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A ratio decidendi de um precedente é composta pela integralidade das normas jurídicas que podem ser (re)construídas a partir da enunciação linguístico-textual comunicada pela decisão judicial. O texto utilizado no provimento judicial é relevante, porém não é único fator condicionante do holding processual: o magistrado futuro não se vincula apenas ao texto, porém aos fatores normativos cujo significado é outorgado a partir da conjunção dos enunciados comunicados pelas autoridades legítimas – entre elas, a prolatora do precedente.

Tendo em vista que a ratio decidendi é composta por esta gama de elementos99, é preciso assentar como deve ser sua compreensão quando a inconstitucionalidade se fizer presente na formação desta estrutura vinculante. Os tópicos anteriores do trabalho mostraram as maneiras pelas quais a inconstitucionalidade se expressa e também modos como o controle de constitucionalidade age para resolver estes problemas de validade e/ou eficácia; desta feita, há uma grande variedade de formas que influenciam o precedente através do reconhecimento de uma inconstitucionalidade, visto que certas situações demandam tratamento distinto de outras. O presente extrato do trabalho demonstrará as maneiras pelas quais a inconstitucionalidade pode ser manifestada na decisões judiciais que formam precedentes, isto é, os tipos de comandos/relações que podem ser implicadas nos provimentos vinculantes; por seu turno, as repercussões destas comunicações, especialmente as nuances processuais, serão abordadas no capítulo seguinte da dissertação.

A primeira abordagem deste assunto no tópico será acerca do reconhecimento da inconstitucionalidade que acarreta interferência no próprio enunciado normativo. Esta

99 Sejam estes elementos de cunho fático (os eventos relevantes à construção judicial da norma) ou jurídico (o vínculo qualificado por um modal deôntico que é imposto a uma pluralidade de sujeitos em decorrência do acontecimento do antecedente fático).

interferência pode ser total ou parcial, em conformidade aos termos expostos em item anterior do estudo, e advir tanto de vício formal quanto material.

Quando o Judiciário reconhece a inconstitucionalidade integral do enunciado normativo, atua na forma de um “legislador negativo” e passa a classificar aquele texto como “não-direito”, deixando de aplicar normas eventualmente reconstruíveis a partir daquele suporte físico. Nestas situações, a ratio decidendi do precedente é no sentido de que, conquanto aquelas significações permaneçam na memória do sistema jurídico – codificadas como ilícitas –, não podem mais ser compreendidas como partes do ordenamento jurídico e, assim, o uso delas na resolução de demandas judiciais está vedado. Neste sentido, o holding se expressa como uma determinação de, a um só tempo, codificar todas as repercussões daquele enunciado como ilícitas (para a memória do sistema) e, ainda, extirpá-lo do ordenamento jurídico: mesmo que ele tenha sido posto por uma autoridade hipoteticamente legitimada, o reconhecimento da inconstitucionalidade retira sua validade e extingue sua presunção de pertencimento ao ordenamento.

No caso da inconstitucionalidade que acarrete redução parcial de texto do dispositivo, a situação é diferente. Ainda resta uma parcela do enunciado que pertence ao ordenamento e é válida em relação ao contexto jurídico, desta forma, não há extirpação total de suportes físicos e tampouco vedação completa de uso/manejo normativo das suas significações. A decisão judicial promoverá uma restruturação sintática dos elementos linguístico-textuais e, assim, interferirá na construção semântica de prescrições jurídicas. O holding ostentará feição de instrumento de limitação de sentidos, atuando semanticamente na outorga de significados ao (reduzido) enunciado/significante. A ratio decidendi aqui se expressa numa multiplicidade de direções: a) manifestação que fixa pecha de ilicitude a comunicações jurídicas para a memória do sistema; b) conduta que extirpa do ordenamento construções linguísticas parciais (aquelas cuja redução do texto se impôs); c) termo redutor das significações possíveis100; d) veículo estruturador de um ou mais significados legítimos possíveis de construção normativa101.

Nos casos em que há interferência direta no texto do dispositivo, seja parcial ou total, a

ratio decidendi se mostrará como óbice ao uso dos termos extirpados e, ademais, atingirá

também planos semânticos, impondo aos juízes posteriores – por conta de integridade e

100 No momento que a decisão judicial decide pela inconstitucionalidade de parte do enunciado e, assim, de normas que utilizariam esta estrutura sintática suprimida para a (re)construção de sentidos, confere também ilegitimidade a estas significações, reduzindo o campo daqueles significados normativos possíveis.

101 Quando se reduz apenas parte do texto, implica-se que o restante não contém vício enunciativo, razão pela qual pode dar azo a significações também legítimas, ainda que destoantes daqueles sentidos fixados no precedente, desde que não se tornem incompatíveis com as comunicações sistêmicas realizadas pela decisão proferida no caso paradigmático.

coerência – certos sentidos (im)possíveis de reconstrução normativa. Bem assim, o holding expressa obrigações de não utilizar certos sentidos e, em alguns casos, compreender a legitimidade de outros sentidos. Em relação à inconstitucionalidade reconhecida através de técnicas decisórias que atingem as normas sem promover alterações nos enunciados normativos, a forma de expressão da ratio decidendi é distinta: ela comportará elementos que incidirão necessariamente no momento da interpretação, abordando arquétipos de antecedentes fáticos o ligando-os aos respectivos consequentes jurídicos.

No caso de declaração de nulidade parcial sem redução de texto, o precedente judicial ostenta um caráter eminentemente negativo; mediante o reconhecimento da inconstitucionalidade de certos sentidos normativos, o Judiciário impõe obstáculo semântico à reconstrução de normas daquele teor a partir do enunciado. A manifestação judicial é sintetizada contendo duas enunciações básicas: a) os sentidos “x” de interpretação deste enunciado são desconformes às Constituição, razão pela são ilícitas as construções normativas que apontem nesta direção; b) há mais de uma possibilidade legítima de (re)construção normativa a partir do enunciado, desde que não redunde em alguma das construções aduzidas no “a”. Bem assim, a

ratio decidendi expressa, em primeiro lugar, a ratificação da constitucionalidade do enunciado

normativo, ao mesmo tempo em que atesta a ocorrência de significações – que inicialmente poderiam ser consideradas pelos intérpretes – inconstitucionais, e, portanto, inválidas e obstadas através do cometimento do holding, resguardando, entretanto, a viabilidade de outros significados jurídicos potencialmente lícitos.

Diferentemente, na interpretação conforme, o Judiciário fixa um único significado normativo que se adequa às estruturas de subordinação e coordenação do sistema: só existe uma maneira de compreensão semântica que resulta em norma jurídica lícita – e é aquela determinada pelo magistrado. Quando um Tribunal maneja esta técnica decisória, o precedente indica que o enunciado é constitucional, porém o seu uso como elemento do sistema é licitamente restringido a uma só construção normativa. O holding se expressa no sentido de vincular o juiz àquela compreensão e impedi-lo de construir outros significados a partir do dispositivo submetido à interpretação conforme a Constituição.

Em qualquer dos casos, é importante frisar, a modulação dos efeitos temporais modifica também a maneira de expressão da ratio decidendi. Através da modulação, o juiz impõe uma nova norma jurídica que gera situação de ineficácia técnico-sintática positiva ao reconhecimento da inconstitucionalidade/invalidade do objeto. Assim, caso haja a modulação, é preciso acrescentar às prévias percepções do holding, também esta interferência na eficácia, com as respectivas obrigações negativas e positivas dela, respectivamente: a) impede-se que o

juiz descure dos efeitos temporais e reconheça invalidade ao período “ratificado” pela modulação; e, b) impõe-se o dever de, após a modulação, não mais conferir validade ao objeto, fazendo incidir os demais termos correlatos ao tipo de inconstitucionalidade reconhecida.

No que concerne ao reconhecimento da inconstitucionalidade por omissão, o conteúdo do precedente e a expressão dele serão bastante diversificados a depender a situação concretamente vivenciada, pois o tratamento da superação da inércia inconstitucional tem contornos muito próprios em razão dos eventos efetivamente tratados nas demandas. Por exemplo, se o não fazer constituir-se no descumprimento, por grande lapso temporal, do dever de editar uma lei sobre determinado assunto, a expressão do precedente que reconhecer esta mora vai também depender de eventuais outras providências adotas pelo Judiciário na situação concreta: a) se o Tribunal apenas constitui a autoridade em mora, a expressão será no sentido de que as demais instâncias judiciais deverão, prioritariamente, aguardar tempo razoável para a edição do ato; b) se o Tribunal fixa que a autoridade expeça o ato em tempo x, os demais magistrados deverão aguardar, no mínimo, o decurso deste lapso para que seja viabilizada a adoção de outras medidas; c) se o Tribunal – por si mesmo ou mediante interveniência de outra autoridade comunicante – promove a regulação precária sobre a matéria, as demais instâncias judiciais estarão submetidas a estes ditames, até que sobrevenha dispositivo do agente competente.

Estas possibilidades são meramente exemplificativas e não abarcam toda a amplitude conferida às decisões judiciais que versem acerca da inconstitucionalidade por omissão: em cada uma delas a expressão do holding será distinta e variedade fica ainda maior quando se pensa na omissão parcial. Desta maneira, diferentemente do que se estipulou sobre os enunciados e normas inconstitucionais, não há um regramento que seja efetivamente linear acerca da omissão: nela, as expressões do precedente serão verificadas casuisticamente102.

Neste capítulo se assentaram as definições (conotativas e denotativas) necessárias à compreensão do fenômeno da inconstitucionalidade, bem como as maneiras pelas quais o controle de constitucionalidade interfere no ordenamento e no sistema jurídico, seja pelo seu recaimento na modulação de condutas, normas ou atos normativos. Enfim, demonstra-se que a inconstitucionalidade pode ser um dos elementos da ratio decidendi de um precedente judicial e, assim, ser capaz de vincular a jurisdição brasileira. No próximo capítulo, serão analisadas as formas – principalmente de cunho processual – que o holding marcado pela

102 No capítulo seguinte do estudo haverá tópico reservado às repercussões processuais da omissão inconstitucional que, mesmo sem a possibilidade de esgotar o assunto, aprofundará um pouco mais nos tipos de decisões judiciais possíveis e consequências processuais da adoção delas como holding.

(in)constitucionalidade influencia nos processos decisórios futuros; isto é, quais as repercussões de um sistema que outorga força vinculante ao precedente que avalia a compatibilidade de certo objeto em relação ao ordenamento jurídico-constitucional: como a inconstitucionalidade vincula e quais deveres recaem sobre quem é vinculado.

4 REPERCUSSÕES PROCESSUAIS DA (IN)CONSTITUCIONALIDADE COMO