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3 REVISÃO DA LITERATURA

3.3 CULTURA NORDESTINA E O MOVIMENTO ARMORIAL

3.3.2 Dualidade entre o erudito e o popular na estética armorial: o resgate

Popular significa “o que vem do povo, o que é relativo ao povo, o que é feito para o povo e, finalmente, o que é amado pelo povo” (SANTOS, 2009, p. 14). A expressão popular na cultura durante a história sempre esteve relacionada à elaboração de uma cultura independente dos modelos existentes, a uma pressão por criação de novas categorias sociais e a busca por uma unidade nacional (SANTOS, 2009).

No Brasil, a cultura popular corresponde à busca por identidade, por aquilo que torna as pessoas autenticamente brasileiras. Na literatura brasileira, podem-se encontrar expressões populares por meio da presença de citações de romances e cantos tradicionais, de temas regionais e de personagens do povo que assumem um ideal poético e social nas histórias. De modo semelhante, é possível entender o termo Folclore como aquele que “designa, a uma só vez, o conhecimento que se pode ter do povo e o conhecimento e as práticas que lhe são

próprias” (SANTOS, 2009, p. 14). Neste contexto de discussão sobre a arte e a cultura popular, Ariano Suassuna foi capaz de identificá-las e classificá-las operando segundo critérios bastante específicos:

A meu ver, a cultura popular é aquela feita pelos integrantes do quarto Estado – fazendo uma alusão à Revolução Francesa e ao escritor russo Dostoievski, pelo qual eu tenho grande admiração. Na Revolução Francesa havia três classes sociais:

nobreza, clero e o chamado povo. Mas esse povo, na época da Revolução, era uma ficção porque, de fato, aí se ocupavam duas classes: a burguesia, que estava começando a emergir como classe dominante, e a classe proletária, formada pelos operários urbanos. … Aplicando os termos no Brasil de hoje, o que eu chamo de arte popular é a arte criada pelos integrantes do quarto Estado – essa imensa maioria de despossuídos que formam o povo do Brasil real. As pessoas, às vezes, chamam de arte popular aquela que tem uma divulgação muito grande. Já me disseram algumas vezes: “A sua peça Auto da Compadecida é uma das obras do Teatro popular brasileiro.” Eu fico muito honrado, mas isso não é verdade. Dentro da minha visão, o Auto da Compadecida é uma obra escrita por uma pessoa que não pertence ao quarto Estado. Ela é baseada em obras de arte que são, de fato, populares. Para escrever o Auto da Compadecida eu me baseei em três folhetos da Literatura de Cordel. Esses três folhetos pertencem à arte popular. Repito que, a meu ver, a arte popular é aquela feita pelos integrantes do quarto Estado. Um espetáculo do Auto de Guerreiros é arte popular, mas um balé baseado no Auto de Guerreiros não é uma arte popular (apud VICTOR; LINS, 2007, p. 49).

Ariano Suassuna utilizava sempre em suas palestras e comentários uma distinção feita por Machado de Assis, indispensável para se entender o processo histórico brasileiro. Era comum ouvi-lo empregar a seguinte citação do autor: “Não é desprezo pelo que é nosso, não é desdém pelo meu país. O país real, esse é bom, revela os melhores instintos. Mas o país oficial, esse é caricato e burlesco” (apud SUASSUNA, 2008, p. 230). Para entender o que motivou Ariano Suassuna a iniciar o Movimento Armorial e a riqueza de detalhes e formas em que está estruturada sua obra, é importante compreender que, assim como Machado de Assis, ele identificava no Brasil dois países diferentes – um oficial, o país dos privilegiados, do qual Ariano dizia fazer parte, em que foi “formado e deformado”; e um real, o país do povo, seja do campo ou urbano, o grosso da população:

O Brasil real teria, na verdade, não um, mas dois emblemas, pois o Arraial do Sertão tinha seu equivalente urbano na Favela da cidade. Se o Brasil real era aquele que habita o Arraial e a Favela, o Brasil oficial tinha seu símbolo mais expressivo nas Federações das Indústrias, nas Associações Comerciais, nos Bancos e no Palácio onde reinam o Presidente e seus Ministros (SUASSUNA, 2008, p. 245).

Ariano ainda procura, por meio de outra distinção, agora feita por Fernando de Azevedo, estabelecer duas linhagens opostas na cultura brasileira: “a do espírito de conquista, isto é, a sertanista, de Euclydes da Cunha, e a do espírito de civilização, a urbanista, de

Machado de Assis” (SUASSUNA, 2008, p. 241). Para ele, a metrópole tentava imprimir polidez (palavra que possui mesma raiz que pólis) às qualidades rústicas e vigorosas do povo.

Existe, portanto, na visão suassuniana, uma cultura penetrante e oficial, que estabelece seu domínio sobre o território e a cultura do povo brasileiro real:

Um, o Brasil do Povo e daqueles que ao Povo são ligados, pelo amor e pelo trabalho. É o Brasil da “Onça-Castanha”, o Brasil que, na minha Mitologia literária, há de se ligar, sempre, ao nome de Euclydes da Cunha, que o chamou, aliás, de “a rocha viva da nossa Raça”. É o Brasil peculiar, diferente, singular, único, que o Povo constrói todo dia, na Mata, no Sertão, no Mar, fazendo-o reerguer-se, toda noite, das cinzas a que tentam reduzi-lo a televisão, o cinema, o rádio, a ordem social injusta – enfim, todos esses meios dominados por forças estrangeiras e por seus aliados, e que tentam, até agora em vão, descaracterizá-lo, corrompê-lo e dominá-lo. Diga-se, de passagem, que certos meios empresariais brasileiros – inclusive os ligados aos meios de comunicação – nos deixaram sempre sós, quando denunciávamos esse estado de coisas. [...] Não é de admirar, porém. Esse é o Brasil oposto ao dos Cantadores, dos Vaqueiros, dos Camponeses e dos Pescadores. É o Brasil superposto da burguesia cosmopolita, castrado, sem-vergonha e superficial (SUASSUNA, 2016, p. 23).

Criador de um nacionalismo estético, Ariano Suassuna vê na cultura do povo nordestino o exemplo de força intuitiva que produz arte brasileira de qualidade e que resiste às tentativas de domínio, massificação globalizante e descaracterização. Contra a modernização falsificadora, vulgar e injusta, que invade e avilta o povo, ele propõe que se recriem as instituições do Brasil oficial a partir das verdades do Brasil real, que aquelas sejam expressões genuínas destas, para transformar o Brasil, antes dividido em dois países, em uma verdadeira Nação, grande, próspera e justa, unida por uma identidade comum (SUASSUNA, 2008).

Nesta intenção de recriar e unir a nação é que Ariano Suassuna tenta estabelecer uma fusão de extremos que se converterá, posteriormente, em uma das principais qualidades do Movimento Armorial. O que evidenciaria a identidade cultural do povo brasileiro para o autor seria a característica dualidade entre o erudito e o popular, entre o letrado e o oral, entre a manutenção da tradição e a atualização no processo artístico, entre a cultura da realeza e a sertaneja, nacional e local, entre a influência cristã e moura, barroca e ibérica, presentes nas produções artísticas populares. De modo conciso, Tavares retoma o que foi elucidado até o presente momento, evidenciando a existência do confronto entre as duas linhagens da cultura brasileira e a tentativa de Ariano Suassuna de produzir algo original com base no fazer artístico popular já estabelecido, a partir de elementos comuns e da conciliação de extremos:

Ariano considera que a existência de uma “cultura do povo” se dá naqueles países em que houve ocupação e o confronto entre duas culturas, e a cultura invasora se estabeleceu no território e passou a dominar, como ocorreu nas Américas com as colonizações portuguesa e espanhola. Sua literatura, seu teatro, sua poesia são tentativas de prolongar a tradição do Padre Antônio Vieira e Camões, por um lado, e dos poetas populares nordestinos por outro, bem como todos os estágios intermediários entre eles. [...] O nacionalismo estético de Ariano Suassuna se baseia nesta tensão entre “fazer algo que seja a soma de tudo que foi feito antes” e “fazer algo que seja novo”. Para ele, os artistas populares, na sua aparente ignorância das grandes teorias estéticas e das grandes tradições artísticas, são o melhor exemplo da força intuitiva que produz Arte e obriga os indivíduos à criação de formas que eles mesmos não entendem por completo (TAVARES, 2007, p. 120).

3.3.3 Nordeste brasileiro: espaço biogeográfico, histórico, cultural e lócus mítico do