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Durante todo este capítulo, procurei pensar a educação e, de modo especial, as instituições educativas como ambientes onde a igualdade de inteligências seja reconhecida e os educandos possam experimentar os conteúdos e os saberes cooperativamente. Além disso, abordei a instituição educativa como um espaço público capaz de oferecer tempo livre para aprendizagem. Esses ideais estão relacionados à tradição da educação democrática. Contudo, gostaria de finalizar abordando um potencial emancipatório que pode ser recuperado.

O ser humano manifesta curiosidade desde o nascimento. O mundo que o cerca e os outros seres humanos com quem interage compõem a primeira fonte de curiosidade do bebê. A dificuldade fundamental nesse caso está no processo de adestramento dessa capacidade pelos pais e pelas instituições. Quer dizer, seja em casa ou nas instituições educativas, a criança passa de um estado em que todas as coisas a espantam e lhe causam curiosidade para um estado de sonambulismo ou, como gostaria de chamar, um estado zumbi.

Nossas crianças são cheias de vida nos primeiros anos da escola. Nos últimos, são como sonâmbulos ou zumbis, de alguma forma estão vivos, mas nada ao seu redor lhes provoca ou lhes causa indignação. Na verdade, a própria lógica do reconhecimento é quebrada se o indivíduo permanece nesse estado de sonambulismo ou zumbi. Não existe luta por reconhecimento se o indivíduo não se sente desrespeitado. Nos termos de Honneth, a

evolução moral das sociedades está relacionada diretamente às experiências de desrespeito e, consequentemente, às lutas por reconhecimento.

No seu diálogo Teeteto (2007), Platão afirma que a filosofia começa com a admiração, com o assombro. Tò thaumázein é o verbo grego admirar-se, assombrar-se. Trata- se de um estado que nos atinge quando nos defrontamos com algo estranho por ser “thaumaston”, quer dizer, extraordinário, assombroso. No verbo tò thaumázein se encontra a raiz thea que significa ver, olhar. Ver e olhar atentamente o objeto que se manifesta e provoca a vontade de saber. Assim teria nascido a Filosofia.

Na longa tradição da filosofia, outros filósofos, como é o caso de Aristóteles, seguiram de perto a definição platônica. No entanto, parece-me uma definição que poderia muito bem estar relacionada à educação. Afinal, trata-se de um apetite natural do ser humano. Nascemos e o mundo que nos cerca naturalmente nos provoca esse sentimento. Quem não experimenta o assombro e não vive para o assombro perde esse apetite natural e está no caminho da desumanização. O ser humano sem assombro é como um zumbi.

Muitas instituições educativas27 trabalham baseadas em uma pedagogia que eu gostaria de chamar de Pedagogia Zumbi. Isto é, elas existem, mas no fundo estão mortas. O resultado de uma instituição, que tem se caracterizado por aniquilar essa disposição natural do ser humano para o assombro, só poderia resultar na formação de indivíduos zumbis. Quando pensamos sem assombro somos como zumbis, mortos vivos, indivíduos governados por um piloto automático que já pensou e decidiu tudo por nós e que dirige nossa ação sem o menor indício de dúvida, choque, gratidão ou alegria. Diz Jorge Fernández Gonzalo (2011, p. 124) em seu livro Filosofía Zombi:

Los únicos supervivientes en un mundo de afecciones impostadas y de encuentros virtuales no son otros que los más claramente expuestos a la recepción mediáticas, a las valoraciones y opiniones del otro y a las numerosas reglas y disparatadas intervenciones de una organización que guía sus rutinas diarias y que codifica casi policialmente el relato de sus vidas. Adáptate a la mediocridad de las modernas interrelaciones o no podrás ser un zombi como nosotros, un zombi con fama y poder, disoluto y juerguista. En un mundo apocalíptico de plagas de no-muertos los únicos supervivientes resultarán ser los más zombis: una serie de personajes superficiales, con rencillas ingenuas y de un claro infantilismo afectivo – pero altamente productivo a la hora de forjar lazos sociales y atraer simpatías mediáticas – o con relaciones esporádicas y triviales por el desgaste de sus herramientas sentimentales y expresivas.

27 Felizmente há muitos gestores, professores e críticos que muito se assombram. Há centenas de revistas da área de educação no país que se dedicam a provocar o assombro. Educação e Sociedade, para citar uma, há meio século tem contribuído para pensar a educação criticamente.

Viver como um zumbi significa ignorar nossas habilidades mais elementares. Precisamos resgatar a nossa disposição original de olhar para o mundo com assombro, quer dizer, olhar o mundo criticamente. As instituições educacionais devem promover esse olhar, mas não como um olhar acrítico. Na infância, a criança se assombra com o mundo e consigo mesma sem ainda refletir criticamente. Com o passar dos anos, podemos promover e resgatar o assombro como uma atitude marcada pela maturidade e pela consciência de que tudo que nos cerca é um mistério a ser desvendado.

Uma pedagogia do assombro não aceita o fundamentalismo. Pelo contrário, na tradição de uma educação democrática, isso significa combater posturas intelectuais e morais que pretendem apresentar a realidade com uma explicação pronta e acabada. Uma pedagogia do assombro significa deliberar sobre o modo como cada um vê a realidade. Não significa assumir o relativismo, afinal este também é uma forma de fundamentalismo. Importa aceitar a vida e nossas relações como um mistério e manter acesa a chama do assombro. Nesse sentido, assombrar-se significa criticar, indagar nossos sentidos e não aceitar passivamente a realidade posta.

Tradicionalmente, as gerações adultas ajudam as novas gerações a eliminar o assombro. Fazemos isso porque o assombro não possui apenas conotações alegres e prazerosas. Ele implica também em conflito e desconforto. O assombro nos exige força e coragem para enfrentar a realidade como ela é e não como nos disseram que ela é. O assombro exige abertura e atenção. Precisamos estar dispostos a refletir sobre o mundo e nossa relação com o mundo e com os outros. Daí a importância destacada anteriormente de aprender a ficar sozinhos. Ou seja, precisamos estar sozinhos com nossa própria identidade para desenvolver a capacidade da autorreflexão.

Assombrar-se com o mundo e com as relações significa estar aberto verdadeiramente ao outro e estar disposto a abandonar a compreensão limitada do mundo; sair da nossa concha. Derrubar as paredes do mundo particular para olhar o que existe fora dele. Como se vê, o assombro possui uma dupla perspectiva: por um lado, assombrar-se com o mundo é uma experiência prazerosa, mas, por outro, também é uma experiência exigente e desconfortável. Viver como um zumbi, ao contrário, não causa desconforto. O único desconforto do zumbi é a necessidade de se alimentar. Mas ele não delibera, não pensa e não se comunica; para ele tudo está decidido previamente.

Essa metáfora me parece muito fecunda. Afinal, muitas vezes vivemos como se a realidade não nos afetasse: o outro existe, mas como alimento. Quer dizer, eu não o reconheço, mas o instrumentalizo, tomando-o como condição de minha sobrevivência. No

caso das instituições educativas, podemos perceber que estão orientadas para a formação de uma inteligência desencarnada da realidade. Fazendo uso de outra metáfora, a criança quando chega ao mundo, e mesmo quando ela, já mais crescida, chega à escola, encontra-se como num bosque denso e escuro. A criança se assombra com aquela situação. Ao mesmo tempo, o bosque aguça sua curiosidade e gera o medo do desconhecido. Qual a melhor forma de lidar com esse medo e essa escuridão? Não podemos enfrentar sozinhos as maravilhas e os perigos desse bosque, mas podemos estar abertos ao testemunho de quem nos antecedeu nessa aventura. Podemos partilhar nossas preocupações e nossas possíveis respostas a respeito dos desafios desse bosque.

As instituições educativas poderiam se orientar pela Pedagogia do assombro. Poderiam alimentar, cultivar e provocar o assombro. Se no passado tínhamos crianças amedrontadas pelas práticas pedagógicas disciplinares e violentas, no presente observamos a formação de uma geração zumbi. A única situação que lhes causa desconforto é a própria sobrevivência. Perdemos ou anestesiamos a capacidade de assombrar-nos com o mundo e com os outros. Na verdade, diante de uma educação orientada por conteúdos e saberes estabelecidos, naturalizados, as novas gerações experimentam a vida como se tudo fosse normal. Violência, preconceito, fome, problemas ambientais, distribuição de renda, corrupção etc. não espantam. Aceitam com naturalidade situações que deveriam assombrar.

O verbo  carrega em si diversos significados: admirar-se, espantar-se, surpreender-se, assombrar-se etc. Adotei o significado de assombro porque me parece mais adequado ao sentido dessa experiência. Quer dizer, trata-se de uma experiência com duplo significado: o assombro causa espanto, mas também causa desconforto. Assombrar-se com o mundo carrega em si uma experiência prazerosa e incômoda. Prazerosa porque a descoberta nos causa satisfação de compreender determinada realidade. Incômoda porque aprender é tarefa exigente e que, muitas vezes, revela algo que não se gostaria de saber. Na filosofia, o assombro é a raiz da crítica, da desnaturalização.

Honneth se concentra, por exemplo, nas formas de desrespeito. Faz isso porque entende o avanço moral das sociedades como resultado de lutas por reconhecimento. Lutas que são motivadas por experiências incômodas. No entanto, como foi dito anteriormente, existe a possibilidade do sujeito não perceber determinadas ações como negação de reconhecimento. Ou, mesmo percebendo, pode se acomodar diante da dificuldade de lutar com os outros pelo reconhecimento como sujeito digno de confiança, respeito e estima. Retomando nossa metáfora, diante do bosque denso e escuro, o sujeito pode cooperar com os