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Em 1958, Arlete Cerqueira Lima, jovem professora assistente voluntária da FF, fora expulsa do gabinete de Edgard Santos, reitor da UBa por causa do seu atrevimento. Retornando de uma viagem de estudos, durante a qual tomara conhecimento do direcionamento dado à esta ciência em São Paulo e no Rio de Janeiro, disse-lhe que a matemática na Bahia estava atrasada e que, por isso, pedira ao diretor científico do CNPq bolsas para as demais professoras assistentes, embora pretendesse também fundar um centro de estudos para desenvolver a matemática na Bahia. Aborrecido com a sua impertinência, Edgard Santos interrompeu a audiência e expulsou-a do recinto. Entretanto, ainda em 1958, ele próprio reconsiderou sua atitude, reconheceu-lhe os méritos e convidou-a para lecionar matemática na recém-inaugurada Escola de Geologia (EG). Dois anos depois, delegou-lhe a incumbência de articular a fundação de um instituto de matemática. O que o fizera mudar de idéia assim dessa forma?

Edgard do Rego Santos nasceu em Salvador em 1894, filho de uma família aristocrática baiana. Foi sobrinho-neto do senador estadual Araújo Santos, sobrinho de Pedro Joaquim dos Santos, magistrado do Supremo Tribunal Federal, filho do bacharel João Pedro dos Santos, bem sucedido político da Primeira República, que foi chefe da polícia do governo Severino Vieira (1900-1904), secretário da fazenda do governo José Marcelino (1904-1908) e deputado federal na legislatura iniciada em 1906. Durante o predomínio da oligarquia seabrista, João Pedro dos Santos foi afastado dos cargos públicos e políticos, mas foi reeleito deputado federal em 1924, quando J. J. Seabra perdeu o poder estadual para as oligarquias calmonista e mangabeirista, cumprindo mandatos sucessivos até o golpe de 1930.358

Com essas referências familiares, Edgard Santos viveu toda sua juventude na capital baiana, acompanhando de perto as acirradas disputas políticas dos grupos oligárquicos ao longo da Primeira República. Depois de formado pela FAMED em 1917, passou quatro anos em São Paulo, onde trabalhou sob orientação do seu tio, o cirurgião Antônio Luiz do Rego. Casou-se com Carmem Figueira em 1922 e seguiu para a Europa, onde permaneceu

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até o final de 1923, quando retornou a Salvador, onde fixou residência, abriu um consultório e iniciou sua carreira de cirurgião. 359

Esse foi um período de intensa agitação política na Bahia. Em 1922, a eleição de Arthur Bernardes para Presidente da República e a ascensão de Miguel Calmon ao Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio marcaram o início da queda de J. J. Seabra no âmbito estadual, que se confirmou com a eleição para governador no final de 1923, da qual saiu vencedor Francisco Marques de Góes Calmon, empossado em meados de 1924360. Esse ano marcou também a retomada da carreira política de João Pedro dos Santos

que permaneceu ocupando uma cadeira no Legislativo Federal até 1930.

Aproximadamente um ano depois, Edgard Santos teve o seu primeiro contato direto e pessoal com o jogo da política oligárquica na Bahia. Em agosto de 1925, foi dispensado doze dias depois da sua primeira nomeação interina para catedrático da FAMED, devido a manobras dos seus adversários. Nova nomeação interina ocorreu em março de 1926, em processo que envolveu o ministro da justiça. Finalmente, o concurso que o efetivou na cátedra de cirurgia ocorreu em 1927, numa disputa em que aliados e adversários defenderam e atacaram a sua candidatura.361

Quatro anos mais tarde, em 1932, João Pedro dos Santos e Edgard Santos voltaram a envolver-se diretamente no jogo político. João Pedro foi um dos poucos políticos da Primeira República a aderir ao interventor Juracy Magalhães, sendo nomeado secretário do interior e da justiça362. Já Edgard Santos foi nomeado diretor da assistência pública de

saúde, o serviço estadual de pronto-socorro da capital. Em 1936, ainda ocupava esse cargo e dirigia a construção do novo hospital de pronto-socorro, quando foi nomeado por Getúlio Vargas para a diretoria da FAMED.363

Dessa forma, Edgard Santos conheceu desde cedo e bem de perto as regras do jogo político da época, no qual dominavam os grupos oligárquicos, que ocupavam os espaços públicos e dividiam seus territórios em zonas de influência, no qual as decisões sempre

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Essas lutas políticas repercutiram tanto na sua formação que, em 1912, por ocasião do bombardeio federal à capital baiana, resolveu não seguir a mesma carreira do pai e optou por ingressar na FAMED. Idem, p. 14 e 26.

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TAVARES, Luís Henrique D. História da Bahia; SAMPAIO, Consuelo N. Partidos políticos da Bahia na Primeira

República; PANG, Eul-Soo. Coronelismo e oligarquias. 361

SANTOS, Roberto F. Vidas paralelas, p. 27-29.

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Ele teve uma atuação importante na Constituinte Estadual de 1934, quando elaborou o anteprojeto do governo que serviu de base ao trabalho constituinte. TAVARES, Luís Henrique D. História da Bahia, p. 394 e 399; SAMPAIO, Consuelo N. Poder & representação.

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eram tomadas de acordo com os interesses dos chefes e em atenção às reivindicações dos seus correligionários. Um modelo análogo dominava também o ambiente acadêmico, onde os catedráticos exerciam o poder nas suas áreas de conhecimento, tal como os chefes oligárquicos faziam nos seus territórios políticos. Nas disputas pelas posições e pelos cargos, organizavam-se para defender os seus aliados e amigos, seus discípulos, filhos, parentes ou afilhados. Segundo Roberto Santos,

(...) Aliás, havia e ainda podem identificar-se brigas de grupos na velha Faculdade, com duração de muitas décadas. Durante longo tempo, Edgard esteve profundamente engajado nessas lutas, que passavam de pais para filhos e de mestres para discípulos e geraram número infinito de anedotas. Eram parte integrante da vida da Bahia, tal a importância da Faculdade de Medicina na nossa comunidade. Com o passar do tempo meu pai foi se envolvendo com problemas outros, referentes à Universidade em geral e à política do ensino superior no Brasil. Os colegas que o viam distanciar-se da estreiteza das lutas da sua escola de origem, procuravam atingi-lo, diretamente ou instigando os estudantes, na expectativa de perturbar-lhe a carreira de grandes realizações e crescente prestígio.364

Edgard Santos enfrentou com sucesso esse tipo de relação de poder ao longo de toda sua carreira, tendo ocupado por vinte e cinco anos ininterruptos dois dos principais cargos federais na Bahia, primeiro como diretor da FAMED, de 1936 até 1946, depois como reitor fundador da UBa, de 1946 até 1961, num período muito conturbado, de grandes oscilações nas esferas políticas federal e local. Portanto, esse foi um jogo que Edgard Santos soube jogar, aliás, mais do que isso, ele foi um dos melhores nesse jogo.