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Como procurei mostrar nas primeiras seções desse capítulo, a formação e a ascensão acadêmica da segunda geração de catedráticos de matemática da EP ocorreu num ambiente dominado pelas práticas usuais e comuns aos grupos oligárquicos que lutaram pelo domínio político na sociedade baiana durante a Primeira República, cujos chefes ou altos representantes também atuaram como professores catedráticos da própria EP, sendo também seus mais proeminentes líderes. Mais do que isso, procurei mostrar também como os catedráticos de matemática, seja os da primeira geração, seja os da segunda geração, exceto, possivelmente, Pedro Tavares, participaram ativa e diretamente daquelas lutas políticas, cada um deles ocupando uma posição própria na arena das disputas, ora numa situação de retaguarda administrativa ou de segundo escalão técnico, ora numa situação de protagonista de primeira ordem, como foi o caso de Leopoldo Amaral em 1930-1931.

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CASTRO, F. M. de Oliveira. A Matemática no Brasil; NACHBIN, Leopoldo. Aspectos do desenvolvimento recente da Matemática no Brasil.

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Daqui por diante assumirei a hipótese segundo a qual essas práticas e lutas oligárquicas, não se restringiram apenas ao âmbito político ou administrativo−financeiro da EP, mas também se estenderam para o seu âmbito intelectual. Digo hipótese porque não estou respaldado pela realização de uma pesquisa específica sobre a vida intelectual da EP, mas estou fazendo uma extrapolação dos resultados que A. L. Machado Neto obteve no seu trabalho sobre a intelectualidade baiana da Primeira República169, no qual

descreveu, caracterizou e analisou os grupos literários que considerou mais proeminentes na composição daquilo que para ele foi o agitado ambiente cultural baiano daquele período.

Numa parte do seu trabalho, Machado Neto apresentou algumas características comuns aos intelectuais que compunham esses grupos. Na grande maioria dos casos, foram escritores que viveram a maior parte do tempo na Bahia, onde também produziram e publicaram seus trabalhos. Geralmente, essa produção não se caracterizava pela especialização, mas pelo pluralidade dos temas e das áreas de interesse: "Os raros monógrafos eram, geralmente, médicos, profissão que era a única cujos representantes se costumava então rotular de cientistas"170. A variedade também caracterizava as suas ocupações profissionais e diletantes. Eles atuavam normalmente e, muitas vezes, simultaneamente no serviço público burocrático, no magistério público ou privado, no jornalismo e na política. O magistério superior, principalmente a FAMED, mas também a FLDB e a EP, eram considerados na época como o ápice da trajetória social de um intelectual.

Numa outra parte, Machado Neto descreveu as reuniões culturais − nas quais eram feitas conferências, discursos ou récitas − que ocupavam o cotidiano dos intelectuais e que sempre contavam com um público cativo. Dentre os espaços culturais, destacou as cátedras escolares e as sessões do júri como instituições de grande prestígio, nas quais predominava a grandiloqüência e a teatralidade dos oradores, mesmo quando eram tratados assuntos científicos. Os textos escritos, os artigos publicados nos jornais ou nas revistas, já eram adrede preparados no estilo adequado para que fossem comunicados em voz alta durante as reuniões periódicas ou extraordinárias que realizavam. Segundo ele, a valorização superlativa da eloqüência, da extroversão e da teatralidade, fosse no texto jornalístico impresso, fosse principalmente nas orações públicas ou privadas, fez dos

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MACHADO NETO, Antônio Luiz. A Bahia intelectual (1900-1930).

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grandes oradores, os jornalistas e professores, as grandes vedetes da vida intelectual baiana no período:

O padrão vigente era que o professor fosse também um orador. E não apenas que fosse capaz de exercer a oratória em ocasiões propícias, no fórum, no parlamento ou na tribuna popular ou cívica, mas na própria atividade magisterial, onde as aulas−conferências, também chamadas preleções, deviam mais encantar pela forma eloqüente do que pelo conteúdo científico ou singeleza didática. Ficaram famosas entre nós as aulas de brilhantes (era o termo) professores da Faculdade de Medicina, que eram esperadas e aplaudidas pelos alunos como exemplares de peças oratórias.

(...)

As figuras mais introvertidas de poetas intimistas e caladas (...) ou, mesmo, de cientistas antes ocupados com a investigação solitária do que com a oratória das aulas e discursos igualmente grandiloqüentes (...) somente logravam vigência em círculos limitados de iniciados e, por vezes, nem isso.171

Conseqüentemente, avaliou Machado Neto, o prestígio dos intelectuais era erigido muito mais sobre as aparências do que sobre o conteúdo substancial das suas idéias ou da sua produção literária. Ele acrescentou que, muitas vezes, o prestígio do intelectual crescia na mesma proporção da virulência dos seus ataques a outros intelectuais, na mesma medida com a qual enfeitava seus discursos e artigos com citações eruditas, nem sempre colhidas nas melhores ou mais diretas fontes, ou como testemunhou um dos principais líderes intelectuais da época: "Para se ter talento, pois, não é preciso senão apregoar-se como tal, ou fazer que os outros o pregoem. Para isto aí vai vivendo a comparsaria do elogio recíproco"172. Esse depoimento remete à questão da existência e da atuação dos grupos de intelectuais que, segundo o autor, caracterizavam-se essencialmente pelo elogio, pelo protecionismo e pelo favorecimento mútuo nas relações entre os seus próprios integrantes e pelo comportamento aguerrido na relação com os integrantes dos outros grupos. Por conta dessas características dos grupos, a polêmica era um dos aspectos mais marcantes da vida intelectual baiana no período, sempre marcadas por ataques virulentos aos adversários. Das palavras passava-se geralmente aos fatos, dos ataques verbais aos atos concretos de perseguição, que podiam ocorrer em qualquer uma das instâncias sociais onde tivesse efeito o poder dos contendores, como foram por exemplo os numerosos e conhecidos casos de perseguição praticados por professores contra alunos, fossem eles próprios seus desafetos ou ligados a desafetos seus. Por outro lado, era comum a proteção ou o tráfico de influências em favor dos protegidos ou correligionários:

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Idem, p. 293-294.

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Quando no exercício do poder político, os intelectuais não perdiam a chance de "colocar" os seus confrades, ora atuando nos concursos com a simpatia oficial, ora nomeando-os diretamente para cargos vagos.

(...)

Nos concursos, especialmente da Faculdade de Medicina mas também no Ginásio da Bahia e da Escola Normal, formavam-se os partidos dos candidatos, cada qual "mexendo os pauzinhos" em favor de seu preferido. Congregações e governo tinham, então uma forte influência. Vários desses concursos ficaram célebres (...)173

Alguns aspectos fundamentais dessa caracterização do ambiente intelectual − e acadêmico − baiano na Primeira República foi confirmada por Roberto Santos. Segundo ele, as aulas magistrais predominavam na FAMED, nas quais os professores repetiam textos de livros consagrados e os alunos ouviam passivamente. Esses professores, lembrou ele, primavam pela capacidade de expressão, a qual era o critério mais valorizado no julgamento dos concursos para a atividade docente. Resgatando a memória da nomeação para catedrático de Edgard Santos, seu pai, ocorrida em 1925, destacou as complicações da política acadêmica da época, quando os grupos disputavam entre si para tentar fazer valer seus interesses e obter posições para seus correligionários.174

Embora a pesquisa de Machado Neto tivesse como objeto certos grupos literários que não podem ser identificados estritamente como grupos científicos ou de cientistas, e embora essa pesquisa abrangesse um universo bem mais amplo do que a EP e a atividade intelectual dos cientistas − médicos e engenheiros − baianos da época, essa instituição e seus professores não estiveram excluídos do seu universo de pesquisa, pois, como ele próprio considerou, a EP também constituiu-se numa das "vigências−instituições" do primeiro período republicano, ocupando uma posição equivalente à da FLDB, mas abaixo da FAMED, na hierarquia de prestígio. Além disso, vários dos intelectuais cujos depoimentos ou cujas biografias foram analisadas na sua pesquisa foram engenheiros e professores, como foi o caso de Arlindo Fragoso, pois, como o próprio autor destacou, o padrão da época foram os intelectuais polígrafos, que se dedicavam a vários temas, que não concentravam seus interesses numa única área ou especialidade. Todavia, mais do que essa inclusão da EP e dos engenheiros no universo da pesquisa, considerei legítimo extrapolar alguns dos seus resultados e considerá-los como uma boa caracterização hipotética acerca das atividades intelectuais da EP, porque, apesar de não ter realizado

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MACHADO NETO, Antônio Luiz. A Bahia intelectual (1900-1930), p. 288-289.

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uma pesquisa sistemática e aprofundada para esse caso, em nenhum momento, nas conversas, entrevistas e depoimentos, formais e informais, que mantive com ex-alunos ou ex-professores, ou mesmo nos documentos escritos obtidos nos arquivos da EP, encontrei qualquer elementos, qualquer indicador ou indício de que na EP as coisas teriam sido diferentes.

A polêmica sobre a existência de logaritmos reais para as "quantidades negativas" que envolveu Leopoldo Amaral e Elysio Lisboa é um bom exemplo de que esses resultados obtidos por Machado Neto aplicam-se bem à EP. Passarei então a analisá-la, tentando mostrar como exemplifica bem aquilo que Machado Neto caracterizou como típico da vida intelectual baiana da época.