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A história da FF é formada principalmente por depoimentos, discursos e crônicas de ex-alunos ou ex-professores, pronunciados em ocasiões solenes ou publicados em revistas ou jornais em ocasiões comemorativas. Encontrei apenas um único trabalho conduzido com certos cuidados metodológicos e com certas pretensões teóricas e acadêmicas, a pesquisa sobre relações de gênero na história da FF, coordenada pela professora Elizete Passos, do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher da Universidade Federal da Bahia, que resultou na publicação do livro Palcos e Platéias230. Toda essa história, seja

laudatória e comemorativa ou não, destaca unanimemente a contribuição de Isaías Alves de Almeida no processo de fundação, implantação e desenvolvimento da FF, sendo seu principal líder e diretor de 1941 a 1958, quando se aposentou pela compulsória231. Tomo

como exemplo as declarações de Jorge Calmon, referindo-se a Isaías Alves:

(...) A criação da Faculdade fora idéia sua, seus os esforços para concretizar a iniciativa, sua a maior parte do complexo e demorado trabalho desenvolvido até o momento em que a Faculdade pode começar (...)

Esta é uma justiça que nunca é demais fazer. A influência que o surgimento da Faculdade de Filosofia veio a ter no ensino superior, na Bahia, com a conseqüente fundação da Universidade, e os serviços positivos que tem prestado, nestes 35 anos de existência, devem-se primordialmente, àquele educador, que fez a Faculdade de Filosofia a sua grande realização.232

O fato de todas essas evidências documentais disponíveis, fontes primárias e secundárias, oficiais e não oficiais, escritas e orais, apontarem para a liderança inconteste de Isaías Alves ao longo de quase vinte anos da história da FF, não implica que seja essa uma obra de um único autor, desvinculada dos interesses dos grupos sociais que atuavam na sociedade baiana daquele período. Por exemplo, a presença de alguns catedráticos fundadores da FF na lista dos mais proeminentes integrantes do movimento autonomista baiano, que teve destacada atuação política ao longo das décadas de 30 e 40, ainda precisa ser cuidadosamente investigada, para que se possa analisar as possíveis contribuições desse movimento para a fundação da FF.

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PASSOS, Elizete Silva. Palco e platéias: as representações de gênero na Faculdade de Filosofia.

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Isaías Alves foi diretor da FF desde a sua fundação em 1941 até 04/1958, quando assumiu interinamente Francisco Peixoto de Magalhães Neto, que permaneceu nessa condição até 07/1960. Aristides da Silva Gomes, titular da primeira cadeira de geometria, assumiu interinamente em 08/1960, foi efetivado um ano após e permaneceu no cargo até 1964, quando foi substituído por Thales de Azevedo, que dirigiu a FF até 1967.

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Paulo Santos Silva233 analisou recentemente as relações existentes entre as lutas

políticas da Concentração autonomista da Bahia e as narrativas produzido por um grupo de historiadores baianos no período demarcado pelo golpe de 1930 e pelas eleições de 1947. Segundo ele a recuperação da autonomia política baiana transformou-se na bandeira que reuniu diferentes facções políticas locais na oposição ao governo ditatorial de Getúlio Vargas. De acordo com o autor, a historiografia produzida na Bahia nesse período construiu uma imagem do passado que respaldou o discurso reivindicatório autonomista, fazendo a apologia das tradições baianas.

Ora, alguns proeminentes integrantes do movimento autonomista foram também catedráticos fundadores da FF, dentre os quais os principais historiadores analisados por Paulo Silva: Aloísio de Carvalho Filho (história da Bahia); Antônio Balbino de Carvalho, (economia política e história das doutrinas econômicas); Edith Mendes da Gama e Abreu, (didática geral e especial); Francisco Peixoto de Magalhães Neto (biologia geral), José Wanderley de Araújo Pinho (história do Brasil) e Luiz Viana Filho (história do Brasil) 234.

Mais do que isso, existem também expressivos elementos comuns no âmbito das idéias, uma significativa interseção entre certos princípios fundamentais defendidas por Isaías Alves e certas concepções desses intelectuais autonomistas, sobre os quais terei oportunidade de me referir posteriormente. Tanto essa presença física, quanto essa interseção nas idéias, podem ser considerados como indícios de uma possível relação mais forte entre o movimento autonomista baiano e a FF, embora isso não passe por enquanto de uma conjectura, que ainda precisa ser objeto de uma pesquisa específica.

Portanto, sem pretender fazer a consagração de Isaías Alves na história da FF, sem pretender fazer a apologia das suas idéias, enfatizarei nos parágrafos seguintes a sua trajetória e as suas concepções com o objetivo de destacar algumas especificidades do processo de implantação da FF, decorrentes de certas opções que foram feitas no seu caso, que a diferenciaram de outras faculdades congêneres, notadamente da FFCL e da FNFi, e que foram cruciais para a história da matemática que estou narrando nesse trabalho. Embora, até agora, essas opções sejam atribuídas sobretudo à influência das concepções políticas e educacionais do seu principal líder e fundador, suspeito que, mais do que isso,

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SILVA, Paulo Santos. Âncoras de tradição: luta política, intelectuais e construção do discurso histórico na Bahia

(1930-1949). 234

ARQUIVOS DA UNIVERSIDADE DA BAHIA (FACULDADE DE FILOSOFIA), v. I, p. 259-260; v. II, p. 166- 167.

estivessem fortemente sintonizadas com aquelas reivindicações tradicionalistas, patrióticas e nacionalistas, do movimento autonomista baiano.

Isaías Alves de Almeida (1888-1968) [Anexo: Catedráticos da Faculdade de Filosofia] começou a interessar-se pelos problemas da educação brasileira quando ainda era muito jovem. Em 1909, um ano antes da sua formatura pela FLDB, apresentou uma tese de setenta páginas ao I Congresso Brasileiro de Estudantes, na qual defendeu a criação das universidades no Brasil para que cumprissem a função de centros de formação do pensamento nacional e de elaboração do planos para o desenvolvimento do país235.

O objetivo principal de Isaías Alves era a transformação da educação, que considerava uma condição necessária para preparar os cidadãos para a defesa da cultura e das riquezas naturais brasileiras. A missão das universidades, de acordo com ele, seria dar unidade à educação, caracterizando-a de acordo com certas atitudes morais e certos compromissos patrióticos236. Nesse seu projeto, a formação especializada de professores já

adquiria um papel fundamental , como salientou Thales de Azevedo:

Foi Isaías, já reparou Raul Bittencourt, o primeiro no Brasil a programar e a propor a elevação a nível universitário da preparação do professorado e da formação dos especialistas em humanidades (...) Desde 1909, ao traçar os lineamentos fundamentais da futura Universidade brasileira, ainda estudante de Direito, havia projetado o que em 1924 propugnaria sob o título de Faculdade de Educação e que veio a corresponder à Faculdade de Filosofia no plano desenvolvido pela experiência e pela legislação da década de 30 (...)237

Nacionalista desde aqueles dias, sem a estreiteza e os preconceitos da xenofobia, queria, por isto mesmo, uma Universidade moldada às necessidades peculiares da nação embora organizada com o espírito tradicional dos antigos colégios e ligas de mestres e alunos da Europa medieval. Informado dos adiantamentos do ensino e da pesquisa universitária na Europa, batia-se por uma Universidade realmente brasileira, "autônoma em relação à política", situada no ápice da estrutura educacional do país para levar a sua influência às escolas dos graus inferiores, inclusive a elementar, que não fosse um simples agregado ou unicamente uma federação administrativa de escolas(...)238

Isaías Alves tornou a defender essas idéias numa série de oito artigos intitulados As universidades, que foram publicados no Diário de Notícias de Salvador, ainda em 1909 239.

Nesses artigos, voltou a criticar o regime das escolas isoladas e a propor a criação das

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AZEVEDO, Thales de. Quarenta e cinco anos da Universidade da Bahia.

236

PASSOS, Elizete Silva. Palco e platéias

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AZEVEDO, Thales de. A Faculdade de Filosofia da Bahia ao seu fundador.

238

AZEVEDO, Thales de. Personalidade e obra de Isaías Alves.

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universidades como a única alternativa viável para a solução dos problemas educacionais que ele identificava em todos os níveis do sistema brasileiro de ensino.

Enquanto suas idéias ainda não eram bem assimiladas na Bahia daquele tempo, Isaías Alves continuava construindo a sua trajetória teórica e prática de educador. Retomou a tese da função orientadora da universidade em 1924, quando analisou a obra educacional de Abílio César Borges, o Barão de Macaúbas, e protestou contra o regime da escolas superiores separadas e das faculdades profissionais, que ele julgava inadequado para a formação dos professores, técnicos, intelectuais, pensadores e investigadores, os quais considerava necessários para a realização das tarefas diversificadas e complexas reclamadas pela nação em crescimento. 240

Mas, a oposição contra as suas idéias ainda era muito forte. Dentre os debates sobre o assunto travadas ao longo dos anos 20, além daqueles realizados na Congregação da EP, que examinou o projeto do governador Vital Soares (1928-1930) para criação de uma universidade na Bahia 241, Thales de Azevedo citou outro debate, nas páginas do jornal A

Tarde, envolvendo catedráticos da FAMED, que expressaram suas dúvidas sobre se o ensino superior deveria abrir-se à pesquisa ou apenas transmitir o conhecimento adquirido em meios considerados mais adiantados. Segundo ele, aqueles catedráticos não concebiam uma universidade como lugar do ensino atualizado constantemente pelos resultados das pesquisas inovadoras nos campos das ciências e das humanidades, muitos menos os altos escalões ministeriais, que implantaram reformas para o ensino superior cujos objetivos eram o aperfeiçoamento das funções e do papel das faculdades isoladas comprometidas com a formação dos quadros profissionais e da alta burocracia242. Isaías

Alves, por sua vez, perfilava-se ao lado dos pioneiros que clamavam por transformações na educação brasileira243. Quando a Associação Brasileira de Educação reuniu intelectuais

proeminentes para debater sobre o problema universitário brasileiro em 1929, ele fez parte da delegação baiana e apresentou suas concepções sobre as funções precípuas das faculdades de filosofia no ensino superior brasileiro.244

240

Isaías Alves apud AZEVEDO, Thales de. Quarenta e cinco anos da Universidade da Bahia.

241

Veja p. 56.

242

AZEVEDO, Thales de. Quarenta e cinco anos da Universidade da Bahia.

243

ALVES, José Jerônimo de Alencar. Propostas de mudanças na ciência e educação. In: ______. A Ciência: os

projetos implantados em seu nome, Brasil (1920-1950); CUNHA, Luiz Antônio. A universidade temporã; PAIM,

Antônio. A busca de um modelo universitário.

244

Mais tarde, em 1931, fez o curso de especialização do Teacher's College da Universidade de Columbia, quando teve a oportunidade de estudar a filosofia da educação de John Dewey, sobre a qual construiu uma interpretação original e pessoal. Com efeito, Anísio Teixeira (1900-1971) também realizara essa mesma especialização em 1929, mas as viagens aos EUA e o contato com a obra daquele educador e filósofo americano tiveram conseqüências bastante distintas para ambos, que se refletiram expressivamente nas opções pessoais, nas trajetórias profissionais e nas contribuições de cada um para a educação e a cultura nacional. Como relata Thales de Azevedo, que teve convivência pessoal e profissional intensa com ambos, enquanto Anísio Teixeira afastou-se do credo católico, ocorreu o oposto com Isaías Alves; enquanto Anísio Teixeira tornou-se um grande admirador da liberdade e da democracia americana, a adesão de Isaías Alves ao Integralismo acentuou ainda mais sua crença na autoridade e na disciplina como fundamentos para a construção de um espírito nacionalista e patriótico:

Deram muito destaque ultimamente ao Anísio. Ele teve uma fase católica muito intensa. Quando foi aos Estados Unidos pela primeira vez, voltou com umas idéias diferentes em matéria espiritual. O que Isaías Alves recebeu do [John] Dewey como inspiração para o seu espiritualismo, Anísio traduziu como o oposto. Isaías revela, em trabalhos dele, que também ouviu muito o Dewey, mas não se deixou levar na direção que Anísio foi.245

Adiante enfocarei as diferentes opções adotadas por Isaías Alves e por Anísio Teixeira por ocasião da implantação das respectivas faculdades de filosofia na Bahia e no Rio de Janeiro. Certamente, essas diferentes opções foram decorrentes das diferentes visões que ambos tinham acerca dos problemas políticos e educacionais brasileiros, construídas no decorrer das respectivas trajetórias profissionais, incluindo-se aí as diferentes formas pelas quais eles assimilaram as contribuições oriundas do intercâmbio mantido com a cultura americana.

Retornando para o Brasil, Isaías Alves ocupou importantes cargos públicos estaduais e federais. Em Salvador, foi diretor geral da instrução na Bahia em 1931 e deu início a sua longa participação como membro efetivo do Conselho Nacional de Educação (de 1931 a 1958). Ainda em 1931, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde foi subdiretor técnico da instrução pública do Distrito Federal; chefe do serviço de testes e escalas do Distrito Federal no biênio 1932-1933 e assistente técnico do Departamento Nacional de Educação

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de 1934 até 1938. Voltou para a Bahia em 1938, para ser nomeado secretário de educação e saúde do Estado pelo seu irmão, o interventor federal Landulpho Alves de Almeida, cargo que exerceu até 1942246.

Desse período, quero destacar aqui alguns importantes acontecimentos da vida de Isaías Alves. Quando, em 1931, ele deixou o cargo de diretor geral da instrução pública na Bahia para ser subdiretor técnico da instrução pública do Distrito Federal, quem acabara de ser nomeado diretor geral da instrução do Distrito Federal? Anísio Teixeira. Portanto, é muito provável que Isaías Alves tenha ido para o Rio de Janeiro a convite de Anísio Teixeira, para integrar a sua equipe de trabalho. Entretanto − essa é uma suposição que precisa ser confirmada − essa viagem marcou também o início do irreconciliável afastamento profissional e pessoal entre ambos. Seria muito pouco provável que os dois ocupassem aqueles cargos simultaneamente havendo algum desentendimento grave entre ambos. Lá, Isaías Alves pode acompanhar de perto toda a intensa movimentação em torno das questões educacionais e políticas da época que despertavam o seu interesse, a exemplo da fundação das universidades do Distrito Federal e de São Paulo, e da formação da Ação Integralista Brasileira, à qual ele aderiu, tendo inclusive tomado parte da sua Câmara dos 40 em 1936. A trajetória de Anísio Teixeira teve um sentido oposto

Por último, é bom notar que Isaías e Landulpho Alves de Almeida ocupavam altos cargos públicos no governo ditatorial do Estado Novo, quando Getúlio Vargas nomeou o irmão mais novo para a interventoria federal na Bahia, em março de 1938. Ambos eram altos funcionários do Estado Novo, Isaías, já disse, assistente técnico do Departamento Nacional de Educação e membro efetivo do Conselho Nacional de Educação, enquanto Landulpho era diretor do Departamento de Indústria Animal do Ministério da Agricultura, já que ele era engenheiro agrônomo especialista em zootecnia. Aliás, seu perfil técnico e o fato de não ter nenhuma filiação política anterior fora decisivos para a sua nomeação, enquanto que sua origem baiana e sua condição civil favoreceram a boa aceitação que sua nomeação teve junto às lideranças autonomistas baianas, a exemplo do ex-deputado autonomista Antônio Balbino de Carvalho Filho. 247

246

Landulpho Alves de Almeida foi interventor do Estado Novo na Bahia de 1938 a 1942. TAVARES, Luís Henrique Dias. História da Bahia.

247

Antônio Balbino, futuro catedrático fundador da FF [Anexo: Catedráticos da Faculdade de Filosofia], escreveu um artigo de apoio no jornal O imparcial, ressaltando que o novo interventor era baiano e civil. TAVARES, Luís Henrique Dias. História da Bahia, p. 423.