• Nenhum resultado encontrado

O PERFIL DOS RISCOS E O SISTEMA ALIMENTAR

CAPÍTULO 2: SISTEMA ALIMENTAR, RISCO E CONHECIMENTO

3. O PERFIL DOS RISCOS E O SISTEMA ALIMENTAR

Em vista da breve caracterização do surgimento do sistema alimentar moderno, assim como dos traços institucionais e legais mais importantes globalmente, passamos agora a analisar o papel fundamental da ciência.

Giddens (1991) chama a atenção para maneira como os ambientes pelos quais transitamos cotidianamente são organizados por sistemas peritos. Podemos incluir o sistema alimentar moderno como mais um sistema perito, visto que neste se apóia o conjunto de relações associado à produção e distribuição de alimentos. Os sistemas peritos permitiram grandes mudanças que conferem um caráter singular ao sistema alimentar moderno, como o aumento da escala e qualidade da produção, assim como melhorias nas redes de preservação de alimentos (BEADSWORTH; KEIL, 1997, p.42). Os sistemas peritos também proporcionam a criação de grandes ambientes de segurança (GIDDENS,

1991, p.127) e estabilidade para a produção, distribuição e consumo de alimentos no mundo.

A maneira como as características dos riscos são modificadas pelos mecanismos de desencaixe – já citados anteriormente – podem ser observadas no sistema alimentar moderno no que se refere ao escopo e ao tipo de ambiente do risco, além das alterações na vivência do risco. Com isso, procuramos argumentar que a gordura trans se encaixa neste novo perfil de riscos (ver quadro 2).

O sistema alimentar adquire um escopo global à medida que promove desenvolvimentos como: a extensão de suas redes de distribuição, pelo fornecimento de alimentos a partir de grandes produtores globais de monoculturas e com o comércio global de alimentos in natura e processados que seguem standards internacionais. A outra face desta dinâmica é a de que os riscos alimentares também se tornam globalizados, pois afetam todos aqueles que dependem deste sistema alimentar.

A gordura trans encaixa-se dentro deste risco de escopo global: a consolidação do conhecimento a respeito dos danos à saúde provocados pela gordura trans atinge a todos que consomem alimentos que contêm este tipo de gordura. Este risco supera fronteiras, classes sociais e padrões culturais. Outra implicação relevante é que o risco alimentar global associado à gordura trans levanta discussões a respeito da autoridade do Estado dentro do contexto político mais amplo, visto que torna controversa a divisão entre quais seriam ou não questões de responsabilidade nacional, seja para identificar o risco ou criar estratégias para administrá-lo.

O segundo ponto a ser destacado é o referente ao tipo de ambiente de risco. As alterações na forma como os alimentos são produzidos e definidos geram riscos que estão relacionados com a intervenção humana no meio ambiente. Por um lado, desenvolvimentos como o das plantas híbridas, a aplicação de biotecnologia, o uso de aditivos para fins cosméticos – que garante a aparência dos alimentos sem manchas, por exemplo – e de fermentação trazem vantagens como a oferta de alimentos com um prazo maior de validade e valor nutricional. Por outro lado, os riscos da “natureza socializada” (BECK, 1998) refletem uma nova característica do ambiente de risco. As constantes inovações na área de alimentos colaboram para este novo ambiente de riscos gerados pela intervenção humana. As modificações genéticas na agricultura e as transformações que podem trazer os nanoalimentos são exemplos de novas tecnologias com conseqüências desconhecidas e que podem gerar novos riscos no sistema alimentar.

83

Quadro 2: Características específicas do perfil de risco na Modernidade

Fonte: Giddens (1991).

Com mais frequência peritos definem riscos para a saúde relacionados a alterações na estrutura e composição dos alimentos. A gordura trans está ligada à hidrogenação, uma inovação que modifica a estrutura química de óleos vegetais líquidos e permite torná-los mais consistentes. Com esta inovação, óleos vegetais passaram a substituir ingredientes convencionais como a banha e a manteiga. No entanto, a gordura trans fabricada industrialmente é gerada durante este processo de hidrogrenação. Em meados do século XX, quando óleos vegetais

Mudanças na

distribuição

dos riscos

Mudanças na vivência dos riscos

Escopo do ambiente de risco

Tipo de ambiente de risco

Globalização do risco em intensidade Globalização do risco em extensão

Risco derivado da intervenção humana na natureza

Surgimento de ambientes de risco institucionalizado

Consciência do risco como risco

Consciência do risco por parte do público Consciência da limitação da

hidrogenados começaram a ser amplamente utilizados, a alteração na estrutura deste ingrediente não foi considerada problema para a saúde.

O contexto regulatório é fundamental para validar este perfil de inovações. Tansey e Worsley (1995) apontam para uma tendência interessante entre os principais marcos regulatórios nacionais do mundo (EUA e membros da União Européia). Estes países davam prioridade aos chamados standards verticais, que definem legalmente o conteúdo de certos alimentos ou como estes alimentos devem ser produzidos para que possam ser considerados pertencentes a determinadas categorias (como queijos e chocolates). Mais recentemente, a partir da década de 1990, estes países vêm substituindo os standards verticais por

standards horizontais. Estes últimos focam em questões de segurança

alimentar e rotulagem. A preferência por standards horizontais permite à indústria de alimentos criar novos produtos que imitam alimentos convencionais, mas que possuem composição diferente. Produtos convencionais não precisam conter a mesma quantidade de ingredientes para serem considerados de uma mesma categoria, desde que informem sua composição no rótulo. É possível adquirir um alimento que lembra um queijo e é vendido como queijo, mas não contém traço algum de leite. A legitimidade legal que este tipo de intervenção adquire abre espaço para que alimentos convencionais possam ser totalmente revisados, para agregar ingredientes e propriedades que até então não possuíam. Isto sugere que a emergência e a expansão do sistema alimentar moderno fundamentado em sistemas peritos vêm deslocando a definição do que é o alimento.

Em terceiro lugar, destacamos as alterações na vivência do risco e suas repercussões no sistema alimentar. A percepção dos riscos enquanto tais, em detrimento da ideia de destino determinado por algum tipo de providência/fatalidade, é o primeiro ponto da vivência moderna dos riscos. Os mecanismos de desencaixe em conjunto com a reflexividade estabelecem um contexto secular em que o risco acompanha a idéia de maleabilidade do futuro (GIDDENS, 2002). O sistema alimentar moderno é institucionalmente reflexivo, isto é, as relações de produção e distribuição de alimentos são justificadas à luz do conhecimento produzido e estão sujeitas à revisão conforme um novo conhecimento é consolidado. A continuidade das práticas no sistema alimentar moderno depende do conhecimento produzido por sistemas peritos centrais para este como a Agronomia e a Nutrição.

A criação de instituições internacionais para regular o sistema alimentar denota o reconhecimento do risco. A Comissão do Codex Alimentarius, a OMC, os vários órgãos nacionais de saúde e os

85

mecanismos como standards de segurança alimentar convergem para garantir algum grau de estabilidade e previsibilidade às relações do sistema alimentar. O monitoramento do risco é parte chave da reflexividade destas instituições. Os comitês de peritos do Codex, por exemplo, apresentam aconselhamento científico por meio de relatórios que fazem a revisão de estudos anteriores e resumem resultados – como informações toxicológicas para a recomendação do conteúdo de substâncias que podem ser ingeridas ao longo da vida sem problemas para a saúde (WINICKOFF; BUSHEY, 2009, p.371).

Outra característica da vivência dos riscos seria que os mecanismos de desencaixe promovem o reconhecimento da existência de riscos pelo público. Isto é, os mecanismos de desencaixe, como as tecnologias da informação, permitem difundir informações ao público a respeito da existência de riscos coletivos. O consumo alimentar é um dos meios pelos quais o risco entra no cotidiano. O reconhecimento dos riscos por parte do publico dá origem a importantes tendências na alimentação, como os chamados “alimentos sustentáveis”, que indicam novas preocupações do público com relação aos alimentos que consomem. Dentro desta tendência dos alimentos sustentáveis, Oosterveer, Guivant e Spaargaren (2010) identificam demandas por naturalidade (que estão relacionadas com a não adulteração dos alimentos, como os alimentos integrais que não utilizam ingredientes artificiais ou conservantes, e aqueles com certificação de produção orgânica) e por segurança alimentar (que estão associadas a preocupações com riscos alimentares como a intoxicação por pesticidas, ou com a doença da “vaca louca” - encefalopatia espongiforme bovina)

14. É interessante notar que estas demandas por naturalidade remetem,

por oposição, ao novo tipo de ambiente de risco indicado anteriormente, relacionado aos riscos alimentares a partir da intervenção humana no meio ambiente.

É subjacente a estas novas demandas que surgem no sistema alimentar, que é altamente dependente de processos industriais sofisticados que estão distantes da compreensão do consumidor médio, não apenas o reconhecimento dos riscos por parte do público, mas também o reconhecimento das limitações da perícia. Com isso, chegamos à terceira característica da vivência do risco. Estes novos

14 Estes autores indicam ainda outras duas dimensões que são parte dos alimentos sustentáveis:

as preocupações relacionadas aos ecossistemas e com o bem-estar animal (OOSTERVEER; GUIVANT; SPAARGAREN, 2010).

traços da vivência do risco acentuam a relação ambivalente que as pessoas têm com os alimentos, conforme veremos a seguir.

4. A VIVÊNCIA DOS RISCOS E AMBIVALÊNCIAS DA