 É DE NATUREZA PENAL. JURISPRUDÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

QUE RECONHECE QUE A LEI MARIA DA PENHA POSSUI EM DETERMINADAS SITUAÇÕES NATUREZA CÍVEL SATISFATIVA. CASO DOS AUTOS. RECURSO NÃO CONHECIDO.

SUSCITADO CONFLITO NEGATIVO DE JURISPRUDÊNCIA. (SANTA CATARINA, 2014g, grifo nosso).

79 A possibilidade conferida à ofendida de pleitear as medidas protetivas de urgência por meio de uma ação cível de cunho cautelar não deixa de representar mais uma forma de proteção contra a violência doméstica. Logo, tal pretensão se coaduna com o objetivo da Lei Maria da Penha, já oportunamente destacado.

Com efeito, a propositura de uma ação cautelar cível oportuniza outro meio de acesso ao poder judiciário à vítima, que, indiscutivelmente, se encontra em situação de vulnerabilidade e demanda de instrumentos de proteção. Por isso, nada obsta que as medidas protetivas de urgência possam ser pleiteadas pela ofendida em ação civil.

Nesse passo, enaltece-se que se admitir o exercício da pretensão da vítima somente em um ou em outro juízo implicaria em afronta direta ao princípio da inafastabilidade da jurisdição, insculpido no inciso XXXV do art. 5º da CRFB/88, assim dispõe: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.” (BRASIL, 1988).

Além de contribuir como outra forma de alcance ao poder judiciário, a utilização das medidas protetivas de urgência como uma medida cautelar cível insurge como uma via de escape da vimitização secundária inserida pelo contexto do sistema penal, constituindo, outrossim, mais uma maneira de atender ao princípio dominante no ordenamento jurídico brasileiro: a dignidade da pessoa humana.

Ao longo das instâncias do sistema jurídico penal, percebe-se a ocorrência da duplicação da vitimização feminina em casos de violência doméstica. A mulher, que já se torna vítima no interior do seu recinto familiar, será novamente reproduzida no sistema penal. (HERMANN, 2012, p. 142).

Como se não bastasse sua condição de vulnerabilidade dentro de um ambiente doméstico, familiar ou numa íntima de afeto, a vítima necessita sujeitar-se ao procedimento penal – tanto na fase de investigação, como no processo em si – reprisando toda a situação de violência, além de submeter-se a laudos periciais de praxe, a fim de obter os mecanismos de proteção dispostos na Lei Maria da Penha, como as medidas protetivas de urgência.

Afinal, somente a partir do ingresso e da visibilidade da violência na Delegacia de Polícia, no Ministério Público e no Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher é que serão processadas e apreciadas as medidas protetivas, dentre outros encaminhamentos de caráter extrapenal. (BRANDÃO, 2012, p. 13).

Tal processo facilita o aumento do nível de vitimização, representando o sofrimento para a mulher vítima de violência doméstica. Ao optar pelo ajuizamento de uma

80 ação cível, a vítima se desvincularia parcialmente de referido procedimento, não precisando, por conseguinte, prestar depoimento na Delegacia ou realizar exames periciais.

Outro importante ponto a ser destacado baseia-se no número reduzido de delegacias especializadas, que não dão conta de atender toda a população, principalmente no que se refere à orientação de locais onde se possa conseguir ajuda psicológica e jurídica. (BRANDÃO, 2012, p. 16).

Como se sabe, a justiça criminal sofre com a falta de infraestrutura para o cumprimento das obrigações impostas pelas leis. Na Lei 11.340/06, não é diferente: em seu art. 11, inciso I, por exemplo, é previsto a garantia de proteção policial sempre que necessário em casos de atendimento à mulher em situação de violência doméstica, o que, todavia, não encontra respaldo com a realidade.

A incapacidade do sistema penal em garantir à mulher vítima de violência doméstica proteção efetiva contra o agressor, abre brechas para que a ofendida procure outros meios de acesso à justiça, a fim de auferir assistência necessária. Aliás, a própria Lei Maria da Penha prevê tal direito.23

Verificou-se, pois, que a possibilidade de aplicação das medidas protetivas de urgência como uma medida cautelar cível de natureza satisfativa caracteriza-se como um novo artifício à ofendida para que possa ingressar no judiciário, desligando-se, dessa forma, do fragilizado sistema penal e de seu subsequente processo de dupla vitimização.

Contudo, ainda que tal perspectiva deflagre prerrogativas à ofendida, referido sistema carece de significativas regulamentações processuais, como se verá a seguir. Como consectário, o procedimento penal parece, a princípio, o caminho mais eficaz ao combate da violência doméstica, especificada no gênero.

É importante trazer à baila que, para a concessão das medidas protetivas de urgência, quando inseridas na esfera civil, torna-se necessário o preenchimento de dois pressupostos fundamentais: fumus boni iuris e o periculum in mora, conforme já oportunamente aduzido.

Nessa esteira, a ofendida deverá preocupar-se com a obtenção de documentos necessários à propositura da ação, a fim de conquistar a medida cautelar pretendida. Caso contrário, não teria êxito seu requerimento, como assim já decidiu o TJSC:

23 Com efeito, o art. 3º da Lei Maria da Penha dispõe que: “Serão asseguradas às mulheres as condições para o

exercício efetivo dos direitos à vida, à segurança, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, à moradia, ao acesso à justiça, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à