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DUAS VERSÕES PARA O RISCO

Durante a controvérsia científica, a ideia de que a gordura trans seria um risco de saúde pública perpassa as versões do risco promovidas

105 Não é à toa que o título desta dissertação utiliza somente a palavra ‘construção’, ao invés de

‘construção social’. Para que pudéssemos associar realidade e construção do risco em uma mesma dinâmica na análise da controvérsia científica, sendo coerentes com o referencial teórico utilizado, não poderíamos falar em ‘construção social’. A locução construção ‘social’ possui a conotação de que apenas os humanos são responsáveis por moldar a realidade arbitrariamente (LATOUR, 2003, p.87). Não apenas os humanos engendram realidade e constroem diversas versões do risco, mas compartilham estas realizações com os não-humanos, como a entidade que denominamos de gordura trans. Por isso, optamos por utilizar apenas o termo construção no título da dissertação.

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por autoridades internacionais e nacionais de saúde, ONGs de consumidores, peritos da área da saúde que atuaram como construtores de fatos. Inicialmente, esta foi uma característica unânime entre as versões do risco que surgiram na década de 1990 e início dos anos 2000. Estes atores destacam a alimentação como um dos fatores fundamentais para o aumento de doenças crônicas e privilegiam a prevenção com foco populacional. As soluções propostas para administrar o risco, que começaram com a rotulagem obrigatória da gordura trans, a limitação de seu conteúdo em alimentos e a sua substituição, apóiam esta caracterização da gordura trans enquanto um risco de saúde pública. Estas medidas ainda se somam à indicação de que a indústria deveria produzir alimentos mais saudáveis (OMS, 2004), o que sinaliza que, em relação às estratégias para lidar com o risco, a responsabilidade corporativa seria maior do que a responsabilidade individual do consumidor.

Dentro desta versão do risco, a gordura trans seria um elemento da tese mais ampla da transição nutricional – esta gordura seria parte de alimentos que contribuem para o aumento de problemas de saúde como as doenças cardiovasculares. Os atores que sustentam a gordura trans enquanto um risco de saúde pública utilizam a estratégia de translação que amarra a resolução de um problema pontual à resolução de um problema mais amplo. Dessa forma, as soluções para administrar o risco são retratadas como um desdobramento de estratégias para combater o aumento de doenças crônicas e um meio para atingir um objetivo mais amplo (ver ilustração 9).

A indústria de alimentos elaborou estratégias que tratam a gordura trans como um risco alimentar em vista de dois fatores principais, que seriam a criação de regras de rotulagem obrigatória ou eliminação da gordura trans de alimentos, inauguradas pelos EUA, Canadá e Dinamarca, assim como o maior reconhecimento por parte do público de que a gordura trans seria um risco alimentar. No entanto, as inovações criadas pela indústria de alimentos sugerem uma versão do que risco que diverge daquela que define a gordura trans como um risco de saúde pública.

A partir de 2003 e 2004 tem início o período mais expressivo em que a indústria apresenta reformulações de alimentos com menor teor de gordura trans e a inovação dos produtos sem gordura trans. Estes novos produtos, em especial os produtos sem gordura trans, estão inseridos na tendência mais ampla da alimentação saudável que vem

ganhando força mais recentemente 106. A indústria de alimentos reconheceu o contexto de contradição alimentar em que vivemos caracterizado pelo paradoxo entre o aumento do peso da população em geral e de problemas de saúde crônicos que convive com o desejo de um corpo magro e saudável. A alimentação saudável se torna relevante para o consumidor à luz da maior visibilidade que esta ambivalência entre saúde e doença ganha – em 2002 a OMS declarou que a obesidade atingiu proporções epidêmicas (OMS, 2002b).

Ilustração 9: A gordura trans como um risco de saúde pública

A retirada da gordura trans dos alimentos se tornou um dos mais novos aspectos do alimento saudável. As alegações de saúde do tipo “0% gordura trans”, que aparecem na parte da frente dos produtos, promovem esta inovação e indicam que a indústria passou a valorizar a retirada da gordura trans como forma de incorporar a preocupação com a saúde em seus produtos. Os produtos sem gordura trans são indicadores do argumento de Herrick (2009), que afirma que o foco na

106 Disponível em: http://www.beveragedaily.com/Financial/Healthy-innovation-attractive-to-

investors Gordura trans: risco alimentar de saúde pública COMBATE AO AUMENTO DE DOENÇAS CRÔNICAS Atores amarram resolução de um problema específico à resolução de um problema mais amplo.

Rotular e eliminar a gordura trans dos alimentos é retratado como desdobramentos óbvios do combate às doenças crônicas.

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saúde surgiu como uma das dimensões de vantagem competitiva mais recente. Com esta onda de inovações dos produtos sem gordura trans, a retirada desta gordura deixou de ser algo indesejado pela indústria e se tornou uma oportunidade. Os produtos sem gordura trans representam um maior padrão de qualidade para os alimentos e rebatem possíveis críticas contra as empresas que utilizavam ingredientes com gordura trans.

Os produtos sem gordura trans são promovidos nos mais variados formatos, por meio de alegações de saúde, em selos de certificação voluntária que identificam linhas de produtos saudáveis, e estão presentes em diversas categorias de alimentos. No entanto, a versão do risco promovida pela indústria tem como traço comum apresentá-lo em termos de escolhas do consumidor. Os produtos sem gordura trans são apresentados como um dos diversos benefícios nutricionais que os produtos da alimentação saudável oferecem. Segundo esta versão do risco, cabe ao consumidor optar quais seriam os benefícios nutricionais mais relevantes frente a sua responsabilidade de zelar pela própria saúde e arcar com as conseqüências dos alimentos que consome. A oferta de alimentos com os mais variados benefícios nutricionais é uma estratégia da indústria em que esta se apresenta como um ponto de passagem obrigatório entre as ansiedades dos consumidores em relação à alimentação e o objetivo de atingir um estilo de vida mais saudável (ver ilustração 10). Os alimentos sem gordura trans seriam um dos atalhos construídos pela indústria para o consumidor atingir uma satisfação pessoal mais ampla.

Esta versão paralela do risco, que é retratado como parte das escolhas do consumidor, começou a ser promovida pela indústria no período em que a reformulação dos alimentos para versões sem gordura trans foi mais significativa, entre 2003 e 2004.

A partir desta época em que ocorreu esta onda de reformulações, a versão do risco que promovia a gordura trans como um risco de saúde pública passou a conviver com uma versão paralela, sustentada pela indústria de alimentos, que apresentou a gordura trans como um risco de responsabilidade do consumidor. Os construtores de fatos que sustentam a gordura trans como um risco de saúde pública foram bem sucedidos em fechar parte da controvérsia científica de maneira que a indústria foi obrigada a apoiar a existência do risco alimentar. No entanto, não conseguiram controlar o que a indústria decidiu fazer com o fato científico quando esta passou a incorporar a existência do risco em suas estratégias para produzir e vender alimentos. Atualmente a indústria atua como construtora de outra versão para o

risco alimentar. Por este motivo, convivemos com duas versões paralelas do risco da gordura trans.

Ilustração 10: A gordura trans como uma escolha do consumidor