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A doutrina do stare decisis tem nascedouro da parêmia latina stare decisis et non quieta

movere (mantenha-se a decisão e não se moleste o que foi decidido). A função primordial é

viabilizar que decisões judiciais insiram estruturas prescritivas no sistema jurídico, com aptidão para se tornarem precedentes vinculantes para o próprio órgão e também para aqueles que lhe são hierarquicamente vinculados83. De acordo com ela, “uma regra de direito, uma vez proferida por um Tribunal, normalmente deve ser seguida até que tal regra tenha que, ou deva ser, modificada”84.

Vários fundamentos suportam a adoção desta teoria, em especial quatro deles serão aqui abordados: a) a igualdade85; b) previsibilidade; c) economia processual; e d) respeito à construção judicial do direito86.

A igualdade, entendida como norma, é expressão indeterminada/aberta, que carece de delimitação semântica para sua correta compreensão e aplicação. Inicialmente destinada a neutralizar desigualdades no gozo/exercício de posições jurídicas ativas, manifesta-se, por vezes, mediante formas de acesso igualitário aos instrumentos e procedimentos jurídico-políticos do Estado Democrático de Direito87.

A previsão de um dever de igualdade (v.g., artigo 5º da Constituição Federal) aponta na direção de uma dicotomia sistêmica: igual/desigual, numa relação em que a relevância – e própria existência – de um depende do outro. Esta igualdade é visível sob um prisma jurídico (casos devem ser tratados de maneira igualitária) e um político (as pessoas merecem tratamento igual)88.

Neste sentido, ocorre semanticamente uma regra de prevalência, que admite exceções, desde que fundamentadas concretamente em axiomas normativos da Constituição Federal. Isto é, como regra geral, as pessoas e casos merecem tratamento formalmente igualitário, entretanto,

83 SALGADO, op. cit., 123-124.

84 FINE, Toni M. O uso do precedente e o papel do princípio do stare decisis no sistema legal norte-americano. Revista dos Tribunais. São Paulo, v. 89, n. 782, p. 90-96, dez. 2000, p. 96.

85 A despeito de considerar a igualdade relevante, há parcela da doutrina que entende ser mais adequada a fundamentação sob a perspectiva da racionalidade dos precedentes, motivada na universalização, acarretando também um reforço da vinculatividade horizontal do precedente; neste sentido confira: ZANETI JR., Hermes. Precedentes (treat like cases alike) e o novo Código de Processo Civil: universalização e vinculação horizontal como critérios de racionalidade e a negação da jurisprudência persuasiva como base para uma teoria e dogmática dos precedentes no Brasil. Revista de Processo. São Paulo, v. 235, p. 293-349, set. 2014, p. 300-302.

86 Ibid., 124.

87 NEVES, Marcelo. Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil – o Estado Democrático de Direito a partir e além de Luhmann e Habermas. 3. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012, p. 166-167.

é possível a ocorrência de situação em que se impõe o tratamento desigual aos casos ou sujeitos; o tratamento igual – como regra de prevalência – é bastante em si mesmo para aplicação jurídica e social, ao revés, o tratamento desigual demanda justificação específica, para que se ocorra uma exceção legítima à regra de isonomia estipulada (e não uma violação à preceito jurídico)89.

Relacionadas estas proposições mais especificamente à doutrina do stare decisis, nota-se que adoção dos precedentes é um corolário da regra de prevalência da igualdade jurídica: casos iguais merecem o mesmo tratamento. Não obstante, desde já fica assentada a legitimidade de exceções (desigualdades) à aderência à ratio decidendi dos casos passados, normalmente pelo uso do overruling e/ou distinguishing (abordados no capítulo seguinte), numa situação em que um caso semelhante receberá (de forma lícita) um tratamento desigual.

A segunda justificação avaliada é a previsibilidade; dotada de forte laço com a segurança jurídica. Essa norma pretende conferir viabilização de conhecimento do Direito (muito mais uma cognoscibilidade do que uma certeza), aliada à calculabilidade e estabilidade jurídica90. Mediante a previsibilidade como fundamento do stare decisis, tem-se que as decisões judiciais – como instrumentos de enunciação – são aptas a modularem condutas sociais ainda não deduzidas processualmente. Os precedentes reforçam a segurança das relações jurídicas, visto que os sujeitos adotarão condutas que se amoldem à construção advinda das decisões vinculantes, pois, no caso de judicialização, haverá a expectativa de que o processo seja solucionado de forma semelhante à situação paradigma.

A economia processual é percebida pelo fato que a ratio decidendi contida no precedente, ao vincular os demais casos, diminui a quantidade de tempo gasto pelos magistrados91. Reitera-se que os juízes e tribunais não estão desobrigados de justificar as decisões, contudo – em vista a presunção relativa de vinculação dos precedentes – a carga de trabalho será mais concentrada na identificação de semelhanças fáticas e jurídicas, do que na ratificação das fundamentações jurídicas assentadas no holding anterior. O respeito às decisões anteriores implica em reconhecer a legitimidade das discussões e argumentos enfrentados pelo Tribunal na constituição do precedente92. Seguir a ratio decidendi é, assim, também uma forma de reconhecer a licitude das conclusões adotadas como resultados de argumentações devidas.

Discute-se se este respeito às decisões pode acarretar o perigo de envelhecimento do Direito com o stare decisis. Se as matérias convertidas em precedentes não forem reavaliadas,

89 Ibid., 172-173.

90 MITIDIERO, Daniel. Cortes superiores e cortes supremas: do controle à interpretação, da jurisprudência ao precedente. 3. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017, p. 26-27.

91 THAMAY, op. cit., p. 241.

a despeito de modificações na estrutura da sociedade, haverá um óbice ao desenvolvimento ou modificação acerca do entendimento sobre determinado ponto de vista jurídico ou qualificação de relações fáticas. E isto de fato poderia ocorrer caso o stare decisis fosse tomado de forma absoluta; entretanto, ele é visto como uma regra de prevalência, que pode ser excepcionada em determinadas situações.

Para o entendimento destas exceções, deve ser analisada a autorreferência judicial, definida como o “dever de fundamentação específico, pelo qual o magistrado precisa, necessariamente, referir-se ao que foi realizado anteriormente pelos seus pares para decidir adequadamente uma questão similar”93. É uma manifestação das obrigações de integridade e coerência das decisões judiciais relacionada com o stare decisis; tem como pretensão normativa primária que o Judiciário se refira aos casos por ele decididos, independentemente de seguir ou modificar a tese preteritamente adotada.

Busca-se impor racionalidade e segurança ao sistema, na medida reforça a revisitação das decisões passadas, mesmo que seja para afastar a aplicação delas ao caso concreto. O dever de autorreferência serve, ainda, como uma justificação externa da força vinculante dos precedentes: através da justificação do caso atual mediante referência ao passado, os expectadores poderão perceber a (des)conformidade à ratio decidendi e, assim, perceber o (des)respeito à decisão vinculante.

A prescrição normativa inserida no art. 489, § 1º, inciso VI, do CPC se amolda aos ditames expostos da doutrina do stare decisis, especialmente à noção de autorreferência. Mediante as expectativas e significações possíveis deste enunciado, importantes estruturas do respeito ao precedente foram positivadas no ordenamento brasileiro e, neste sentido, reforçando a atividade judicial como fonte criadora de enunciações prospectivas e vinculantes.

Conquanto não se possa afirmar conclusivamente que o ordenamento brasileiro incorporou integralmente a doutrina do stare decisis, é certo que acolheu diversos de seus instrumentos e está, paulatinamente, reforçando o uso de precedentes como fontes do direito.

O presente capítulo demonstrou como o precedente é integrado por todas as normas jurídicas reconstruíveis a partir dos elementos linguísticos de sua ratio decidendi; ele surge da jurisdição e também se dirige a ela, enunciado comunicações legítimas no sistema jurídico. A positivação dos deveres normativos de integridade e coerência reforça aproximações da organização processual brasileira com a doutrina do stare decisis, ainda que numa maneira distinta da usual, tendo em vista a expressão de um rol de procedimentos/ que – por sua natureza

(incluídos alguns ritos que versam sobre inconstitucionalidade) – teriam aptidões próprias de

holding reconhecido no common law.

Os fatores aqui avaliados são indispensáveis para a compreensão do que efetivamente vincula nas decisões, sejam elas caracterizadas estritamente como precedentes, ou não. Através destas premissas é que será vislumbrada se a inconstitucionalidade reconhecida em um provimento jurisdicional integra a ratio decidendi e/ou se tem aptidão para vincular os demais órgãos judiciais na resolução de demandas futuras.

Estabelecidos os alicerces do precedente e da jurisdição, o próximo capítulo deste trabalho se voltará ao estudo da eficácia do precedente, com o tratamento das formas pelas quais os fatos jurídicos presenciados e firmados em precedentes judiciais repercutem nos segmentos processuais do sistema jurídico.

2 EFICÁCIA DO PRECEDENTE

Este capítulo tem o ensejo de firmar posições gerais sobre repercussões jurídicas da enunciação de precedentes, especialmente no que concerne aos deveres impostos aos juízes/árbitros no exercício da jurisdição. As premissas aqui definidas são importantes ao tema do trabalho porque servirão como regras/estruturas básicas de prevalência quando o precedente versar sobre a inconstitucionalidade; ou seja, estas razões serão aplicadas às decisões que tratem sobre (des)conformidade de um objeto aos ditames constitucionais, exceto naquilo que for particularidade do controle de constitucionalidade. Bem assim, edificam-se os alicerces que suportarão as consequências da inconstitucionalidade como parâmetro de vinculação da jurisdição brasileira.

O precedente judicial surge de um evento, isto é, algo individualizado no tempo e no espaço. Tendo em vista que o sistema jurídico percebe e manifesta os fatos através de sua própria linguagem, a juridicização do precedente como um fato jurídico depende das próprias estruturas do sistema; ou seja, a consequência da adoção deste precedente judicial – e, assim, eventual dotação de força normativa à ratio decidendi – depende das regras de subordinação e coordenação que organizam o sistema normativo1.

Neste sentido, a enunciação de uma decisão judicial é um acontecimento, cuja percepção como um fato que integra o antecedente descritivo de uma norma jurídica perpassa pelo seu reconhecimento e codificação em conformidade com o sistema jurídico. Ter força meramente persuasiva ou efetivamente vinculante não é algo que decorre da natureza do precedente, porém da forma como o sistema jurídico se organiza. Saber o que (se) vincula e quem (se) vincula são questões cuja resposta é obtida pela análise do sistema jurídico, especialmente pela verificação das normas que se inserem neste âmbito temático

Em termos bem diretos, a eficácia do precedente é aqui concebida como a aptidão da

ratio decidendi (e, em alguns casos, também do obiter dictum) de uma decisão judicial enunciar

suportes textuais cuja (re)construção de significados seja capaz de influenciar na prolação de provimentos judiciais futuros.

Ter eficácia é, portanto, ser configurado como um evento que, ao final, influencia em decisões judiciais posteriores; a forma e intensidade com que essa influência é exercida e/ou percebida serão os tópicos avaliados nos próximos itens do trabalho. Inicia-se verificando as aptidões persuasivas e vinculantes dos precedentes.

1 Abordando os conceitos aqui utilizados para se atingir a percepção incipiente da eficácia do precedente, confira: VITA, op. cit., p. 100-103.