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CAPÍTULO 2: EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA E EDUCAÇÃO INTERCULTURAL:

2.1 EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA: UTOPIAS E REALIDADES NA TRANSIÇÃO DA

Como mencionado, a Constituição Federal brasileira, que entrou em vigor em 1988, é destacada como marco transitório no que diz respeito aos direitos dos povos indígenas deste país, atribuindo-lhes algumas garantias, como: a demarcação de suas terras, a organização so- cial, a utilização de suas línguas maternas e os processos próprios de aprendizagem.

Grupioni (2002) argumenta que, ao serem reconhecidos a utilização pelos indígenas de suas línguas maternas e os seus processos próprios de aprendizagem no espaço da educação

escolar, é estabelecida a possibilidade de uma contribuição da escola indígena para o processo de afirmação étnica e cultural desses povos. Por outro lado, a escola na aldeia também pode constituir um dos principais meios de condução de assimilação e de integração.

No que se refere às garantias que refletem diretamente no seio educacional, o direito ao uso das línguas maternas e aos processos próprios de aprendizagem demandou algumas mu- danças na LDB e, consequentemente, exigiu a elaboração de outros dispositivos normativos e orientadores da educação nacional, em todas as suas esferas, no intuito de garantir e normatizar procedimentos que sustentem a educação nessa modalidade de ensino, como apontam essas normativas, e que esta seja específica, diferenciada, intercultural, bilíngue/multilíngue e comu- nitária dos povos indígenas. Como resposta às lutas e à resistência desses povos, tais direitos são reafirmados no artigo 32, parágrafo 3º, da atual LDB. No entanto,

[...] a efetivação dos projetos e práticas da educação escolar dos povos indígenas tem se re/configurado entre avanços e recuos, entre consensos e dissensos, na negação dos projetos coloniais e integracionistas e na construção dos projetos societários dos mais de 200 povos indígenas que vivem atualmente no Brasil. A construção desses projetos não é um dado pós constituição de 1988, mas, configura-se, a exemplo da conquista dos povos indígenas quando dessa constituinte, como mais um desafio na extensa e complexa pauta de luta desses povos (LOPES et al., 2017, p. 233-234).

Lopes e colaboradores (2017) apontam ainda que a educação escolar diferenciada está articulada a um amplo processo histórico, marcado pelo projeto colonial que, como consequên- cia, promove a desestruturação das organizações socioculturais e dos projetos societários dos povos indígenas neste país. Vale ressaltar que a implantação do projeto escolar para os povos indígenas brasileiros não ocorreu de modo pacífico, sem tensões e conflitos. Esse projeto teve início com as missões jesuíticas. Assim, a escola, por séculos, foi projetada e funcionou como espaço e instrumento de opressão, por meio do qual as identidades indígenas foram arrancadas, suas línguas e saberes tradicionais, negligenciados e inibidos de serem utilizados, sob a pro- messa de salvação da alma e do processo de “civilização” desses povos. E, dentre algumas das intenções explícitas e implícitas no projeto de “educação para os índios” no Brasil, estavam catequizar, civilizar, pacificar, assimilar, incorporar e abrasileirar.

Desde a “invasão” do Brasil pelos portugueses, foram criadas diversas instituições que tinham como principal atribuição a imposição de normas e formas educacionais epistemicidas. Epistemicídio é designado por Boaventura de Sousa Santos como sendo a morte de um conhe- cimento local cometida por uma ciência exterior, “alienígena” (SANTOS, 2006). Essa prática gera a subalternização dos grupos sociais cujas vivências se baseavam nos conhecimentos lo- cais. Destacamos que não há apenas a morte dos conhecimentos, mas o genocídio, a morte dos

povos. Essas instituições dizimaram ou contribuíram para a dizimação de diversos grupos so- ciais, a exemplo dos diversos grupos indígenas, suas culturas e suas línguas.

No que diz respeito às ações de cunho educacional desenvolvidas no Brasil, podemos exemplificar as realizadas pelas missões jesuíticas e a escravização de indígenas pelos Bandei- rantes, pelo Diretório dos índios, pelo Serviço de Proteção aos Índios (SPI) e pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI)23. Essas instituições promoveram a construção de um modelo edu- cacional opressor, o qual ainda tem forte relação com o modelo de educação brasileira (LOPES et al., 2017).

A partir da década de 1970 foi quando se constituiu o movimento indígena brasileiro24, firmando-se enquanto unidade política na busca da superação da opressão e de encaminhar as demandas e os projetos coletivos. Nessa década, como apresentam Lopes e colaboradores (2017), o movimento centrou esforços em torno da Constituinte que estava sendo elaborada. A Constituição promulgada no ano de 1988 abrangeu, no artigo 129, dentre as funções instituci- onais do Ministério Público, a defesa judicial dos direitos e interesses das populações indígenas. Por sua vez, o artigo 210, sobre os conteúdos mínimos fixados para o ensino fundamental, em seu 2º parágrafo assinala que “o ensino fundamental regular será ministrado em língua portu- guesa, assegurada às comunidades indígenas também a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem”.

Nos artigos 231 e 232, são expostos os direitos que garantem suas terras tradicionais, o pleno exercício das tradições e das línguas originárias, além da possibilidade de se estabelece- rem pedagogias próprias dos povos em suas escolas, entre outros direitos garantidos nesse do- cumento oficial. Os artigos 210, 215 e, inclusive, o 231 dessa Constituição são especialmente

23 Órgão indigenista oficial brasileiro. A FUNAI foi criada por meio da Lei nº 5.371, de 5 de dezembro de 1967,

como consta em sua página oficial online (http://www.funai.gov.br); vinculada ao Ministério da Justiça, é a coor- denadora e principal executora da política indigenista do Governo Federal. Sua missão institucional é proteger e promover os direitos dos povos indígenas no país.

24 Dois grandes eventos nacionais (decorrentes desse movimento) de EEI podem nos dar indícios da pauta reivin-

dicatória do movimento indígena nacional sobre a formação de professores indígenas e o ensino em suas escolas, sejam eles: o Fórum Nacional de Educação Escolar Indígena (FNEEI) e a Conferência Nacional de Educação Escolar Indígena (CONEEI). A CONEEI trata-se de um evento organizado pelo MEC em parceria com a FUNAI e os conselhos de educação (teve duas edições uma em 2012 e a outro no atual ano, 2018). O documento final da II CONEEI representa a visão e os anseios do movimento dos povos indígenas nacionais, para a consolidação da política nacional de EEI. Nessas propostas, os povos indígenas de todo o país reafirmam a luta por aprimoramento, diferenciação e autonomia. No documento, entre outros apontamentos, é proposto o fortalecimento/criação da categoria professor indígena e planos de cargos, carreiras e salários. Além disso, propõe-se a promoção de con- cursos específicos e diferenciados, de aumento salarial e outros benefícios. Sendo recomendada a formação espe- cífica e diferenciada de professores para a produção, publicação, distribuição e divulgação de materiais didáticos e paradidáticos específicos para a Educação Escolar Indígena. O FNEEI, por sua vez, é um evento nacional orga- nizado pelo movimento nacional de professores indígenas, e já ocorreram 3 edições desse evento, a saber: 2015, 2016 e 2017. A Carta Final, assim como o documento final da CONEI, desse evento trata-se de outro documento importante que expressa as demandas dos povos indígenas.

relevantes, pois podem indicar um caminho a ser refeito em relação à educação indígena, uma vez que tais artigos afirmam o direito dos povos indígenas de falar e escrever em suas línguas originárias e, portanto, de decidir o que deve ou não ser lecionado em suas escolas.

Em continuidade, a Lei 9.424/96, Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), fez referência aos direitos já estabelecidos na Constituição, demarcando alguns avanços na educação escolar diferenciada para os povos indígenas. Na lei, em seus artigos 78 e 79, são estabelecidos os objetivos e os fundamentos para o funcionamento dessa educação, especial- mente no artigo 78, como observado a seguir:

Art. 78º. O Sistema de Ensino da União, com a colaboração das agências federais de fomento à cultura e de assistência aos índios, desenvolverá programas integrados de ensino e pesquisa, para oferta de educação escolar bilíngue e intercultural aos povos indígenas, com os seguintes objetivos:

I – Proporcionar aos índios, suas comunidades e povos, a recuperação de suas memó- rias históricas; a reafirmação de suas identidades étnicas; a valorização de suas línguas e ciências;

II – Garantir aos índios, suas comunidades e povos, o acesso às informações conheci- mentos técnicos e científicos da sociedade nacional e demais sociedades indígenas e não índias.

Além disso, o Decreto 6.168/2009, com base nas deliberações da LDB e da Resolução 03/1999 do Conselho Nacional de Educação, constituído por esse Conselho, estabelece em seu artigo 2º que são objetivos da Educação Escolar Indígena:

I – Valorização das culturas dos povos indígenas e a afirmação e manutenção de sua diversidade étnica;

II – Fortalecimento das práticas socioculturais e da língua materna de cada comuni- dade;

III – Formulação e manutenção de programas de formação de pessoal especializado destinados à educação escolar nas comunidades indígenas;

IV – Desenvolvimento de currículos e programas específicos, neles incluídos os con- ceitos culturais correspondes às respectivas comunidades;

V – Elaboração e publicação sistemática de material didático específico e diferenci- ado;

VI – Afirmação das identidades étnicas e consideração dos projetos societários defi- nidos de forma autônoma por cada povo indígena.

Posteriormente, é publicado o Parecer CNE/CEB nº 14/1999, aprovado em 14 de setem- bro de 1999, que dispõe sobre as Diretrizes Curriculares Nacionais para o funcionamento das escolas indígenas, sendo publicada, também, a Resolução CEB nº 3, de 10 de novembro de

1999, na qual são fixadas as Diretrizes Nacionais para o funcionamento das escolas indígenas e dá outras providências. Em 10 de maio de 2012, é aprovado o Parecer CNE/CEB nº 13/2012, que dispõe as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Indígena. Além disso, foi aprovada e publicada, em 22 de junho de 2012, a resolução CNE/CEB nº 5/2012, que define as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Indígena na Educação Básica, de forma complementar e estabelecendo em um de seus artigos:

Art. 4º. Constituem elementos básicos para a organização, a estrutura e o funciona- mento da escola indígena:

I – A centralidade do território para o bem viver dos povos indígenas e para seus processos formativos e, portanto, a localização das escolas em terras habitadas por comunidades indígenas, ainda que se estendam por territórios de diversos Estados ou Municípios contíguos;

II – A importância das línguas indígenas e dos registros linguísticos específicos do português para o ensino ministrado nas línguas maternas das comunidades indígenas, como uma das formas de preservação da realidade sociolinguística de cada povo;

III – A organização escolar própria, nos termos detalhados nesta Resolução; IV – A exclusividade do atendimento a comunidades indígenas por parte de professo- res indígenas oriundos da respectiva comunidade.

Além desses dispositivos legais citados, que apresentam os objetivos e fundamentos da Educação Escolar Indígena diferenciada, estes são definidos em um corpo mais amplo de legis- lação específica: o Decreto 26/1991, a Portaria Interministerial 559/1991, os Pareceres CNE/CEB 14/1999 e 13/2012, a Resolução 05/2013 CNE/CEB, e outros. Nesse sentido, há de se destacar ainda a Resolução 03/1999, do Conselho Nacional de Educação, que define, no seu artigo 8º, que a docência na escola indígena deverá ser exercida prioritariamente por professores indígenas. A partir de tal orientação, é dever do Estado e das instituições formadoras a constru- ção de cursos específicos para a formação de professores indígenas, de modo a garantir a efeti- vação da educação escolar indígena diferenciada.

Nesse sentido, é importante ressaltar que foi com as leis que surgiram a partir da Cons- tituição Nacional de 1988, a partir das lutas e exigências do movimento indígena, como a LDB e o Plano Nacional de Educação (PNE), promulgado em 2001, que os direitos dos povos indí- genas a uma educação diferenciada, baseada no uso de suas línguas e seus conhecimentos e saberes milenares e na formação de professores indígenas para atuarem em suas escolas, foram apontados e normatizados. A escola tem adquirido desde então uma nova função social nas comunidades indígenas (GRUPIONI, 2002).

Assim, passando o Estado, como afirma Fleuri (2003), a ser responsável por proteger as manifestações culturais desses povos, garante-se às comunidades indígenas o acesso a uma es- cola que apresente características específicas, que conduza à valorização do conhecimento tra- dicional, ao mesmo tempo que instrumentalize esses povos para que possam enfrentar o contato com outras sociedades, mais especificamente as sociedades não indígenas.

Foi a partir das demandas e lutas do movimento indígena na busca por uma escola dife- renciada, que fosse dos indígenas e não para os indígenas, que seus diretos educacionais foram incorporados pelo Estado na forma de políticas públicas, gerando, dentre outras, uma preocu- pação com a elaboração de propostas que sejam baseadas no diálogo entre o conhecimento científico escolar e os conhecimentos desses povos indígenas (LOPES et al., 2017), possibili- tando, com isso, a manutenção de suas identidades25 e ampliando a possibilidade e o direito de atuação cidadã.

Esses dispositivos normativos que sustentam legalmente o direito a uma educação dife- renciada dos povos indígenas estruturam-se a partir de duas vertentes, as quais é imprescindível que convirjam, para que tal direito seja efetivado. A primeira vertente está relacionada ao acesso aos conhecimentos ditos “universais”. A segunda, por sua vez, aponta para a elaboração de práticas escolares e para o respeito e a organização, em um sistema, de saberes e conhecimentos tradicionais dos indígenas (GRUPIONI, 2002). Como apontam Lopes e colaboradores (2017), é dessas vertentes que emerge a tão aspirada educação diferenciada e intercultural nas escolas indígenas brasileiras. Como consequência disso,

[...] no que tange a diversidade de experiências nessa modalidade escolar, o que se observa é que esses princípios legais têm demandado, não só, normas e procedimen- tos, cunhados nas esferas estaduais e municipais, que contribuam para sua efetivação; mas também, a (re/des)construção de práticas escolares e produções acadêmicas que contribuam, dentre outros, para responder aos desafios colocados pelas distintas rea- lidades indígenas brasileiras, que buscam se consolidar no trânsito entre a lógica de produção e socialização de conhecimentos indígenas, os processos próprios de apren- dizagens, denominados pedagogias indígenas, e a lógica ocidental (LOPES et al., 2017, p. 237).

Destarte, consideramos serem fundamentais a compreensão e a apropriação do conceito de educação intercultural no contexto da modalidade Educação Escolar Indígena. Os autores citados ainda destacam ser a formação de professores indígenas uma das estratégias fundamen- tais para a efetivação desse projeto de educação na perspectiva intercultural.

25 Stuart Hall (1999) argumenta que o próprio conceito “identidade” é demasiadamente complexo, sendo pouco

desenvolvido e menos ainda compreendido na ciência social contemporânea para ser definitivamente posto à prova.

Contudo, argumentamos que compreender e mobilizar o encontro entre as diferentes matrizes de produção de conhecimentos, com suas lógicas de pensamento, no caso desta inves- tigação, com o pensamento indígena Kurâ-Bakairi e o da ciência ocidental, a nosso ver, é um imenso desafio, especialmente por necessitar romper com a lógica do pensamento colonial e, consequentemente, descolonizar os currículos.

A seguir, serão apresentados e discutidos os referenciais que norteiam a educação inter- cultural e a decolonialidade.

2.2 Educação Intercultural, decolonialidade e o ensino de Ciências Naturais em escolas