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1 A EDUCAÇÃO MUSICAL NA BASE NACIONAL COMUM CURRICULAR DO

2.6 O educador como artista

A educação é uma obra de arte. É nesse sentido que o educador é também artista: ele refaz o mundo, ele redesenha o mundo, repinta o mundo, recanta o mundo, redança o mundo (FREIRE, 2000b: 6m42-7m02).

A prática educativa humanizadora insere educadores e educandos numa relação horizontal para que, juntos, possam perceber e compreender o ambiente social em que vivem, questionando, desafiando e modificando a realidade por meio de sua práxis libertadora. A relação entre iguais, marcada pelo diálogo e pela troca de saberes e aprendizados, favorece o desenvolvimento das capacidades do ser, levando-o a vivenciar sua vocação ontológica de “ser mais”.

Na perspectiva freireana, a educação é uma realização estética. “Ela é em si uma proposta artística, ela já tem arte” (FREIRE, 2013, p. 361), configurando-se como espaço de liberdade e de escolha, suscitando uma forma sensível de ser, estar e agir no mundo.

Visto como artista, é tarefa do educador conduzir os estudantes a descobrirem no cotidiano escolar que “a esteticidade pode estar em todos os lugares, onde é permitido viver uma vida decente: é a boniteza do corpo, da escola, das cidades, da natureza, enfim do mundo” (STRECK; ZITKOSKI, 2010, p. 31). Assim, o professor-artista é aquele que “atento, ouve com o corpo todo, sente, contempla, discute, se envolve, repensa, fala, estuda, experimenta” (CAETANO, 2015, p. 34).

Nesse sentido, não há separação entre teoria e prática no ato de educar. A práxis defendida por Freire busca a coerência entre teoria, palavra e ação, trazendo à tona a “reflexão crítica sobre a prática” que “se torna uma exigência da relação

Teoria/Prática sem a qual a teoria pode ir virando blá-blá-blá e a prática, ativismo”

(FREIRE, 1996, p. 25).

Dessa forma, o educador assume o papel de facilitador da aprendizagem pelo

“viés da sensibilidade, do ouvido, da musicalidade, da prática e da cognição”

(ZAMPRONHA, 2007, p.22), contribuindo para a construção de uma sociedade em que as relações sejam mais sensíveis e humanas.

Colocando “no centro de sua proposta pedagógica o ser humano como sujeito histórico e não como mercadoria por ele produzida” (PRETTO E ZITKOSKI, 2016, p.

52), o educador promove a formação de cidadãos críticos, perspicazes, inteiros que aprendem com o corpo todo, com os sentimentos, emoções, desejos, medos, dúvidas, paixão e também com a razão crítica (FREIRE, 1994).

Freire aponta para a necessidade de vivenciar e valorizar o processo global de ensino-aprendizagem, destacando a necessidade de se constituir o espaço educativo como ambiente de criação conjunta integrado à vida e ao mundo. Para ele,

Um acontecimento, um fato, um feito, uma canção, um gesto, um poema, um livro se acham sempre envolvidos em densas tramas, tocadas por múltiplas razões de ser de que algumas estão mais próximas do ocorrido ou do criado, de que outras são mais visíveis enquanto razão de ser. Por isso a mim me interessou sempre muito mais a compreensão do processo em que e como as coisas se dão do que o produto em si (FREIRE, 2014, p.18).

No ensino e aprendizagem de música, faz-se necessário ir além da obtenção de um “produto musical”, e valorizar o processo dos educandos, considerando suas experiências e, a partir delas, ressignificar as práticas musicais, superando padrões preestabelecidos de beleza e regularidade. Isso não quer dizer que a dimensão do belo não deva estar presente nelas, mas se deve buscar sua conexão intrínseca à existência humana e suas contradições.

Além disso, não deve desprezar os conteúdos em detrimento de uma prática meramente assistencialista, mas oferecê-los de forma consistente, tendo em vista a formação musical do educando. Freire assim elucida:

Não há, nunca houve nem pode haver educação sem conteúdo, a não ser que os seres humanos se transformem de tal modo que os processos que hoje conhecemos como processos de conhecer e de formar percam seu sentido atual. O ato de ensinar e de aprender, dimensões do processo maior – o de conhecer – fazem parte da natureza da prática educativa. Não há educação sem ensino, sistemático ou não, de certo conteúdo. E ensinar é um verbo transitivo-relativo. Quem ensina, ensina alguma coisa – conteúdo – a alguém – aluno (FREIRE, 2014, p. 110).

Nesse processo, educador e educando assumem, juntos, o lugar de fazer perguntas. Assim, o educando torna-se também sujeito do conhecimento: “Todo ensino de conteúdos demanda de quem se acha na posição de aprendiz que, a partir de certo momento, vá assumindo a autoria também do conhecimento do objeto”

(FREIRE, 1996, p. 124).

Na verdade, para a construção do conhecimento é necessário aprender a aprender, bem como ensinar não é somente transmitir e informar, mas ensinar o aprendente a construir respostas a partir de perguntas.

Considerando a música como objeto a ser conhecido, os envolvidos vão se percebendo ao longo do percurso e assumindo a responsabilidade pelo seu próprio aprendizado e transformação do mundo. Daí a importância de promover experiências que valorizem o universo dos educandos, ajudando-os a ampliarem sua esfera de compreensão da realidade calcada num contexto cultural e histórico particular.

3 REIVENTANDO A EDUCAÇÃO MUSICAL NA PERSPECTIVA FREIREANA

Para um educador progressista coerente não é possível minimizar, desprezar, o

“saber de experiência feito” que os educandos trazem para a escola [...] É preciso inquietar os educandos, desafiando-os para que percebam que o mundo dado é um mundo dando-se e que, por isso mesmo, pode ser mudado, transformado, reinventado (FREIRE, 1995, p. 30).

Na perspectiva freireana, a valorização da experiência dos educandos é elemento fundante numa ação educativa emancipatória. O saber de experiência feito revela a leitura de mundo dos estudantes e deve ser considerada como ponto de partida na relação educador-educandos.

Com a intenção de pesquisar possibilidades e limites para uma educação musical emancipatória, no plano empírico, incluímos em nosso estudo a análise de um caso ilustrativo que retrata a experiência musical de um professor do ensino médio numa escola pública, uma vez que durante a pandemia de COVID-199 não foi possível visitar escolas. Apesar da diversidade do contexto atual, limitado pela BNCC, esse professor buscou desenvolver uma prática que traz indícios de um trabalho na perspectiva da educação emancipatória.

Ler, reler e interpretar o conteúdo da experiência construída e vivenciada pelo professor e pelos estudantes de um caso ilustrativo permitiu, a partir da concepção de educação emancipatória, a identificação de elementos que possam apontar possíveis caminhos para a reorientação de práticas de educação musical no ensino básico, a partir do pensamento freireano.

A entrevista semiestruturada realizada com o professor responsável pela disciplina eletiva: Música e escuta territorial: O protagonismo juvenil por meio do desenvolvimento musical: desafios e possibilidades, desenvolvida na Escola Estadual do Programa de Ensino Integral Prof.ª Lygia de Azevedo Souza e Sá no primeiro semestre de 2021 produziu dados fundamentais para a análise dessa prática10.

9 A pandemia de COVID-19 foi declarada em 11 de março de 2020 pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em decorrência de uma doença respiratória altamente contagiosa causada pelo vírus da síndrome respiratória aguda grave 2 (SARS-CoV-2), resultando na maior crise enfrentada no último século que impactou profundamente não só a organização do sistema de saúde, mas as formas de interação social, a economia, a política e os instrumentos culturais.

10 A entrevista realizada foi fundamental para as análises desta pesquisa. Sua transcrição completa se encontra no corpo deste texto (ver Apêndice A) a fim de fornecer elementos que possam sinalizar uma abertura para a concretização de princípios e práticas de concepção educativa emancipatória.

Em maio de 2019, a Secretaria da Educação do Estado de São Paulo (Seduc) lançou o Programa Inova Educação com o propósito de oferecer novas oportunidades para todos os estudantes dos anos finais do Ensino Fundamental e do Ensino Médio.

As eletivas são disciplinas temáticas oferecidas semestralmente que podem ser escolhidas livremente pelos estudantes na tentativa de enriquecer, aprofundar e diversificar as experiências realizadas no espaço escolar, bem como expandir as aprendizagens previstas na BNCC. Elas acontecem em dois tempos de 45 minutos por semana e podem ocorrer em todos os ambientes escolares a depender do seu planejamento. Tais atividades são concluídas num evento de culminância no qual há a interação dos estudantes com o resultado do trabalho de outras turmas.

A disciplina eletiva analisada, segundo informações constantes no plano de ensino cedido pelo professor responsável, teve como objetivo geral: desenvolver o aprendizado musical por meio de instrumentos de percussão e do canto, favorecendo a autoestima, a autonomia e o trabalho coletivo entre os estudantes. A música foi entendida como vetor de socialização e de espaço de escuta dos estudantes, fortalecendo um ponto de ancoragem em que pudessem demonstrar suas insatisfações e desejos, obtendo um conhecimento de si, possibilitando pensar seu projeto de vida de forma autônoma e concreta.

O plano de ensino apresentado pelo educador teve por objetivos específicos:

 Despertar o gosto pela música/percussão;

 Proporcionar a oportunidade de vivenciar a experiência artística, fazendo parte de grupo de percussão;

 Expressar-se musicalmente, em nível básico, por meio da percussão popular;

 Estimular o desenvolvimento e a ampliação de conhecimento em música, fazendo uso da percussão em conjunto;

 Compreender critérios relacionados ao domínio de técnicas para tocar instrumentos de percussão;

 Identificar, analisar e discutir as circunstâncias históricas, geográficas, políticas, econômicas, sociais, ambientais e culturais de matrizes conceituais (etnocentrismo, racismo, evolução, modernidade, cooperativismo/desenvolvimento etc.), avaliando criticamente seu significado histórico e comparando-as a narrativas que contemplem outros agentes e discursos;

 Estimular o debate e a escuta territorial por meio dos ensaios musicais;

 Favorecer o desenvolvimento da pedagogia da presença;

 Estimular o protagonismo juvenil e a autonomia dos educandos.

A disciplina eletiva previa, como conteúdo programático, os seguintes tópicos:

 Introdução aos ritmos, organização e familiaridade com os instrumentos;

 Ritmos e musicalidade;

 Maracatu: Aprofundamento na cultura e principais influências;

 Ritmos carnavalescos e performances;

 Percussão no jazz, história e influência cultural;

 Hip Hop - História e influência cultural;

 Rap - História e influência cultural;

 Rock Internacional;

 Rock Nacional;

 Música clássica e arranjos;

 Mix de ritmos para a “batida perfeita”.

O professor responsável pela disciplina eletiva Hugo Dias, contextualiza, em entrevista concedida em junho de 2022 (vide Apêndice A), a prática musical desenvolvida, relatando como surgiu a ideia desse trabalho e sua intencionalidade:

Eu sou professor de filosofia e de história. Da mesma forma que a música me tocou na adolescência, a música toca os adolescentes até os dias de hoje e vai tocar para sempre [...] Quando cheguei à escola, eu me deparei com instrumentos de bateria de samba, porque tempos atrás, na escola, houve um projeto, quando tinha aquela Escola da Família, que abria aos finais de semana. Então, ficou lá: tinha vários bumbos, tinha caixa, tinha muita coisa que estava meio apodrecida. Tocar samba eu não sei. Na verdade, sei tocar bateria. Afinal, a gente só dá aquilo que a gente tem [...] (HUGO DIAS).

A partir de sua própria experiência musical, o educador, atento à realidade, encontrou no espaço escolar instrumentos que pudessem contribuir no desenvolvimento da disciplina eletiva, que não tinha por objetivo o desenvolvimento de formar músicos, mas seres humanos críticos e pensantes. Ao colocar no centro de sua proposta o estudante, o educador alinha-se a uma proposta educativa humanizadora que favorece uma visão mais autêntica e criativa da realidade.

A seguir, serão discutidos os organizadores selecionados a partir da leitura da trama conceitual freireana apresentada neste trabalho como crivo crítico de análise da experiência de educação musical.

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