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O lugar da Arte e da Música na BNCC

1 A EDUCAÇÃO MUSICAL NA BASE NACIONAL COMUM CURRICULAR DO

1.3 O lugar da Arte e da Música na BNCC

Nesta última versão da BNCC-EM, o componente curricular Arte torna-se subordinado à área de Linguagens, perdendo seu aspecto de área de conhecimento específico ao dar “ênfase às práticas expressivas pouco contextualizadas, tendo como foco o direcionamento no fazer, desprezando a sua dimensão crítica e conceitual”

(PERES, 2017, p. 27).

Observa-se um significativo avanço obtido por meio da Lei nº 11.769 de 2008, que dispõe sobre a obrigatoriedade da Música como conteúdo obrigatório, mas não exclusivo da educação básica, que, posteriormente, foi atualizada com a Lei nº 13.278 de 2016, mais completa, que abrange todas as linguagens artísticas (Artes Visuais, Dança, Música e Teatro) no componente curricular Arte. Entretanto, a BNCC desconsidera essa legislação ao diminuir os vastos campos de conhecimento referentes a cada linguagem artística, cada qual com sua especificidade, reduzindo-os na forma de “unidades temáticas”.

Ainda que, na BNCC, as linguagens artísticas das Artes Visuais, da Dança, da Música e do Teatro sejam consideradas em suas especificidades, as experiências e vivências dos sujeitos em sua relação com a Arte não acontecem de forma compartimentada ou estanque (BRASIL, 2017b, p. 194).

Conforme as proposições da ABEM (2016, p. 4), “cada uma das linguagens artísticas tem características de componentes curriculares, pelo fato de possuírem especificidades distintas que necessitam de professores com formação específica para atendê-las adequadamente.” Ao considerar as linguagens artísticas como subcomponentes fragmentados, acaba-se por “legitimar a visão distorcida referente ao ensino de Arte, construída ao longo da história” (ABEM, 2016, p. 4-5).

A versão homologada da BNCC do Ensino Médio está largamente fundamentada na Reforma do Ensino Médio, Lei n. 13.415, de 2017 (BRASIL, 2017a) que, ao modificar a LDB de 1996, estabelece itinerários formativos que os estudantes poderão construir. Assim, as disciplinas, como estão postas atualmente, seriam incorporadas nesses percursos por meio de práticas e estudos tendo somente os componentes de Língua Portuguesa e Matemática como obrigatórios no decorrer dos três anos do Ensino Médio:

Art. 36. O currículo do ensino médio será composto pela Base Nacional Comum Curricular e por itinerários formativos, que deverão ser organizados por meio da oferta de diferentes arranjos curriculares, conforme a relevância para o contexto local e a possibilidade dos sistemas de ensino, ensino, a saber:

I - linguagens e suas tecnologias;

II - matemática e suas tecnologias;

III - ciências da natureza e suas tecnologias;

IV - ciências humanas e sociais aplicadas;

V - formação técnica e profissional.

[...] A critério dos sistemas de ensino, poderá ser composto itinerário formativo integrado, que se traduz na composição de componentes curriculares da Base Nacional Comum Curricular - BNCC e dos itinerários formativos, considerando os incisos I a V do caput (BRASIL, 2017a).

Na BNCC-EM, não há orientações a respeito dos conteúdos a serem trabalhados a cada ano, afirmando que “os currículos das escolas serão compostos pela BNCC e pelos itinerários formativos que serão ofertados pelas escolas” e

“deverão ser organizados por meio da oferta de diferentes arranjos curriculares, conforme a relevância para o contexto local e a possibilidade dos sistemas de ensino”

(BRASIL, 2018).

A legislação que regulamenta os itinerários formativos por meio da lei 13.415 e das Diretrizes Curriculares Nacionais do Ensino Médio (DCNEM/18) não assegura a obrigatoriedade dos sistemas de ensino a ofertarem todas as áreas específicas de conhecimento. Assim, caberá ao estudante a escolha por áreas flexíveis do currículo.

Carvalho et al. (2017) afirma que tal reforma adquire potencial destrutivo no público brasileiro pela ausência de um sistema de educação nacional que ofereça o mínimo de unidade ao promover a fragmentação identitária do Ensino Médio.

Cesar Callegari, sociólogo e ex-presidente da comissão encarregada em analisar a BNCC do Ensino Médio, no Conselho Nacional da Educação (CNE), ressalta:

No documento preparado pelo MEC, com exceção de língua portuguesa e matemática (que são importantes, mas não as únicas), na sua BNCC desaparece a menção às demais disciplinas cujos conteúdos passam a ficar diluídos no que se chama de áreas do conhecimento. Sem que fique minimamente claro o que deve ser garantido nessas áreas. Contudo, sabemos que os direitos de aprendizagem devem expressar a capacidade do estudante de conhecer não só conteúdos, mas também de estabelecer relações e pensar sobre eles de forma crítica e criativa. Isso só é possível com referenciais teóricos e conceituais. Ao abandonar a atenção aos domínios conceituais próprios das diferentes disciplinas, a proposta do MEC não só dificulta uma visão interdisciplinar e contextualizada do mundo, mas pode levar à formação de uma geração de jovens pouco qualificados, acríticos, manipuláveis, incapazes de criar e condenados aos trabalhos mais simples e entediantes, cada vez mais raros e mal remunerados4.

Neste contexto, corre-se o grande perigo do componente Arte, em especial a música, dissolver-se entre as grandes áreas de conhecimento do Ensino Médio, tornando-se, segundo Peres (2017), “apenas uma disciplina que ajudará na compreensão dos conteúdos de Língua Portuguesa ou Literatura, sendo negligenciados seus conteúdos próprios” (PERES, 2017, p. 30-31).

Iavelberg (2018, p. 75) observa que “na BNCC há maior diferença de extensão entre o componente Arte e os demais componentes e áreas, sendo Língua Portuguesa e Matemática os mais privilegiados”. Além disso, a autora pondera que essa

“descontinuidade denota uma desvalorização da Arte no currículo escolar e está relacionada à exclusão do componente das avaliações de aprendizagens dos sistemas de ensino” (IAVELBERG, 2018, p. 76).

4 Disponível em: https://www.epsjv.fiocruz.br/carta-aos-conselheiros-do-conselho-nacional-de-educacao-cesar-callegari-renuncia-a-presidencia-da. Acesso em: 10 jan. 2022.

Logo na introdução da área de Linguagens e suas Tecnologias, o texto do documento se refere à Arte como “área do conhecimento humano que contribui para o desenvolvimento da autonomia reflexiva, criativa e expressiva dos estudantes, por meio da conexão entre o pensamento, a sensibilidade, a intuição e a ludicidade.”

Outrossim, afirma que é “na aprendizagem, na pesquisa e no fazer artístico que as percepções e compreensões do mundo se ampliam” (BRASIL, 2018).

Chama a atenção o uso das expressões: “sensibilidade”, “intuição”, “ludicidade”

e “fazer artístico” que, segundo Peres (2017), configuram-se como práticas expressivas individualizadas de cunho meramente estético, desconsiderando a dimensão crítica e conceitual da Arte.

De acordo com Pedrosa (2011), considerar a arte como conhecimento implica a obtenção de informações sobre o contexto cultural em que a obra foi realizada, sua história e seus elementos formais que integram a produção artística. Afinal, somente os sentimentos, paixões e sensações são insuficientes para promover um conhecimento amplo.

A competência 6 da área de Linguagens e suas Tecnologias sugere ao estudante: “Apreciar esteticamente as mais diversas produções artísticas e culturais, considerando suas características locais, regionais e globais.” (BRASIL, 2018, p. 482) Assim, diante da grande produção sobre as dimensões sociais, culturais e políticas da Arte, considerou-se somente a dimensão estética.

Ao tratar especificamente da música, veremos como ela aparece no texto da BNCC do Ensino Médio. A ABEM ao refletir sobre o ensino de música descrito no documento na referida etapa da Educação Básica diz que:

As direções para a implementação e o desenvolvimento do ensino de música no ensino médio, conforme aponta a terceira versão da BNCC, são alarmantes, pois são apenas 15 o número de ocorrências do termo “Música”

na BNCC-EM. Dessas, são apenas 4 menções a respeito de como a subárea pode ser tratada na educação básica (ABEM, 2018).

Perante as possibilidades de interligação das áreas de conhecimento, o texto traz o termo “musicalidades”, apresentando-o como uma possibilidade descontextualizada que se articula entre as áreas do conhecimento ligadas aos

“núcleos de criação artística” que:

desenvolvem processos criativos e colaborativos, com base nos interesses de pesquisa dos jovens e na investigação das corporalidades, espacialidades, musicalidades, textualidades literárias e teatralidades presentes em suas vidas e nas manifestações culturais das suas comunidades, articulando a prática da criação artística com a apreciação, análise e reflexão sobre referências históricas, estéticas, sociais e culturais (artes integradas, videoarte, performance, intervenções urbanas, cinema, fotografia, slam, hip hop etc.) (BRASIL, 2018, p. 472).

Ainda que a noção de pluralidade esteja apontada, é somente na proposta de Núcleos de Criação que a música é mencionada de forma vaga e aleatória num contexto pouco propositivo, desvalorizando-a em sua singularidade, reduzindo-a a um meio de entretenimento.

A música, segundo o documento, é parte integrante da manifestação juvenil.

Localizada dentro das linguagens artísticas, no campo da vida pessoal, aponta para a habilidade de:

(EM13LP20) Produzir, de forma colaborativa, e socializar playlists comentadas de preferências culturais e de entretenimento, revistas culturais, fanzines, e-zines ou publicações afins que divulguem, comentem e avaliem músicas, games, séries, filmes, quadrinhos, livros, peças, exposições, espetáculos de dança etc., de forma a compartilhar gostos, identificar afinidades, fomentar comunidades etc (BRASIL, 2018, p. 502).

Ela também está presente em um dos parâmetros para a organização/progressão curricular no campo artístico-literário:

Diversificar, ao longo do Ensino Médio, produções das culturas juvenis contemporâneas (slams, vídeos de diferentes tipos, playlists comentadas, raps e outros gêneros musicais etc.), minicontos, nanocontos, best-sellers, literatura juvenil brasileira e estrangeira, incluindo entre elas a literatura africana de língua portuguesa, a afro-brasileira, a latino-americana etc., obras da tradição popular (versos, cordéis, cirandas, canções em geral, contos folclóricos de matrizes europeias, africanas, indígenas etc.) que possam aproximar os estudantes de culturas que subjazem na formação identitária de grupos de diferentes regiões do Brasil (BRASIL, 2018, p. 514).

A habilidade relacionada a esse parâmetro destaca uma concepção rasa e limitada do fazer artístico musical, reduzido à “participação de eventos” “socialização de produção individualizada” e “interpretação de obras de outros”:

(EM13LP46) Participar de eventos (saraus, competições orais, audições, mostras, festivais, feiras culturais e literárias, rodas e clubes de leitura, cooperativas culturais, jograis, repentes, slams etc.), inclusive para socializar obras da própria autoria (poemas, contos e suas variedades, roteiros e microrroteiros, videominutos, playlists comentadas de música etc.) e/ou interpretar obras de outros, inserindo-se nas diferentes práticas culturais de seu tempo (BRASIL, 2018, p. 515).

Assim, salienta Del-Ben (2016, p. 5), que “enfatizar a experiência estética traz o risco de enfatizar também a relação do sujeito individual com a obra, e não a relação entre pessoas, mediada pela obra.”

Obra pode ser reduzida a “coisa”. O uso da expressão “obra” sugere ênfase no produto, a valorização da produção do artista. Não há produto sem processos a ele subjacentes, mas, como, na educação básica, o que se busca é a formação de sujeitos, parece-me que a ênfase deveria estar nos processos, nas ações e interações que levam à “produção do produto”. Na escola, o protagonismo é dos estudantes, e não dos artistas e sua produção.

O que se busca é a formação de sujeitos, e não a formação de público. É preciso ampliar e aprofundar o repertório de experiências, e não necessariamente o repertório de obras (DEL-BEN, 2016, p. 5-6).

Segundo Peres (2017), a concepção de Arte contida na BNCC não contém a preocupação de oferecer aos estudantes um entendimento mais sólido sobre os conteúdos do processo artístico. Assim, terão uma formação cerceada que não contribuirá para o aprofundamento da dimensão crítica da Arte e da sociedade.

1.4 Implicações da BNCC na formação e na atuação dos professores de

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