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CAPÍTULO 4: A TEMÁTICA PESCA COM O TIMBÓ: POSSIBILIDADES NO ENSINO DE

4.2 A TEMÁTICA PESCA COM O TIMBÓ NO ENSINO DE CIÊNCIAS NA EDUCAÇÃO

4.3.1 O professor como representante da cultura e a sua formação

Sobre a formação de professores indígenas, no que diz respeito aos conhecimentos tra- dicionais, a Resolução 01/2015, do Conselho Nacional de Educação36 (BRASIL, 2015), esta- belece as orientações alusivas ao funcionamento dos cursos de formação de professores indíge- nas, evidenciando a necessidade do protagonismo indígena na formulação curricular, como também da vasta participação dos representantes indígenas em todas as decisões que se referem à construção e à organização dos currículos, ao destacar “a presença constante e ativa de sábios indígenas” nesse processo. Desse modo, tal resolução reafirma a necessidade de um corpo do- cente de formadores especialistas e comprometidos com os projetos societários dos povos indí- genas, e, de forma semelhante, argumenta sobre a necessidade e estabelece a possibilidade de incluir sábios indígenas no corpo de formadores de tais cursos (LOPES et al., 2017).

Nesse sentido, como aponta Rosa (2018), no estudo sobre os projetos pedagógicos e as visões do movimento indígena acerca da formação dos professores indígenas de Ciências da região norte brasileira, as visões dos especialistas indígenas entrevistados apontaram que eles consideram o diálogo entre saberes como sendo aspecto principal da formação de professores em um ensino na perspectiva intercultural. Além disso, esses intelectuais consideram e expli- cam que esse diálogo é essencial à formação, podendo ser feito com a participação de lideranças e sábios indígenas. Segundo essa autora, esses especialistas indígenas ainda negam a presença não refletida das práticas culturais indígenas.

Essa prática pode contribuir para o rompimento com uma visão colonial, e esse rompi- mento, por sua vez, exige que as diferentes visões de mundo sejam abordadas, conforme expli- cita Walsh (2007), a partir da compreensão de que a “dominação” colonial possui uma forma de pensamento por meio da qual tudo o que é considerado como avançado, civilizado e correto é caracterizado e analisado com base nos padrões europeus (orientados a partir de sua lógica de pensamento). Portanto, considera-se que é necessário romper com essa visão eurocêntrica no conhecimento escolar; assim como a escola é eurocêntrica.

Cabe, aqui, refletirmos, mais uma vez, sobre o diálogo entre saberes. Em investigação de Rosa (2018), um intelectual indígena brasileiro aponta ser necessário na formação de pro- fessores indígenas ser realizado um diálogo com a importância dos saberes desses povos. Ex- plica, a partir de exemplos, como é o caso dos “remédios tradicionais”, que podem ser aborda- dos e discutidos na sala de aula por meio de processos de pesquisa dentro de uma disciplina, a

36 Conselho esse que institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores Indígenas

partir do diálogo com os sábios indígenas. Desse modo, o espaço escolar seria o palco desse diálogo. Nesse sentido, um outro intelectual indígena complementa explicando que, para que ocorra a articulação dos saberes nas aulas de Ciências da Natureza, é necessário que haja a participação dos representantes mais antigos da comunidade, a nosso ver, os anciões, pajés, senhoras e senhores que detêm o conhecimento sobre plantas, ao serem trabalhadas questões de saúde envolvendo os conhecimentos da medicina ocidental e os conhecimentos tradicionais desses povos. Desse modo, a comunidade seria levada para dentro da sala de aula para trazer também nesse processo de ensino os conhecimentos tradicionais.

Nesse contexto, apontamos que ensinar ciências em escolas indígenas implica um trata- mento particular, específico e diferenciado em relação ao ensino das demais escolas regulares não indígenas. Para tanto, observamos o quanto a formação de professores indígenas é impor- tante nesse processo, pois o professor necessita ter em mente que os dois conhecimentos, o ancestral indígena e o científico ocidental, pertencem a lógicas de pensamento distintas, por- tanto possuem origens e características que se diferenciam. Além disso, a abordagem dos co- nhecimentos pertencentes ao universo Kurâ-Bakairi a partir de suas vozes e seus olhares, como já destacado, pode contribuir com os processos identitários e a manutenção de suas formas próprias de pensar, ver, ser e estar no mundo, contribuindo para a descolonização dos currículos escolares dessa comunidade, e isso na busca por construir conhecimentos que de fato sejam significativos a esse povo.

Nessa perspectiva, destacamos as reflexões do professor Xixi ao refletir sobre a prática da pesca com o timbó e o processo de educação indígena. Explica a partir dessa prática cultural como os “mais velhos” ensinam aos mais jovens e como estes apreendem as informações, em última instância, como aprendem sobre a vida cotidiana Kurâ-Bakairi, e aponta que os alunos sempre perguntam sobre o efeito/ação do timbó no peixe, questionando “quê que tá acontecendo aí?”, “por que o peixe ficou tonto?”, conforme enunciado a abaixo:

[...] pois é isso aí é:: vem do próprio da da pergunta do aluno, né... quando a

gente vai pescar lá os adultos vai lá sempre explicam nada só fala assim

“não filho nós vamos lá fazer uma pescaria com o timbó:: então tá!” só isso mesmo não tem nada de explicação aí eles vai lá e participa lá e depois bate

o timbó lá quando vê lá aquilo e quando o peixe começa a a ficar tonto aí a gente fala só uma curiosidade “olha lá o peixe tá morrendo olha aí ele fazendo isso” tem uns lá que:: é tem uns lá que fala assim “é:: o outro tá

boiando ali como é que faz o efeito ali?” Eles que faz pergunta pra nós, né a partir daquele momento que eles perguntam pra nós “então bate ali mas como é que faz? Ele só tava sugando a espuma dele depois que ele bebeu a espuma dele e fica tonto tem muito veneno, né” tudo isso vem da pergunta dos alunos né é só porque é ali [...] (Professor Xixi, 2018).

Comumente, as comunidades tradicionais se caracterizam como sendo orais, seus mé- todos de ensino se dão principalmente pela observação dos jovens ao que estão fazendo os “mais velhos” e pela oralidade através das histórias contadas pelos “mais velhos”, os sábios indígenas. Sobre isso, vejamos outro trecho da fala do professor Xixi: “[...] a história é onça com macaco [...] lobo que pegou a criança [...] então eles escolhem aí:: o velho sempre conta então é assim:: começa a contar e os povos e os alunos ficam hum:: [...]”. Além disso destaca- mos, mais uma vez, o trecho em que o professor sente pela perda dos anciões e sábios Kurâ- Bakairi, ao enunciar que “[...] os velhinhos já não tão mais aguentando hoje alguns faleceram já faleceram já os meus pais já faleceram também então:: ((suspira e demonstra um ar de tristeza pelas perdas)) é assim mais um mais um livro que vai embora [...]” (Professor Xixi, 2018).

Defendemos, consoante Freire (2014, p. 58), que a ênfase na oralidade não pode parar em nome da grafia, pois “[...] toda leitura da palavra é sempre precedida pela leitura do mundo [...]”, o que, como reflete esse autor, aponta para a necessidade do respeito por essa oralidade, por essa compreensão do mundo. Assim, a escola e, portanto, o ensino de Ciências e das demais áreas do conhecimento, devem ser pensados a partir das necessidades e formas de pensar desse povo, conforme já defendemos neste texto, partindo da aprendizagem de sua língua materna e de sua cultura, portanto considerando suas visões de mundo. É nesse sentido que o professor reflete sobre alguns conhecimentos do universo Kurâ-Bakairi para a realização da pesca com o timbó, esses sendo aprendidos e apreendidos no seio comunitário da aldeia. Assim, o entrevis- tado enuncia:

[...] e:: e tem as técnicas também, né [...] técnicas naturais que a gente usa assim:: é técnicas naturais que eu falo é:: é tem que observar a natureza como por exemplo vamos pensar na lua.. por exemplo a fase da lua isso aí é uma das técnicas que é bem é difícil bem entender mas:: vem da nossa cultura física se se o sol se o/ a lua tiver bem minguante já não serve pra pra:: como que é? Tenho uma dúvida aqui... ((nesse momento se comunica na língua ma- terna com nossa colaboradora representante da comunidade)) aí há uma dife- rença eu não falei vou explicar sobre uma diferença aqui ôh:: diferença entre esse timbó da natureza e entre as plantas que é a produção das plantas:: a cul- tura a produção das plantas é uma diferença entre o o/ sobre o timbó é uma coisa por exemplo pra não/ pra fazer uma pescaria com o timbó a gente

observa a lua e tem que ser na lua minguante daquela lua bem forte mesmo que tá aparecendo porque aquele lá é bem forte pra poder matar bem o peixe então nessa:: nessa fase de lua que aí/ que é bom pra fazer a pescaria aí você vai lá o peixe morre na hora mesmo faz uma pescaria ele

morre todo é incrível:: é em lua bem minguante mesmo na hora que ele tá forte ele morre ali toda essa coisa que é que é pra matar ali até a caça pesca isso aí

é nessa fase de lua mesmo essa ali agora tem a parte das plantas que a gente planta que dão alimento planta mandioca milho essa coisa e tal aí

não é nessa fase não aí tem que ser na lua cheia pra poder dar o alimento aqui bem cheio pra dar o fruto bem maior.. essa são as técnica da natu- reza que eu que eu sigo [...] é... ((risos)) [...] o que pode ou não pode qual a

mulher que não pode? Aí no caso é a parte dela que vai contar ((risos – explica que a nossa colaboradora e representante da comunidade poderá explicar me- lhor as restrições para a pesca com o timbó)) [...] (Professor Xixi, 2018). Em sua fala, reflete sobre a influência da lua na pesca, uma vez que, a partir de sua cosmovisão, as fases da lua influenciam diretamente no efeito do timbó, pois essas fases orien- tam o desenvolvimento do timbó na natureza e no efeito durante a pescaria, além de orientar os períodos de plantação e colheita de cultivos para a alimentação. Assim, em se tratando do efeito/ação do timbó, a influência da lua está diretamente ligada a ampliar o seu efeito, facili- tando a pescaria.

Além dessas reflexões, destacamos outros trechos de seus enunciados a respeito dos conhecimentos Kurâ-Bakairi sobre a pesca com o timbó que realizam aspectos que remetem à sua singularidade. Podemos verificar, a seguir, na voz do professor Xixi, alguns conhecimentos do pensamento Kurâ-Bakairi que permitiram e permitem a identificação desse cipó, o timbó.

[...] é olhando aquelas plantas lá olhando experimentando lá que é isso aí olhando e pegando aqui é grande, né? Mas quem vê de vez não/ aí já larga aí aí vai no outro e esse aqui “também não.. não não/ também parecido mas:: não” aí vai no outro “aquele lá também é não é parece é:: ele é ele senão vamos lá tamos por aqui mesmo” e se espumar é o timbó se não tem líquido aí eu falo “não não.. tem não” [...] aí tem outro que põe na boca, né? Se é:: não sei como é não esse aí não/ nunca provei esse aí não [...] enfia pra ver se é salgado se é não sei o que “ah não é não parecido mas não é” aí vai no outro tome “ah esse aqui é” aí corta um pedaço e dão uma assoprada aqui ôh!.. e a espuma sai dela aí sai o líquido é essa aqui é/ aí experimenta e pode abandonar esse aqui é essa aqui é essa aqui aí chegou, né? E corta aquele lá [...] assim que é/ que eles descobrem se é o timbó ou não [...] (Professor Xixi, 2018).

Sobre essas características da folha que permite identificá-la enquanto sendo timbó, nossa colaboradora explica que: “[...] a gente pega a folha desse timbó põe na mão esfrega com água e espuma aí é timbó [...] é a própria folha [...]” (Dona Kuma, 2018). Em seguida, o pro- fessor Xixi afirma que qualquer parte da planta timbó espuma, e é essa característica principal que a distingue de outros cipós, conforme podemos verificar em sua fala: “[...] todos eles es- puma desde os pés até as folhas todos eles espuma é:: todas as partes ((referindo-se a todas as partes que constituem a planta timbó)) [...]” (Professor Xixi, 2018). É essa espuma que ao entrar em contato com o peixe faz com que ele fique “tonto” e até morra. Argumenta, a partir desses conhecimentos da cultura Kurâ-Bakairi, que o cipó que não é timbó não libera líquido algum,

espuma ao ser “macerado” com as mãos e que quanto maior for a quantidade de timbó “batido” maior será a quantidade de peixe sob seu efeito, vejamos suas falas:

[...] é isso aí agora se não se não é timbó como já disse.. não tem líquido/ quando corta ele quando se solta ele e não sai líquido e as folhas você só pega a folha e é:: tem certas é:: pessoas que vai lá pega a folha e “ah não é não” e vai lá aí pega nesse esse aqui também “esse daqui é não” vamos lá pega a folha e olha [...] tem tem cada um tem seu cheiro diferente [...].

[...] ele mata também peixe grande mas tem que ter mui/ tem que bater mais [...] tem que bater muito timbó pra:: pra dar efeito [...] porque se for [...] com pouco timbó ele não dá efeito muito não e aí:: ele começa principalmente os Matrinchã aqueles Matrinchã que é danado que não morre não aquele lá que é [...] escapa mesmo ele foge mesmo dali mas ele fica tonto com aquilo lá [...] ele não morre de uma vez assim ele fica tonto assim já aparece aqui fica zonzo aqui/ é quando você quando você vai pegar ele ele vai e vai longe aí já aparece no outro lugar aí pega/ é assim mas por isso que uns certos índios só vai lá com a flecha, né fora que ele já começa já começa a boiar no rio daqui um já mata com flecha e assim tem facilidade também tudo isso é [...] é esses peixes maiores assim ele num num.. não é pra qualquer peixe não [...] só daqueles peixinhos pequenos assim que dá efeito [...] (Professor Xixi, 2018).

Nesse sentido, verificamos que a quantidade de feixes de timbó “batidos” no rio é o que permitirá seu efeito em uma quantidade maior de peixes. Essas informações são mensuráveis e as práticas, refletidas e sistematizadas, uma vez que se organizam e realizam a pesquisa do local para a realização da pesca, a quantidade de timbó que necessitam usar, não sendo uma quanti- dade aleatória.

Nesse esteio, como dito, os conhecimentos produzidos pelos Kurâ-Bakairi acerca da utilização do timbó permitem e garantem que a pesca seja realizada e seu objetivo, alcançado. Assim sendo, defendemos, a partir das reflexões de Geertz (2006) e Lévi-Strauss (2012), que esses conhecimentos resultam de reflexões deliberadas sobre as experiências da vida cotidiana que são refletidas e validadas na prática diária. Conforme afirma Lopes (2012), esses conheci- mentos sobre o timbó produzem respostas necessárias e suficientes a situações encontradas no contexto a partir do qual é construído: o da pesca.

Nessa linha de raciocínio, outro intelectual indígena, como destaca Rosa (2018), aponta que o professor da área de Ciências da Natureza tem de articular sua prática pedagógica de modo a favorecer o fortalecimento e a valorização das identidades indígenas e o seu pertenci- mento. Argumenta, ainda, que o docente necessita ter em mente que vai tratar de coisas sagradas para os povos indígenas, devendo ter cuidado ao tratar dos saberes indígenas, não sendo ade- quado denominá-los de objeto de pesquisa. Nesse sentido, exemplifica que, ao se referirem à terra, à tinta utilizada para realizar a pintura corporal e mesmo aos artesanatos, são sagrados

para os indígenas, sendo um desrespeito tratá-los como “objetos”, no sentido atribuído nas pes- quisas científicas. Ainda afirma, diante do exposto, que as disciplinas e os professores dessa área do conhecimento devem possibilitar a construção de conhecimentos e metodologias que colaborem com o fortalecimento das tradições, portanto que fortaleçam e valorizem os conhe- cimentos ancestrais desses povos nativos.

Sobre os conhecimentos Kurâ-Bakairi para a pesca com o timbó, Dona Kuma aponta que a ciência não pode ensinar esses saberes, referindo-se aos conhecimentos milenares dos Kurâ-Bakairi, enunciando que “[...] não tem é:: e ela também não pode assim porque vai falar de história mitológica [...]” (Dona Kuma, 2018). Nessa fala, são reforçados mais uma vez os conhecimentos vinculados ao domínio da Cosmovisão desse povo indígena, portanto ela – a ciência – não está apta a falar sobre as explicações que caracterizam o seu pensamento. Isso remete a um discurso de autoridade da cultura, sendo assim a ciência, por não fazer parte da vivência cotidiana e da lógica do pensamento Kurâ-Bakairi, não possui legitimidade para falar sobre a pesca. Além disso, em sua fala, afirma que os aspectos culturais tratam-se de “coisas” sagradas, “[...] é coisa sagrada.. é nossa cultura” (Dona Kuma, 2018). Sendo assim, reforça o que foi apontado sobre o respeito e o cuidado com os saberes, as práticas e as vivências dos diferentes povos indígenas, bem como destaca o fato de que a produção dessas lógicas de pen- samento é distinta e possui campos de validação específicos.

Cabe registrar que o encontro entre esses diferentes saberes não prescinde de um diálogo harmonioso, merecendo atenção quanto à possibilidade de conflitos no diálogo entre as expli- cações da Ciência Ocidental Moderna e as explicações da Cultura Kurâ-Bakairi. Quanto a isso, Lopes (2012) evidenciou, no período de sua pesquisa, uma possível ausência desses conflitos. Isso porque os estudantes Kurâ-Bakairi separavam, sem evidenciar conflitos, as explicações oriundas das duas formas de pensar. Ainda um ancião destacou nos diálogos com a pesquisa- dora que, para ele, aquilo que está no LD é a verdade do “branco”, do não indígena, portanto não questiona, apenas quer aprender. Já aquilo que vem da Cultura constitui suas explicações (suas visões de mundo), sendo a sua verdade, aquilo em que acredita. Assim, aprender Ciências para esse grupo não significa deixar de acreditar nas explicações de sua cultura, de seus mitos, de sua cosmologia, tampouco a defesa da existência de uma hierarquia de conhecimentos. Vale ressaltar que essa constatação se refere, especificamente, a esses estudantes indígenas, podendo não ser verificado em outro povo indígena.

Por outro lado, Rosa (2018) aponta que um dos intelectuais indígenas entrevistados afirma haver a existência de conflitos no diálogo entre os saberes da Ciência Ocidental e os Saberes indígenas, isso porque os saberes da área de Ciências da Natureza frequentemente se

distanciam dos saberes tradicionais indígenas em suas explicações, sendo uma das áreas em que pode haver maior índice de contradição, e que nem sempre suas explicações são aceitas pela comunidade. Isso devido a essas visões de mundo possuírem origens, como dito, e cosmologias diferentes.

Em nossos dados, ainda observamos que esse diálogo também se pauta pela ressignifi- cação de algumas práticas culturais desses povos ancestrais na atualidade. Um exemplo da res- significação de uma prática é a própria pesca com o timbó, pois, como observamos no tópico anterior, a partir da fala do nosso colaborador, o professor de Ciências Kurâ-Bakairi, essa prá- tica, quando feita constantemente e sem uma reflexão crítica, pode prejudicar a natureza. Isso por se tratar de uma prática cultural que faz uso de uma planta com princípios tóxicos que afetam a respiração dos peixes. Assim, como ele mesmo aponta, quando não pensados o período de realização dessa pescaria, o local do rio, a quantidade de timbó utilizada, entre outros aspec- tos, pode ser afetado um maior número de peixes, inclusive peixes ainda jovens, impedindo que se reproduzam e, consequentemente, gerando um decréscimo de peixes e seu processo natural de retroalimentação. Em última instância, a prática pode contribuir a longo prazo para a extin- ção de espécies, afetando, consequentemente, a biodiversidade de peixes e outros organismos vivos dos rios.

Em linha de raciocínio semelhante, um dos intelectuais indígenas investigados por Rosa (2018) realiza uma análise crítica a respeito das práticas indígenas, explicando a existência de conhecimentos que necessitam serem repensados na prática cotidiana indígena, fazendo refe- rência, também, à pesca com o timbó como exemplo. Ainda reflete que isso se deve ao fato de possivelmente essa prática ter sido muito importante em um outro período histórico, no qual havia muito mais peixes e biodiversidade disponíveis nos rios do que atualmente. Além disso, esse intelectual indígena ainda explica que tal análise crítica se distancia de uma “visão român- tica” sobre as práticas culturais indígenas. Apontamos, assim, como nosso colaborador Kurâ- Bakairi, que os conhecimentos da área de Ciências da Natureza – trabalhados de forma crítica, sensível e comprometida – podem auxiliar os diversos povos indígenas que realizam práticas como a pesca com o timbó a repensarem tais práticas de modo a evitar possíveis danos ao ambiente. Pensamos, a partir das perspectivas aqui estudadas, que deveríamos nós aprender com os povos indígenas sobre suas relações com a natureza, não o inverso.

A partir dessas ponderações, evidenciamos um processo de autorreflexão desses povos sobre si, em sua relação com o ambiente e sobre as possíveis consequências de algumas de suas práticas e de saberes ancestrais. Destaca-se como desafio estabelecer um diálogo entre esses