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Aprender e esquecer ou aprender e lembrar?

E RIC K ANDEL

primeiros a demonstrar como as sinapses poderiam ser reforçadas e o papel desempenhado pelos segundos mensageiros (como, por exemplo, o AMPc, a fosfolipase C e o diacilglicerol). Estes foram certamente os passos iniciais que auxiliaram na descoberta da potenciação de longa duração (conhecida pela sigla LTP, do inglês long term potentiation) e da depressão de longa duração (conhecida pela sigla LTD, do inglês long

term depression) no hipocampo de mamíferos.

LTP: FUNDAMENTO MOLECULAR DA MEMÓRIA

Como você já viu nesta aula, o hipocampo é uma região do lobo temporal que parece ter um papel essencial na conversão da memória de curto prazo em memória de longo prazo. Esta estrutura tem uma circuitaria peculiar, e é necessário que você conheça alguns de seus elementos para compreender a LTP.

O hipocampo é composto por duas áreas principais: o corno de Amon, que é subdividido em regiões CA1, CA2, CA3 e CA4, e o giro denteado. As fibras aferentes (fibras musgosas e perfurantes) que chegam ao hipocampo fazem sinapse com as células granulares do giro denteado. Estas células, por sua vez, projetam seus axônios para as células piramidais de CA3. Daí a informação segue para a região CA1 por um conjunto de fibras denominado colaterais de Schaffer, e para fora do hipocampo (Figura 14.10).

A estimulação elétrica repetitiva (tetânica) nos colaterais de Schaffer leva ao aumento do potencial pós-sináptico excitatório (PPSE) da célula piramidal de CA1. Quando o estímulo é forte o bastante para ativar muitos colaterais de Schaffer, este aumento de PPSE se mantém durante horas (ou mesmo dias), inclusive após ter sido interrompida a estimulação tetânica.

ERIC KANDEL

Nasceu em Viena, na Áustria, em 1929, mas foi forçado a deixar seu país devido às perseguições nazistas aos judeus. Em 2000, dividiu o prêmio Nobel de Medicina com Arvid Carlsson e Paul Greengard, por sua investigação sobre mecanismos de memória. Atualmente é professor da Universidade de Columbia, nos Estados Unidos. Leia mais sobre o cientista nos sites: http://www.hhmi.org/ research/investigators/ kandel.html, http: //nobelprize.org/ medicine/laureates/ 2000/ e http: cnet.columbia.edu/ dept/neurobeh/ Kandel.html

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Figura 14.10: Representação do circuito do hipocampo, como primeiramente estu-

dado pelo histologista espanhol SANTIAGO RAMONY CAJAL (1852-1934). Observam-se as regiões dos cornos de Amon (CA1 e CA3), o giro denteado (GD), as fibras musgosas, perfurantes e os colaterais de Schaffer.

Como isto ocorre e qual sua função? As sinapses entre os colaterais de Schaffer e os dendritos das células piramidais de CA1 utilizam o glutamato como neurotransmissor (glutamatérgicas). A membrana pós- sináptica das espinhas dendríticas (local da sinapse na célula pós-sináptica) tem três tipos de receptores glutamatérgicos: NMDA, não-NMDA e metabotrópico. Logo após a chegada dos primeiros potenciais de ação (PAs) ao terminal, os canais não-NMDA são os primeiros a responder à ação do glutamato liberado na fenda sináptica (Figura 14.11).

Ocorre, então, a abertura de canais de Na+ e K+, provocando a

despolarização da membrana pós-sináptica. Ao atingir um certo valor,

esta despolarização remove o íon Mg++, que normalmente bloqueia os

canais do tipo NMDA, e eles se abrem. Isto leva a um aumento ainda maior do fluxo transmembrana de cátions e também à entrada de

Ca++ para os dendritos. Neste momento, também é ativado o receptor

glutamatérgico metabotrópico que, via fosfolipase C, leva à liberação

de Ca++ do retículo endoplasmático. SANTIAGO RAMONY CAJAL Anatomista espanhol que dedicou grande parte da vida ao estudo e caracterização das células do sistema nervoso. Suas cuidadosas observações produziram descobertas de impacto para a neurociência moderna. Seus trabalhos e suas ilustrações são utilizados até os dias de hoje. Veja mais sobre Cajal em http: //cajal.unizar.es/sp/ bio/biograf.html , http://nobelprize.org/ medicine/laureates/ 1906/cajal- bio.html e http: /www.madrimasd.org/ portugues/cultura/ personalidades/ santiago/default.asp Colateral de Schaffer Fibra musgosa Hipocampo Fibra perfurante CA1 GD CA3

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O aumento deste Ca++ intracelular leva à ativação da enzima de

síntese do óxido nítrico (NO-Sintase), que começa a produzi-lo. Sendo um gás, o óxido nítrico se difunde pela membrana, indo agir na célula pré-sináptica, estimulando ainda mais a liberação de glutamato pelo terminal. Esta alça, que reestimula o neurônio pré-sináptico, perpetua a resposta do neurônio pós-sináptico durante várias horas. Paralelo a isso, há ativação da calmodulina, que, via ativação da adenilil-ciclase (AD), aumenta o AMPc intracelular. Este aumento irá ativar a proteína cinase A e levar à ativação de genes no núcleo celular que codificam elementos estruturais das sinapses. Assim, o fenômeno pode se perpetuar por dias. A LTP é uma forma de plasticidade sináptica que se acredita ser a base molecular da aquisição de novos conhecimentos.

Figura 14.11: A liberação de gluta-

mato pelo terminal pré-sináptico (à esquerda) leva à ativação seqüencial de receptores não-NMDA, NMDA e metabotrópicos. Assim, há um influxo prolongado de cátions para dentro do terminal pós-sináptico, mantendo esta célula ativada por horas ou até dias. AD, Adentil-ciclase.

A maneira como o aprendizado produz mudanças estruturais na arquitetura funcional do cérebro maduro pôde ser constatada quando os cientistas analisaram o aprendizado somestésico realizado na forma de memória de longa duração no córtex somato-sensorial. Os mapas funcionais da superfície corpórea no córtex somato-sensorial primário (área S1) varia entre os indivíduos de maneira a refletir as diferenças no uso deste sentido. As áreas se expandem conforme o grau de atividade, e as mudanças organizacionais ocorrem ao longo de toda a via somestésica. À medida que o indivíduo cresce, sua experiência sensorial o leva a desenvolver diferentes habilidades motoras. Assim, apesar de geneticamente iguais, indivíduos de uma mesma espécie estão sujeitos a terem sua estrutura organizacional modificada pela experiência, o que constitui, por si só, a base de nossa individualidade.

TERMINAL AXÔNICO ESPINHA DENDRÍTICA Receptor metabotrópico Glutamato Receptor NMDA Retículo endoplasmático Ca++/ Calmodulina Cinases Para o núcleo NO-sintase Receptor não-NMDA Na++ K++ Mg++ Ca++ NO K+ Na+ NO Ca++ (P.c. AD) AMPc

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8. Indique a cadeia de eventos moleculares que é a base para a LTP. _________________________________________________________________ _________________________________________________________________ _________________________________________________________________ _________________________________________________________________

RESPOSTA COMENTADA

Chegada dos primeiros potenciais de ação pós-sinápticos → glutamato liberado na fenda sináptica → ativação de canais não-NMDA → abertura de canais de Na+ e K+ → despolarização da membrana pós-sináptica →

remoção do íon Mg++ , que bloqueia os canais → abertura dos canais NMDA

→ aumento ainda maior do fluxo transmembrana de cátions (inclusive de Ca++)

→ ativação do receptor glutamatérgico metabotrópico → ativação da fosfolipase C → liberação de Ca++ do retículo endoplasmático.

→→→

→ aumento de Ca++ intracelular → ativação da enzima de síntese do

óxido nítrico → aumento do óxido nítrico → difusão do óxido nítrico pela membrana → ação na célula pré-sináptica → estímulo ao aumento da liberação de glutamato pelo terminal pré-sináptico.

→ ativação da calmodulina → ativação da adenilil-ciclase → aumento do AMPc intracelular → ativação da proteína cinase A → ativação de genes no núcleo celular → síntese de elementos estruturais das sinapses.

CONCLUSÃO

Vimos, ao longo desta aula, que podemos dividir teoricamente os tipos de memória segundo sua duração e suas características, mas as explicações celulares e moleculares para a memória não são completamente claras. O estudo das memórias ainda está em seus primeiros passos, apesar de ter sido iniciado há mais de 50 anos, e muito do que se sabe provém do estudo de pacientes com lesões. Se você se interessa pelo assunto, fique atento para os trabalhos do professor Ivan Izquierdo (veja nos sites listados mais adiante), da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, uma pessoa de referência neste assunto no Brasil.

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ATIVIDADE FINAL

Prove a memória operacional de seus amigos com um teste simples, utilizado por neuropsicólogos: o teste de Wisconsin. Para isto, você precisa apenas de um baralho comum e um amigo ou familiar. Você deve pedir ao seu amigo que agrupe os baralhos, seguindo algum critério da escolha dele. À medida que ele for formando os grupos, você deve informá-lo se nos grupos formados há combinações corretas e quantas (sem apontá-las diretamente), segundo o critério que você definiu previamente sem contar para ele. Os grupos possíveis estão indicados na figura abaixo, mas você não deve dar esta informação a priori. Depois de algumas tentativas, seu amigo será capaz de agrupá-las corretamente. Você pode marcar o tempo gasto para realização desta tarefa e depois repeti-la para comparar o tempo gasto. O jogo Senha, com o qual muitos de nós brincamos quando pequenos, exercita exatamente esta capacidade.

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Agrupamento pela cor

Agrupamento pela forma

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R E S U M O

A aquisição de novos conhecimentos pela vivência de estímulos externos e internos a nós constitui o primeiro passo da formação de nossas memórias. Daí, passamos por um processo de seleção que nos levará a estocar determinadas informações por tempos mais curtos, mais longos, ou simplesmente descartá-las. O processamento e a estocagem de memórias não se faz em uma única região do cérebro. Acredita-se que o hipocampo seja essencial na consolidação de memórias, mas que elas fiquem alocadas nas regiões de origem.

Assim, por exemplo, memórias de imagens estariam mais relacionadas com regiões de processamento visual, ao passo que memórias de músicas estariam mais relacionadas às regiões auditivas. Os mecanismos celulares e moleculares que dão substrato à memória ainda são sujeitos de intensa investigação, e muitas evidências indicam para o fenômeno de LTP como essencial a esta função.

INFORMAÇÕES SOBRE A PRÓXIMA AULA

Agora já estamos próximos do fim das aulas de Sistema Nervoso deste módulo. Na Aula 15, veremos aspectos de consciência e cognição. Tentaremos explicar como nós mesmos nos vemos e como tomamos decisões e praticamos atos conscientes. Veremos o que, efetivamente, faz do ser humano um animal diferenciado.

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SITES RECOMENDADOS

BARROS, Daniela Martí. Memória. Disponível em: <http://www.comciencia.br/ reportagens/memoria/15.shtml>. Acesso em: 28 em 2005.

PAVLOV, Ivan. Classical conditioning. Disponível em: <http://mentalhelp.net/ psyhelp/chap4/chap4d.htm>. Acesso em: 8 abr. 2005.

GULLO, Carla; CARUSO, Marina. A construção da memória: pesquisas revelam como se formam as recordações e que é preciso exercitar o cérebro para mantê-lo afiado. Disponível em: <http://www.terra.com.br/istoe/ciencia/1999/10/16/000.htm>. Acesso em: 28 mar. 2005.

IZQUIERDO, Iván. Perda de memória: quem não vai passar por isso? Disponível em: <http://www.comciencia.br/reportagens/memoria/07.shtml>. Acesso em: 28 mar. 2005.

KENTRIDGE, R.W. Operant conditioning and Behaviorism: an historical. Disponível em: <http://www.biozentrum.uni-wuerzburg.de/genetics/behavior/learning/ behaviorism.html>. Acesso em: 28 mar. 2005.

MEDEIROS, Sérgio. O século da psicanálise. Disponível em: <http:// cienciahoje.uol.com.br/materia/resources/files/chmais/pass/ch159/memoria.pdf

MELLO, Carlos Fernando de; RUBIN, Maribel Antonello. Mecanismos bioquímicos de memória. Disponível em: <http://www.comciencia.br/reportagens/memoria/ 17.shtml>. Acesso em: 28 mar. 2005.

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