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A doutrina internacionalista

A doutrina, ou seja, a opinião dos “juristas mais qualificados das diferentes nações” que o art. 38 do Estatuto da CIJ indica como uma das fontes auxiliares na revelação do Direito Internacional, deve, na atualidade, ser considerada na sua função de apresentação, esclarecimento ou interpretação da norma jurídica internacional. A sua eficácia como fonte formal da norma, advém da racionalidade dos argumentos e do valor de convencibilidade demonstrativa de uma tese, na eventualidade de dirimir-se um conflito entre interpretações conflitantes.

Nos séculos passados, sobretudo XVI, XVII e XVIII, a doutrina teve importante papel na formação do Direito Internacional Público, na medida em que, num campo extremamente lacunoso, de parcas normas escritas e poucos costumes internacionais reconhecidos, a sua configuração se perfazia na base de engenhosas construções teóricas sistemáticas e racionais, a partir da concepção de um direito natural e de interpretações renovadas de antigos juristas do Direito Romano, conforme se comprova pela obra de Francisco de Vitoria, Francisco Suarez, Hujo Grotius, Eméric Vattel. Com o desenvolvimento de um positivismo jurídico no Séc. XIX e os fenômenos típicos do Séc. XX, como a proliferação de tratados e convenções internacionais multilaterais, a emergência crescente de organizações intergovernamentais, com poderes normativos, e, sobretudo pelo trabalho sistemático de codificação do Direito Internacional, a doutrina de autores individuais tem perdido sua relevância, como fonte formal (direito norma), assim reconhecida pelos formuladores e aplicadores das normas jurídicas internacionais. Claro está que as outras funções da doutrina, como estudo científico e sistemático do Direito Internacional (o direito ciência ou o direito como fato social), como fonte de irradiação dos conhecimentos e da consciência dos mesmos, em particular no meio científico e acadêmico, continuam a ser relevantes. Na verdade, como bem demonstrou o jurista canadense J-Maurice Arbour, “as obras e artigos da doutrina são, quando

muito, instrumentos que permitem captar os dados atuais do direito sobre uma questão determinada e não ocorreria a ninguém pensar que suas conclusões obriguem os Estados ou os tribunais

encarregados de aplicar o direito às questões que lhes são submetidas”74.

74 J.-Maurice Arbour, Droit International Public, 3a edição, Les Éditions Yvon Blais Inc., Cowansville, Quebec, Canadá, 1997, p. 122.

No decorrer do Séc. XX, a doutrina continuou a ser apresentada em obras individuais, tradicionalmente na forma de livros e artigos em revistas especializadas ou editadas por uma universidade, e ainda na forma de livros com a participação de vários autores, editados sob a égide de um internacionalista responsável, ou de uma instituição científica ou universitária importante; tais conjuntos de obras individuais, editados sob a responsabilidade de um único autor (ou de vários), ora são reunidos em livros em homenagem a uma pessoa ilustre75, ora resultam de simpósios

científicos76, ora se encontram reunidos em publicações dos resultados de realizações de pesquisas

institucionais77.

Desde 1923, o mundo científico do Direito Internacional conta com a enriquecedora atuação da Academia de Direito Internacional da Haia, com sede naquela cidade, no Palácio da Paz (local onde então já se encontrava a sede da CPJI e que hoje continua sendo a sede da CIJ), fundação instituída pelos Estados, com o concurso de recursos financeiros propiciados pela Dotação Carnegie para a Paz Internacional dos EUA. Desde aquela data, até os dias presentes, a Academia da Haia realiza simpósios e os famosos cursos de Direito Internacional Público, de Direito Internacional Privado e temas afins, abertos a quaisquer participantes, inclusive estudantes universitários de todo mundo, com breve duração, nos meses de julho e agosto, em inglês ou francês, seja sobre temas gerais abrangentes ou temas tópicos. Tais simpósios se encontram publicados, na medida em que se realizam78, e os cursos se encontram editados numa importante coleção, o prestigiado “Recueil

des Cours” da Academia de Direito Internacional da Haia, publicados anualmente.

75 A exemplo, veja-se, no Brasil: Luiz Olavo Baptista, Hermes Marcelo e Paulo Borba Casella, coordenadores, Direito e Comércio

Internacional: Tendências e Perspectivas. Estudos em Homenagem ao Prof. Irineu Strenger, São Paulo, LTr. Editora, 1994 (no

qual temos um trabalho: "A Competência Internacional do Judiciário Brasileiro e a Questão da Autonomia da Vontade das Partes” a p. 283-306) e Luiz Olavo Baptista e José Roberto Franco da Fonseca, Direito Internacional no Terceiro Milênio, Estudos em

Homenagem ao Professor Vicente Marotta Rangel, São Paulo, LTr. Editora, 1998.

76 Deste os inúmeros, destaque-se: Francesco Francioni e Tullio Scovazzi, editores, International Responsibility for Environmental

Harm, Londres, Dordrecht, Boston, Graham & Trotman, 1991 (no qual se encontra o importante artigo do Prof. Roberto Ago,

"Conclusions du Colloque "Responsabilité des États pour les dommages à l'environnement", p. 493-499).

77 Araminta de Azevedo Mercadante e José Carlos de Magalhães, coordenadores, Solução e Prevenção de Litígios Internacionais,

Volume II, Porto Alegre, São Paulo, Livraria do Advogado Editora, NECIN-PROJETO CAPES, 1999, P. 11-64 (coletânea na qual

temos um trabalho: “Solução e Prevenção de Litígios Internacionais: Tipologias e Características Atuais” a p. 11-64).

78 A exemplo: Académie de Droit International de la Haye et Université des Nations Unies Colloque 1978, (27-29 juillet 1978), Le

Outra importante trabalho da doutrina, como já referido, são os estudos específicos encomendados ou feitos pela própria Comissão de Direito Internacional da ONU, a referida CDI, publicados no seu “Yearkook”79, de edição anual, no qual se encontram, ademais, transcritas as

opiniões dos ilustres integrantes da mesma. A própria ONU, em assuntos vários,80 em particular

sobre o relevante trabalho empreendido pela CDI81, bem como as suas organizações especializadas,

a exemplo da FAO (Food and Agriculture Organisation, com sede em Roma)82 e da Universidade das

Nações Unidas83 (a UNITAR, com sede em Tóquio), têm sido responsáveis por obras que reúnem

trabalhos doutrinários de autores individuais, do mais elevado teor.

Uma importante introdução nas fontes doutrinárias do Direito Internacional, a partir do final do Séc. XIX, e que cada vez mais se firmou como altamente significativa no correr do Séc. XX, foi a emergência do que passou a ser denominada de “doutrina coletiva”; trata-se de resoluções de caráter científico expedidas por organizações não governamentais, as ONGs, que existem nos vários setores da vida societária, e das quais se destacam duas, fundadas no mesmo ano de 1873, dedicadas ao estudo e desenvolvimento daquele ramo da Ciência Jurídica: o “Institut du Droit

International” e a “International Law Association”. Trata-se de entidades compostas por Professores,

advogados, diplomatas, de todos os países do mundo, cuja principal atividade é o estudo científico de grandes temas do Direito Internacional, dos quais resultam projetos de normas internacionais, ou trabalhos coletivos de natureza opinativa sobre assuntos tópicos. Conforme já dissemos em um nosso trabalho anterior, relacionado ao Direito Internacional do Meio Ambiente:

79 Os relatórios dos trabalhos da CDI são editados em inglês (Yearbook of the International Law Commission), em francês (Annuaire de la Commission du Droit International) e em espanhol (Anuario de la Comisión de Derecho Internacional). Consta de dois volumes, um com o relatório das sessões e outro com os projetos de suas resoluções já adotados.

80 A exemplo: United Nations, Office of Legal Affairs, Division for Ocean Affairs and the Law of the Sea, The Law of the Sea,

Concept of the Common Heritage of Mankind, Legislative History of Articles 133 to 150 and 311(6) of the United Nations Convention on the Law of the Sea, Nova York, United Nations, 1996.

81 United Nations International Law on the Eve of the Twenty-first Century, Views from the International Law Commission,

Le Droit International à l'Aube du XXe. Siécle, Réflexions des Codificateurs, United Nations, Nova York, 1997 (Sales nº E/F

97.V.4, ISBN 92-1-133512-4).

82 FAO Essays in Memory of Jean Carroz, The Law and the Sea, FAO, Roma, 1987.

83 Könz, Peider, editor, com Christophe Bellmann, Lucas Assunção e Ricardo Meléndez-Ortiz, Trade, Envoronment and

Sustainable Development: Views from Sub-Saharian Africa and Latin America. A Reader, Genebra e Tóquio, respectivamente,

International Center for Trade and Sustainable Development, Geneva, e The United Nations University Institute of Advanced Studies, Shibuya-ku, Tokyo, 2000. (Environment and Multilateral Diplomacy Series, nr. 1). Nesta obra coletiva, contribuímos com um trabalho: “International Trade and Environment: Confrontation between the WTO/GATT and Environmental Protection Norms”, a p. 21-36.

“na sessão em Salzburgo, em 1961, o Institut editaria a Resolução sobre o Uso Internacional de Águas Não-Marítimas, e na Resolução de Atenas de 1979, o Institut dedicar-se-ia à poluição dos cursos de água e dos lagos internacionais, em face do Direito Internacional (documentos publicados no seu Annuaire, respectivamente vol. 49-II e vol. 59-I). A International Law Association elaboraria as famosas Regras de

Helsinky sobre os usos dos rios internacionais (agosto de 1966), suficientemente

comentadas pelo Embaixador Sette-Câmara no seu Curso da Haia (já citado)84, e que

seriam complementadas por outras propostas e estudos: sobre controles de enchentes (Nova York, 1972), sobre a poluição marinha de origem telúrica (Nova York, 1972), sobre gerenciamento e melhoria de rios navegáveis que separam ou cruzam territórios de vários Estados (Nova Delhi, 1974), proteção de recursos da água e de usinas hidráulicas em tempo de guerra (Madri, 1976), administração internacional dos recursos da água (Madri, 1976), sobre as regulamentações de fluxos d'água e sua interdependência com outros recursos naturais (Belgrado, 1980), sobre as poluições transfronteiriças em geral (igualmente, Belgrado, 1980), as Regras de Montreal de 1982 sobre o Direito Internacional Aplicável à Poluição Transfronteiriça e as Regras de Montreal sobre Poluição da Água, numa Bacia Internacional(85), o direito dos recursos

de lençóis freáticos internacionais (Seul, 1986) e as regras adicionais aplicáveis aos lençóis freáticos internacionais (Seul, 1986) (nosso livro: Direito Internacional do Meio Ambiente, Emergência Obrigações e Responsabilidades, de Direito Internacional, São Paulo, Atlas, 2001, no prelo).

Enfim, importa observar que, nos casos em que os juizes da CPJI e da CIJ tiveram de fundamentar seus votos dissidentes nas decisões daqueles tribunais internacionais, sua razões de discordâncias sempre foram fundamentadas na doutrina dos internacionalistas mais significativos de seu tempo.

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