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2.1 A crise da educação

2.1.2 Educação utilitarista

Uma educação aliada ao paradigma do desenvolvimento econômico e do tecnicismo trouxe consequências terríveis para a formação das gerações mais novas. Uma delas é, sem dúvida, aquela que Bauman (2007) definiu como educação líquida. O autor afirma que vivemos em tempos líquidos, ou seja, tempos em que as instituições e organizações sociais não podem e nem conseguem permanecer com a mesma forma por muito tempo. Daí segue que as instituições educativas também precisam se adaptar a essa realidade.

Numa sociedade líquida, relações duradouras, fidelidade e tradição não são mais vistas como qualidades. No caso da educação, a ideia de que o conhecimento acumulado da humanidade deve ser acessado e conservado pelas gerações mais jovens não faz mais sentido. Importa o conhecimento útil e aplicável. Depois de usado, pode ser abandonado ou descartado. Convencer as gerações mais jovens da importância do conhecimento sem esta conotação de utilidade ou aplicabilidade tornou-se tarefa complicada, pois, numa sociedade na qual tudo é efêmero, numa sociedade em que importa apenas o presente, é muito difícil mostrar que o passado e o conhecimento acumulado são importantes para pensar o presente e o futuro.

Outra consequência do utilitarismo na educação é a desmotivação dos jovens. De acordo com o utilitarismo, todo conhecimento precisa de uma utilidade. Dessa forma, as gerações mais jovens precisam de uma utilidade para tudo que aprendem. Os melhores educadores são aqueles que encontram uma utilidade imediata para os conhecimentos que precisam ensinar. Os educandos não confiam naqueles educadores que defendem uma educação com objetivos que ultrapassam os limites do imediatismo:

[...] Neste nosso tempo e época, uma reação que comece com ‘Porque mais tarde, quando vocês estiverem crescidos’ é inadequada e até mesmo negligente. Além do valor de entretenimento, assim dizem os acusadores, o que motiva os jovens é a informação sobre a utilidade do que eles estão aprendendo, juntamente com a capacidade de fazer suas próprias escolhas sobre o que aprendem (MASSCHELEIN; SIMONS, 2013, p. 16).

Na verdade, um dos grandes desafios da educação é enfrentar essa concepção que afirma que só tem valor o conhecimento útil. Devemos manter os conhecimentos enquanto nos forem vantajosos e, quando obsoletos, substituí-los por outros mais úteis. Por não terem utilidade imediata e material, os conhecimentos das áreas de humanas, das artes e da literatura

são menosprezados. São conhecimentos que, geralmente, não trazem satisfação e muito menos satisfação material, além de serem incômodos por suscitarem inquietações, angústias e até mesmo sofrimento.

As instituições educativas tradicionalmente servem à doutrinação e à imposição de obediência, exercendo um papel de controle e coerção. Michel Foucault6, em Vigiar e Punir, afirma que dentro da sociedade disciplinar a escola assume a forma de uma instituição de sequestro que utiliza técnicas disciplinares de controle temporal do corpo e da ação. As instituições disciplinares, entre elas a escola, são espaços onde o poder normalizador e disciplinar produz indivíduos dóceis e submissos às estratégias do poder. Foucault (1987, p.174) afirma que “a escola tende a constituir minúsculos observatórios sociais para penetrar até nos adultos e exercer sobre eles um controle regular”.

O indivíduo não é educado para a autonomia e para o pensamento crítico. A educação sustenta, pela doutrinação, a estrutura de poder das classes dominantes, ou seja, é idealizada para sustentar os interesses dos ricos, poderosos e socialmente reconhecidos. A infeliz lição que o indivíduo aprende ao longo de seu processo de socialização é que, se não apoiar os interesses da classe dominante, está destinado à exclusão social, política e econômica.

Além disso, como argumentei na seção anterior, a educação se transformou em mercadoria. Como tal, ela deve ocultar sua natureza e reais objetivos que não correspondem ao que tradicionalmente se entendia por educação. Transformada em mercadoria, ela precisa zelar por sua aparência e mostrar-se atraente ao olhar do educando/consumidor. Como em toda e qualquer transação econômica, a educação entendida como mercadoria deve atender às necessidades do consumidor. No limite, isto significa assumir como princípio que o educando/consumidor tem sempre razão. A grande falácia nisso envolvida é a pressuposição de que o educando sabe de antemão quais são as suas reais necessidades, esquecendo-se que suas expectativas e necessidades são influenciadas e gerenciadas segundo os interesses econômicos do sistema.

Arendt (1972) já alertava para o perigo de deixar as gerações mais jovens entregues a si mesmas. Além de ser uma decisão eticamente questionável, pois implica irresponsabilidade com relação a um ser ainda frágil física e psiquicamente, significa também uma omissão com relação à introdução dos jovens na cultura com todas as suas facetas, ou

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Embora a análise de Foucault seja importante para nos alertar dessas estratégias de controle, irei, no terceiro capítulo, com a ajuda de Axel Honneth, mostrar uma dificuldade nessas teses. De modo especial, o fato dela conduzir a uma analise da escola como uma instituição total e que não contemplaria a possibilidade da emancipação.

seja, numa palavra, uma omissão com relação à tarefa de educar as novas gerações, incontestável responsabilidade dos adultos. Engajar-se num processo educacional é assumir o risco de fazer surgir o novo, do educando aprender coisas que nem teria imaginado aprender. É a natalidade da qual fala Arendt, pois vir ao mundo não é algo que os indivíduos podem fazer sozinhos. É percorrendo o caminho da educação, ao cuidado dos adultos, que os jovens descobrem e se tornam capazes de fazer juízos a respeito de suas reais necessidades.

Essa decisão de deixar as gerações mais jovens decidir por conta quais são as suas necessidades em educação favoreceu o surgimento da compreensão que a educação deve ser sempre prazerosa, fácil, útil, atraente e emocionante. Embora a educação não deva ser tristeza, dor e sofrimento, é importante saber que, por mais que se cultive a ludicidade e a alegria, a educação é, também, trabalho e disciplina. O verdadeiro processo educativo em muitos momentos não é prazeroso, nem fácil. Exige disciplina, esforço individual e coletivo, dedicação e, em alguns casos, capacidade para lidar com a frustração e o sofrimento. Mas não é isso mesmo que se espera da formação das gerações mais novas?

Embora o caminho da educação apresente esforço e sacrifício, isso não significa que ele não possa ser prazeroso. Talvez a grande dificuldade que surge daí esteja relacionada ao advento de algumas teorias educacionais de caráter construtivista ou sociocultural que, na tentativa de construir um novo modelo de educação, abandonaram o antigo. Na tentativa de construir um modelo que atendesse as necessidades da época, ignorou-se que o modelo tradicional de educação também teve suas conquistas. Além disso, a educação formal, na tentativa de autolegitimação, se apressou em absorver, ao longo das últimas décadas, os resultados das ciências mais avançadas, sobretudo das áreas humanas e sociais. A adesão modista e aligeirada a determinadas teorias psicológicas, filosóficas e sociológicas, como é o caso do comportamentalismo, do construtivismo, do socioconstrutivismo, da pedagogia Montessori e da pedagogia Waldorf, ajudou a educação a se afastar da sua real tarefa de educar para a conquista da autonomia e consciência social.

Decididamente essas teorias trouxeram novidades importantes à educação como, por exemplo, o desvelamento de determinadas práticas pedagógicas autoritárias. A presente pesquisa tem o objetivo de pensar estratégias que ajudem a educação contemporânea a lidar com as dificuldades características das sociedades complexas e plurais, tais como a forte presença da tecnologia e da pluralidade social. Contudo, isso não significa que se deva descartar tudo o que já foi feito e pensado em educação. Nesse sentido, ao se vender a educação como mercadoria, professores e dirigentes de instituições educativas ocultam que, embora o processo educacional possa e deva ser o mais prazeroso possível, o caminho da

educação pode e deve ensinar ao educando coisas sobre si mesmo, sobre suas ações, reações e decisões que, por si só, ele preferia não aprender.

A educação é uma forma de violência, uma vez que interfere na soberania do sujeito propondo questões difíceis e criando encontros difíceis. Mas é essa violação que torna possível a vinda ao mundo de seres únicos e singulares – sendo por isso que Derrida fala de tal violação como violência transcendental, o termo ‘transcendental’ referindo-se ao que precisa ocorrer para tornar algo possível [...] como educadores, estamos sempre interferindo nas vidas de nossos estudantes, e que essa interferência pode ter um impacto profundo, transformador e até perturbador sobre nossos estudantes (BIESTA, 2013, p. 49-50).

Numa sociedade intolerante à dor e ao sacrifício, as dificuldades ou frustrações só são aceitáveis se forem imediatamente vantajosas e úteis. O utilitarismo que toma conta das instituições educativas hoje é altamente perigoso, pois, o educador se vê obrigado a escolher os métodos e os conteúdos pela sua utilidade imediata. Em última análise, isso significa que a educação passa a se orientar pelos interesses econômicos e produtivos. Essa educação utilitarista visa produzir um conhecimento útil para a sociedade e preparar os indivíduos para as relações de mercado:

O adágio é: ser empregável! O evangelho: a empregabilidade é o caminho para comprar sua própria liberdade e contribuir para o progresso social! O sermão: não se aliene e não dê de ombros à sua responsabilidade para com a sociedade! O lembrete tranquilizador: deixe aquele que não tem necessidade de aprender atirar a primeira pedra! (MASSCHELEIN; SIMONS, 2013, p. 112).

As demandas do mercado de trabalho se impõem como se fossem diretrizes do trabalho pedagógico. A inclusão dos educandos na lógica econômica do capital expressa que o homem deveria servir de meio para alcançar os objetivos econômicos. Embora o princípio da utilidade seja favorável quando se trata de resultados imediatos em termos econômicos, a médio e longo prazo ele desaproveita o capital mais valioso do qual a sociedade poderia dispor: a força criativa do indivíduo que se vê reconhecido e estimado em toda a sua potencialidade.

Conectada à lógica do consumo e do desenvolvimento econômico, o princípio da utilidade na educação promete ao indivíduo o sucesso no futuro. Quantas vezes ouvimos de pais, professores e dirigentes políticos a frase, que é o lema do utilitarismo na educação, “estude para ser alguém no futuro”? Exige-se do educando bom comportamento, disciplina, fazer as tarefas de casa e, é claro, tirar boas notas, com a promessa de um bom emprego na

fase adulta. Afinal, o fim da educação é preparar o jovem para o ingresso competente no mercado de trabalho:

Muitos pais, de fato, podem gostar da ideia da escola como campo de treinamento básico para emprego futuro, como fazem muitos executivos de grandes empresas. Isto é porque a crônica da Utilidade Econômica é contada e recontada em comerciais de televisão e discursos políticos como a razão por que as crianças devem ir para escola, e permanecer na escola, e por que as escolas devem receber apoio público (POSTMAN, 2002, p. 36).

No entanto, a promessa feita não pode ser cumprida. Como veremos no próximo item, e como nos alerta o economista Paul Roberts no texto já citado acima, o desenvolvimento da tecnologia está tornando escassas as oportunidades de emprego7. Se isso não é suficiente, é preciso considerar, ainda, que a educação não é capaz de prever quais profissões os jovens podem aspirar. Não restam dúvidas que as instituições educativas também devem preparar os jovens para seu futuro profissional. Contudo, colocar a educação a serviço do econômico é limitar toda a potencialidade do processo educativo. Dotar os jovens de habilidades profissionais práticas é apenas um aspecto da educação, certamente importante e fundamental, mas não a sua única finalidade.

Tradicionalmente, a educação vem se organizando de acordo com as necessidades apresentadas pelos modos de produção. Isso ocorre, especialmente, no caso do modo capitalista. Marx (2004) dizia que o trabalho é o que identifica o homem. É pelo trabalho que o homem se realiza enquanto ser humano. É a partir da interação do homem com a natureza, para garantir seu sustento, que o homem encontra sua realização. No entanto, no capitalismo, o trabalho está se transformando em um processo no qual o sujeito perde sua identidade e sacrifica sua existência, pois, além de vender sua força de trabalho, se entrega e se adapta no seu todo. Especialmente com a tecnologia da informação que alcança o trabalhador, a qualquer hora do dia e da noite, inclusive no seu tempo livre, a disponibilidade alcança o ápice da eliminação do privado, da autonomia e da liberdade. Para o capital e seus sofisticados recursos de manejo dos seus interesses, o trabalhador é apenas uma fonte de lucro.

Uma educação voltada para o trabalho, no sentido analisado por Marx, serviria apenas para formar jovens capacitados para servir de mão de obra. Como destaquei

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Isso não significa dizer que o desenvolvimento tecnológico é o responsável pelo desemprego em massa. Não é a tecnologia o problema, mas a sua aplicação sob o capitalismo. Quer dizer, o desenvolvimento tecnológico poderia ser usado para o trabalho compartilhado de forma igual e as horas da jornada de trabalho poderiam ser reduzidas para todos.

anteriormente, isso não significa que a educação deve ignorar o mundo do trabalho. A formação profissional é um aspecto da educação. O trabalho, no entanto, tal como Marx (2004) entendia, deve ser visto como uma forma de realização do ser humano e não sua anulação. Se preparar para o mundo do trabalho é um dos objetivos da educação, devemos entender o trabalho no sentido da relação com a natureza como processo produtivo da cultura e do humano. Não se trata, pois, de pensar a educação para o trabalho no sentido de adestramento, para o mero exercício de uma determinada habilidade sem o conhecimento dos fundamentos da própria habilidade. Afinal, como afirma Marx (2007, p. 14):

O homem se diferencia dos outros animais por muitas características, mas a primeira, determinante, é a capacidade de trabalho. Enquanto os outros animais apenas recolhem o que encontram na natureza, o homem, ao produzir as condições da sua sobrevivência, a transforma. A capacidade de trabalho faz com que o homem seja um ser histórico; isto porque cada geração recebe condições de vida e as transmite a gerações futuras, sempre modificadas – para pior ou para melhor.