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CAPÍTULO 1: RISCO, MODERNIDADE E CONTROVÉRSIA CIENTÍFICA

4. A IMPORTÂNCIA DA CONTROVÉRSIA CIENTÍFICA PARA O ESTUDO DA CIÊNCIA

4.2 ESTRATÉGIAS DE TRANSLAÇÃO

Para ampliar a gama de aliados associados à caixa-preta e ao mesmo tempo evitar que esta se transforme/se abra totalmente ao ser repassada para outras mãos, os construtores de fatos adotam uma série de estratégias que são caracterizadas por aumentar o controle sobre aqueles que são chamados a participar da construção de fatos, ao mesmo tempo em que diminuem o espaço de negociação para que os novos aliados propaguem a caixa preta da mesma forma em que está. Os construtores de fatos utilizam estratégias de translação: “transladar interesses significa, ao mesmo tempo, oferecer novas interpretações desses interesses e canalizar as pessoas para direções diferentes” (LATOUR, 2000, p.194). As estratégias de translação têm como fim o alistamento de novos aliados, assim como o controle de seu comportamento, para que a caixa preta possa ser criada e disseminada sem fugir ao controle dos construtores de fatos. Com as estratégias de translação os construtores de fatos buscam reinterpretar os seus interesses e os daqueles que desejam recrutar, de forma com que ambos coincidam. Boa parte dos estudos científicos ocupa-se em analisar estas operações de translação, isto é, como interesses distintos são combinados em um novo objetivo composto (LATOUR, 2001, p.106).

Latour (2000) lista quatro estratégias de translação típicas que costumam ser utilizadas pelos construtores de fatos com o intento de interessar novos aliados. Na primeira estratégia o construtor de fatos adapta sua alegação de que maneira que convirja com os interesses de outro ator mais forte; a segunda estratégia de translação é viável quando a rota normalmente utilizada por um aliado em potencial para atingir seus objetivos está bloqueada e este decide seguir os interesses do

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construtor de fatos como alternativa; a terceira maneira de transladar ocorre quando o construtor de fatos apresenta a realização de seus interesses como um atalho para um ator mais forte atingir seus objetivos.

No entanto, nestas três primeiras estratégias, a principal dificuldade dos construtores de fatos é a existência de interesses explícitos daqueles que desejam alistar. Estes interesses explícitos, que estão relacionados à identidade prévia daqueles que são aliados em potencial, restringem a margem de ação dos construtores de fatos. Com o fim de eliminar estes interesses explícitos para obter maior flexibilidade na reinterpretação de interesses e objetivos dos aliados, os construtores de fatos podem adotar quatro táticas:

a) Os construtores de fatos podem reinterpretar os objetivos explícitos daqueles que desejam alistar. Os objetivos explícitos dos aliados em potencial ganham novos significados de forma que os construtores de fatos se tornam ponto de passagem obrigatório para a realização destes.

b) Os construtores de fatos podem criar novos objetivos para os atores que desejam alistar, de forma com que estes novos objetivos precisem dos construtores de fatos e da caixa preta para se realizarem.

c) Os construtores de fatos podem redefinir as identidades de seus potenciais aliados, o que torna mais fácil também a criação de novos objetivos para estes. Com isso, os construtores de fatos procuram criar uma nova dinâmica em que são indispensáveis para a realização dos novos objetivos. Esta é a estratégia mais eficiente.

d) Os construtores de fatos procuram tornar invisível o desvio que os aliados tomam de seus objetivos originais, para que estes não se sintam enganados. É necessário reinterpretar os objetivos dos aliados de modo que os novos objetivos pareçam equivalentes – uma derivação progressiva dos objetivos originais. Ocorre aí uma seqüência de reinterpretações de objetivos e redirecionamentos das pessoas para outros fins que devem parecer inevitáveis. O objetivo destas reinterpretações sucessivas é fazer com que os atores alistados não sintam o distanciamento de seus objetivos como uma mudança de direção ou um desvio, mas como uma continuação em linha reta rumo ao seu

objetivo. Uma das formas de se fazer isto de maneira eficiente, por exemplo, é amarrar a solução de problemas menores à solução de problemas mais amplos (LATOUR, 2000, p.194).

Além de interessar aliados, os construtores de fatos também necessitam controlar o comportamento daqueles que vão ajudar a disseminar a caixa-preta. Esta seria uma segunda etapa dentro da construção de fatos. Em linhas gerais, Latour (2000) lista três dificuldades encontradas pelos construtores de fatos ao tentar tornar previsível o comportamento dos atores uma vez alistados, assim como as estratégias utilizadas para contornar estes problemas. Os obstáculos estão relacionados à força das associações construídas, à necessidade de criar relações que sejam relevantes para os elementos reunidos e, finalmente, às dificuldades de se fazer com que o conjunto de aliados atue como um todo.

É necessário que uma vez que atores foram alistados e amarrados uns aos outros, que estas associações possam resistir às tentativas de desestabilização. Isto pode ocorrer, por exemplo, quando um discordante tenta questionar a força de determinada associação, colocando toda a caixa-preta em cheque (LATOUR, 2000, p.202). Nesse ponto, os construtores de fatos podem reavaliar e tentar substituir alguns elementos por outros que gerem associações mais fortes – como atar à sua caixa-preta a outras caixas-pretas.

Em segundo lugar, o construtor de fatos não conseguirá amarrar elementos aleatoriamente. Para garantir que os aliados permanecerão unidos, os construtores de fatos precisam apresentar relações relevantes. Nesse sentido, participar da caixa-preta precisa parecer útil para aqueles atores que serão alistados (LATOUR, 2000, p.209). A caixa preta pode, por exemplo, ser apresentada como indispensável para a realização dos objetivos dos aliados.

A terceira dificuldade está em fazer com que a reunião de forças funcione como um todo organizado e coeso. Quando isto é alcançado conquista-se a caixa-preta – quando todos os elementos agem como um todo duradouro. Quanto maior o número de aliados reunidos, mais complexo fica o trabalho de tornar previsível o comportamento destes e fazê-los cooperar na manutenção e expansão da caixa-preta (LATOUR, 2000, p.214). Entre as estratégias utilizadas para garantir a coesão está a de fazer com que os aliados controlem-se mutuamente, de forma com que estejam a todo o momento vigiando uns aos outros para realizar o objetivo do construtor de fatos. Nesse sentido, os não-humanos

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desempenham papel central, visto que podem executar várias tarefas, como a de inspeção e supervisão, que garantem com que o resto dos aliados continuem bem alinhados (LATOUR, 2000, p.215).

As estratégias empregadas por construtores de fatos para conquistar aliados e controlar seus comportamentos podem ser utilizadas como referência para pensar a construção do risco, pois apresentam vantagens teórico-metodológicas.

Primeiramente, as estratégias de translação apresentadas são um bom recurso para operacionalizar parte da análise da construção do risco enquanto fato científico. Um ponto fundamental seria identificar os interesses dos atores envolvidos na controvérsia científica, levando em consideração tanto os construtores de fatos, quanto os discordantes. Um segundo aspecto seria investigar como os construtores de fatos interessaram outros atores, utilizando as estratégias de translação para reinterpretar e recombinar interesses, redefinindo identidades e interesses, a fim de tornar a consolidação do risco um objetivo relevante para outros. Isto nos permitiria identificar as alianças feitas e desfeitas ao longo do tempo, e as associações que compuseram o risco nos diferentes períodos.

A necessidade desta retrospectiva está vinculada a uma das principais pressuposições dos estudos científicos: a distinção entre ciência em construção e ciência pronta. Só podemos analisar a construção do risco durante o período da controvérsia científica, enquanto o fato ainda não foi estabelecido. Com isso, nos afastamos do discurso da ciência pronta, em que a Natureza aparece como a causa que permitiu o encerramento da controvérsia e a definição do risco. Durante o período da controvérsia científica podemos observar o quão contingente é a definição de um risco. As definições de risco estão sujeitas a modificações, conforme os construtores de fatos vão substituindo os elementos amarrados ao risco, em busca de associações mais fortes. Portanto, o risco poderia ter outra definição caso os elementos amarrados a este fossem outros. Além disso, durante a controvérsia podemos examinar, conforme o tempo, que aspectos da discussão deixaram de entrar em cheque, e se os discordantes procuraram redirecionar suas divergências para outras questões.

Outra vantagem está associada à pressuposição de que aquilo que é interior ou exterior ao processo do fazer científico é contingente. Isto está relacionado à ampliação do leque de elementos associados à construção da ciência, visto que os fatos científicos não são conformados apenas por aqueles que trabalham dentro dos laboratórios. Isto permite levar em consideração atores com outras competências,

além dos peritos, que compõem a rede sócio-técnica e colaboram diretamente para a definição do conteúdo científico. Com isso, a trajetória do risco também é a história de como atores com as mais variadas qualificações passaram a serem elementos internos ao processo de construção do risco enquanto fato científico.

Analisar a construção do risco como a construção de uma caixa- preta ainda traz outras implicações teóricas no que diz respeito à realidade e existência do risco. Trataremos disto a seguir.