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Segundo Mortimer & Scott (2002), a influência da psicologia sócio-histórica ou sócio- cultural nas investigações em Educação em Ciências resultou no desenvolvimento gradual de um interesse sobre o processo de construção de significados e negociação de sentidos nas salas de aula de Ciências. Entre os artigos que se enquadram nesse campo de interesse e aos quais nós tivemos acesso por meio dos procedimentos de busca bibliográfica apresentados na seção 2.1 deste capítulo, nós dedicamos especial atenção àqueles voltados ao entendimento do papel de diferentes modos semióticos nos processos de comunicação e compartilhamento de significados no plano social das salas de aula de Ciências.

Tendo em vista nossa decisão de aderir à Teoria Multimodal da Semiótica Social, que será apresentada no 3º capítulo desta tese, nós priorizamos na revisão trabalhos que adotassem esse referencial ou que pudessem ser reinterpretados a partir dele. Dentre os trabalhos reunidos na revisão de literatura apresentada neste segundo capítulo da tese e que podem ser caracterizados dessa maneira, podemos citar os de Piccinini & Martins (2004), Márquez, Izquierdo & Espinet, (2006), Pozzer-Ardenghi et al. (2007), Barbosa et al. (2009), Padilha & Carvalho (2011), Tang (2013), Souza et al. (2014), Mortimer et al. (2014), Pereira et al. (2015), Moro et al. (2015) e Zhang (2016). A premissa da maioria desses trabalhos é a de que linguagem verbal não é o único recurso de expressão que deve ser considerado nos estudos dos processos de comunicação que medeiam o ensino e a aprendizagem das Ciências. Há, portanto, um consenso de que professores e estudantes interagem por meio de diversos modos de comunicação incluindo gestos, movimentos do corpo, imagens, manipulação de objetos, dentre outros.

O trabalho de Piccinini & Martins (2004) foi um dos primeiros na literatura nacional a abordar aspectos da comunicação multimodal nas aulas de Ciências. Nele,as autoras fazem uma análise das interações discursivas em eventos de comunicação multimodal em uma sala de aula de Ciências. Os resultados dessa pesquisa mostram que ações, gestos e linguagem verbal foram mobilizados em contextos específicos, valorizados pelos interlocutores e tornados legítimos

45 para efeito da comunicação pretendida naquela situação social. As autoras destacaram também a sensibilidade da professora observada que, à época, tinha 15 anos de experiência, na orquestração retórica do processo de construção de explicações coletivas pelos estudantes.

Em uma direção de afastamento e não de aproximação com a pesquisa apresentada nesta tese, encontramos na revisão alguns trabalhos estruturados em torno de conceitos que exigem certo cuidado de nossa parte para serem reinterpretados a partir dos conceitos da Teoria Multimodal da Semiótica Social. Esses trabalhos abordam diversos temas da Educação em Ciências, tais como as atividades de modelagem e argumentação (PADILHA & CARVALHO, 2011; PAGANINI et al, 2014), os laboratórios de ensino (LABURÚ & SILVA, 2011b), as concepções de estudantes a respeito de conceitos científicos (SOUZA & ALMEIDA, 2002), os textos de popularização científica (PEREIRA & TERRAZZAN, 2011), o uso de representações (BICA & ROEHRS, 2015) e a alfabetização científica (KNAIN, 2006).

Os trabalhos de Laburú e colaboradores (LABURÚ & SILVA, 2011a e 2011b; ZOMPERO & LABURÚ, 2011; GOYA & LABURÚ, 2014) se enquadram entre aqueles que apenas tangenciam os conceitos mais tipicamente usados no campo dos estudos de multimodalidade estruturados em torno da Semiótica Social. Esses autores reconhecem a variedade de representações da linguagem científica e a diversidade de modos discursivos utilizados para comunicá-la e para isso utilizam os conceitos de “múltiplas representações” e “multimodalidade representacional”. O primeiro designa a prática de representar um mesmo conceito ou processo científico de diferentes maneiras. O segundo se refere aos diversos meios ou recursos perceptivos associados a diferentes formas de representação concebidas e comunicadas (LABURÚ & SILVA, 2011b, p. 724).

Há trabalhos em uma posição intermediária entre aqueles mais próximos da pesquisa que nós empreendemos, como é o caso do trabalho de Piccinini & Martins (2004) e aqueles que se distanciam mais de nossos interesses e referenciais teóricos como os de Laburú e colaboradores. Esses outros trabalhos focalizam alguns modos específicos de comunicação. Muitos trabalhos têm se dedicado a estudar, por exemplo, o papel dos gestos nas interações entre professores e estudantes nas salas de aula de Ciências (ROTH & WELZEL, 2001; KELLY et al, 2008; ROTH & TOBIN, 2010; PADILHA & CARVALHO, 2011; GIORDAN et al, 2015; PEREIRA et al, 2015; MORO et al, 2015). Outros têm-se dedicado a estudar, no contexto da Educação em Ciências, o papel de modos visuais (WILSON, 2008; GILLEN et al, 2008; PEREIRA & TERRAZZAN, 2011;POLMAN & GEBRE, 2015). Outros, ainda, dão destaque aos modos de comunicação acionais (CAPELLE & PAULA, 2013; WILSON, 2013).

Mortimer et al (2014) investigaram como duas professoras do Ensino Superior mobilizam diferentes modos semióticos (fala, gesto, desenho no quadro, projeção na tela, manipulação de modelos moleculares e proxêmica) e promovem interações entre eles na

46 construção de significados em aulas de Química Orgânica. Os autores afirmam que a articulação dos diversos modos semióticos potencializa essa construção. Reconhecem a importância das investigações sobre a forma como professores do Ensino Superior usam e articulam esses modos, a fim de entender os processos de comunicação em sala de aula para além do que tem sido feito normalmente nas pesquisas em educação, onde a ênfase, segundo os autores, recai sobre o uso da linguagem.

Como parte do mesmo programa de pesquisa, os trabalhos de Pereira et al (2015) e de Moro et al (2015) também focaram na orquestração dos gestos com outros modos de comunicação. No trabalho de Pereira et al (2015), o foco específico foi dado ao uso de gestos recorrentes em conjunto com outros modos. Os autores observaram e registraram em vídeo as aulas de uma professora de Química do Ensino Superior. Sobre as aulas nesse nível de ensino, os autores reconhecem que, em geral, os professores realizam exposições em que predominam o uso da fala e dos gestos. Mas que, nas aulas de Ciências, além das falas e dos gestos, eles utilizam outros recursos como projeções, desenhos e modelos, a fim de conferir sentido aos conteúdos que trabalham. Segundo os autores, esses recursos influenciariam a forma como os professores gesticulam e orquestram a fala e os gestos. Em suas considerações finais, Pereira et al (idem) destacam a importância da experiência da professora observada. Os autores afirmam que a experiência dela permite que ela conheça as possíveis dificuldades dos estudantes relacionadas a cada tema ensinado. Tal experiência permite que a professora faça escolhas dos modos tendo como foco essas dificuldades e a forma que julga ser a mais adequada para tornar mais claro o entendimento de um determinado conceito.

No trabalho de Moro et al (2015), os gestos foram analisados em articulação com a fala e as representações químicas escritas por uma professora. Especificamente, os autores analisaram como essas representações influenciaram a realização dos gestos por essa professora de Química. Para tanto, os autores adotaram a descrição funcional dos gestos, de Kendon (2004), por considerar que esse autor apresenta a “classificação mais completa” encontrada na literatura sobre gestos, permitindo uma análise mais aprofundada. Concordamos com Moro et al a respeito das possibilidades oferecidas por essa teoria. No entanto, nós fazemos uma breve ressalva: consideramos que a teoria funcional de Kendon (2004), que está apresentada com mais detalhes na seção 3.5 desta tese, não propõe e não se limita a um sistema de classificação dos gestos. Kendon (idem) afirma que qualquer categoria utilizada para classificar gestos é um recurso temporário utilizado localmente e dependente dos propósitos do pesquisador (p. 107). De acordo com esse autor, devemos considerar as categorias que ele propõe como relacionadas com funções desempenhadas pelos gestos na comunicação, e não como um sistema de classificação com um fim em si mesmo.

47 A nossa escolha pela teoria de Kendon (2004) para análise dos gestos ocorre a despeito da existência de outros autores que estudam os gestos como modo de comunicação dentro do escopo da Semiótica Social que faz parte do nosso referencial teórico-metodológico. Há trechos específicos nos trabalhos desse autor que apoiam a nossa escolha em usar sua teoria juntamente com a Semiótica Social8. Assim, por exemplo, Kendon (1985) define os gestos como formas

silenciosas de mover partes do corpo no espaço-tempo. Por causa dessa característica dos gestos, a percepção fisiológica deles não compete com a percepção da fala. Na perspectiva da Semiótica Social, isto significa dizer que os meios usados pelos modos verbais e pelos gestuais são diferentes e não compete um com o outro quando usados simultaneamente em um ato de comunicação. Em outro estudo, Kendon (1997, p. 115) afirma que a pesquisa precisa nos ajudar a entender melhor como os vários recursos de expressão são articulados uns com os outros. Nos termos da Semiótica Social, isto é equivalente a dizer que é importante compreender como enunciadores orquestram vários modos de comunicação nos atos de comunicação. No capítulo 3 nós apresentamos os principais conceitos da sua teoria que fundamentam a nossa análise.

Retomando o trabalho de Moro et al (2015), vimos que esses autores citam um estudo realizado com professores universitários que mostrou que quanto mais expressivos são os professores, mais gestos e expressões faciais eles realizam. O trabalho de Barbosa et al (2009) também investigou aspectos relacionados à expressividade de professores do Ensino Superior, analisando elementos relacionados à expressividade verbal, como a acústica e os padrões de fluência da fala, e à expressividade não verbal, como a ocorrência de gestos e as expressões faciais. Nessa análise, os autores destacaram a influência das emoções tanto na fluência da fala quanto nos parâmetros não verbais analisados.

Entre outros trabalhos dedicados a analisar o papel desempenhado pelos gestos no plano social das salas de aula de Ciências, destacamos ainda o de Giordan et al(2015), cujo objetivo era o de discutir o uso de representações estruturais no ensino de Química por meio da relação entre gestos e determinadas operações epistêmicas (definição, descrição, descrição molecular, generalização, explicação, exemplificação e comparação). Giordan et al (2015) analisaram episódios de ensino, abordaram a teoria de Kendon (2004), mas adotaram como referencial para análise as categorias gestuais de McNeill (2005). Percebemos que a comparação, compreendida como uma operação epistêmica no trabalho de Giordan et al, não implica necessariamente em analogias. A respeito dessa operação epistêmica, os autores não conseguiram estabelecer qualquer relação entre os gestos dos professores e o estabelecimento de comparações. No entanto, nas discussões de seus resultados de pesquisa, os autores apresentam a combinação entre categorias gestuais e operações epistêmicas como uma metodologia capaz de mapear

8CAPPELLE, V.; PAULA, H. F. Gestures, actions and words in a Biology Classroom. Belo Horizonte, 2015. 26 p.

48 processos cognitivos em sala de aula. Consideram também que essa combinação pode promover reflexões sobre como os significados são construídos nas salas de aula de Ciências.

De modo geral, nos trabalhos encontrados em nossa revisão sobre os múltiplos modos de comunicação envolvidos nos processos de construção e compartilhamento de significados na Educação em Ciências, não encontramos nenhum que tivesse abordado o uso de analogias sob essa perspectiva. Ou seja, como já havíamos indicado no primeiro capítulo desta tese, as maneiras pelas quais professores de Ciências constroem analogias em sala de aula e o uso de múltiplos modos de comunicação que eles utilizam com essa finalidade parece não terem sido investigadas até o presente momento.