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Educar para o pensar/julgar

PARTE I – OS DIREITOS HUMANOS E A EDUCAÇÃO EM HANNAH ARENDT

2.3 Educar para o pensar/julgar

O julgamento de Eichmann levou Arendt a concluir que a incapacidade de o acusado julgar sobre seus atos abomináveis é resultado de sua incapacidade de pensar. Ao enunciar que, no Totalitarismo, estamos diante de questões que não podem ser respondidas com as categorias do passado, Arendt aponta que há uma crise no pensamento – e na educação – derivada da quebra com a tradição, que se configura em uma lacuna entre o passado e o futuro.

Talvez entre os maiores desafios da educação contemporânea esteja, frente a esse contexto extremo revelado pelo Totalitarismo, o de propiciar aos

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homens o exercimento pleno de sua capacidade de pensar18 e,

consequentemente, de julgar. Ao ensinar a ler e a escrever, a escola ensina ao estudante a possibilidade de acessar o melhor que a humanidade produziu e que está acumulado na tradição. As duas faculdades que se espera que o estudante desenvolva são, em primeiro lugar, o conhecer e, em segundo lugar, o pensar. O pensar nunca está desvinculado do conhecer. Já o contrário pode acontecer: podemos ter estudantes que dominem uma quantidade significativa de informações sobre o mundo, mas que, no entanto, não desenvolvam a capacidade de pensar sobre elas em sua relação com o mundo comum e, em última instância, sobre as consequências da aplicação dessas informações.

Quando pensamos em educação para adultos, admitimos inicialmente que tratam-se de pessoas que não tiveram acesso à educação institucional no tempo adequado (na infância e na adolescência) e, portanto, não passaram por esse estágio fundamental que cabe à educação institucionalizada cumprir: do bom acolhimento aos novos ao mundo, apresentando-o em suas diversas dimensões e possibilidades a partir do que melhor se produziu – e então merece ser ensinado – pela tradição. Destaca-se precavidamente que não ter frequentado a escola não significa não ter sido educado. Significa apenas que esse período de formação foi desempenhado por outras instituições: pela família, pela comunidade, pelas companhias de convivência. Porém, cabe ressaltar que, na república, a escola é a instituição preparada para tal e é nela que se deposita todo esforço para o bom acolhimento dos infantes. Uma pessoa que não passou pelos bancos escolares, provavelmente tem uma carência que lhe limitará o acesso ao mundo comum e ao exercício pleno da cidadania. Ademais, não passar pela escola a deixará mais distante da obra humana, possivelmente terá menos condições de compreender o desenrolar dos acontecimentos do mundo humano. Considerando que o mundo humano em nenhuma hipótese é congruente com o mundo natural – é expressamente um mundo não natural – então, estar mais distante da obra

18 Destacamos que a faculdade do pensar apresenta-se aqui como forma de propiciar ou até mesmo de exigir o exercício do pensamento que, por sua vez, se torna condição do julgar. Não se trata, portanto, de se “ensinar a pensar”, tampouco de um “pensar certo” de acordo com um pensamento modelar. No desenvolvimento dos temas “religião” e “educação”, nos capítulos subsequentes, notaremos tal diferenciação de concepções.

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humana lhe conferirá maior chance de não alcançar o expoente do humano que é a atividade do pensamento.

Arendt afirma peremptoriamente, no capítulo em que trata especialmente de educação no livro Entre o Passado e o Futuro, que não se pode educar adultos, caso se leve em consideração que a função da escola é ensinar aos novos como o mundo é. Então, resta-nos avançar na obra da autora para entendermos como, sem perdermos a linha de seu pensamento, é possível concebermos a tarefa da escola quando os estudantes são adultos. Uma alternativa plausível nos parece ser indicada ao abordar a questão da educação a partir da elaboração do conceito de cultura, atribuindo o ser culto à maior ou menor capacidade de julgar por razão própria, independente e livre. Para elaborar essa abordagem, segue ela no diálogo com Kant e com os clássicos gregos. Discutindo a crise moderna, que também se revela na cultura, Arendt escreve sobre a eclosão da cultura de massas e a justapõe aos conceitos clássicos de cultura. Assim, estabelece uma relação necessária entre liberdade de pensamento e juízo.

Para pensar a cultura é imprescindível analisar a relação de cada povo com a arte.19 O surgimento da sociedade de massas na Modernidade provocou

uma relação inédita com a arte, substituiu a cultura pela diversão, transformou os objetos culturais em mercadorias a serem consumidas. A durabilidade da obra de arte é substituída pelo imediatismo dos bens de consumo de diversão e lazer. Em outro extremo, houve, na Modernidade, um movimento de elitização da cultura, que monopolizou conceitos da expressão artística para interesses próprios das classes superiores, caracterizado como “filisteísmo” (ARENDT, 1997, p. 253). Esse movimento visava o acesso à cultura como representação de um elemento de identificação de classe social. Tanto a cultura de massa, que renega a cultura em favor do consumo de bens de diversão, quanto o filisteísmo, que usa a cultura como distinção de uma elite, acabaram por distanciar a cultura de suas definições clássicas e ameaçar o próprio mundo cultural.

19 “Qualquer discussão acerca de cultura deve de algum modo tomar como ponto de partida o fenômeno da arte” (ARENDT, 1997, p. 262).

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A cultura é o modo possível de relação de cada ser humano com o mundo. É conhecendo a cultura que cada criança vai humanizar-se e compartilhar do mundo que herdou da tradição. A Modernidade pôs em risco justamente toda a ligação com a tradição ao deturpar a relação das pessoas com a cultura. “A cultura relaciona-se com objetos e é um fenômeno do mundo; o entretenimento relaciona-se com pessoas e é um fenômeno da vida” (ARENDT, 1997, p. 260). Houve uma funcionalização da cultura, como se fosse competência dela a satisfação de necessidades vitais (ou de lazer ou de distinção social) e, consequentemente, um distanciamento das questões mais nobres da humanidade, construída ao longo dos séculos e guardadas na tradição.

Arendt busca na tradição o significado da palavra cultura para concluir sua consequente relação com a atividade política. Os gregos e os romanos concebiam a cultura distinguindo o cultivo da natureza (relação com a terra e atendimento às necessidades vitais) do cultivo da arte e da política. Defende ela que o culto à arte e à beleza entre os gregos e romanos equivale a um mundo que não é o das necessidades imediatas, mas da contemplação. Assim, arte e política são fenômenos do mundo público (ARENDT, 1997, p. 272) e se manifestam de forma livre das necessidades vitais e, por decorrência, em condições de serem julgados por sua beleza, ou seja, pelos valores em si mesmos, de forma não utilitária. Na Modernidade, conforme interpreta Lafer, “diluiu-se a tradicional distinção entre natureza e cultura” (LAFER, 1988, p. 12), já que a técnica ambiciona recriar todos os processos naturais e, além disso, a vida humana foi resumida a valores funcionais, em que tudo (inclusive a arte, transformada em diversão e lazer) está ligado “ao processo biológico vital”. Disso deriva que, com a crise da Modernidade, a política, assim como a arte, perdeu um espaço de distinção e dignidade. Fazemos essa menção sobre a crise na cultura, pois há vinculação, indicada por Arendt, na relação que se tem com a arte e a faculdade do juízo, ou seja, com a possibilidade de fazer escolhas.

Na concepção clássica de cultura podemos identificá-la em sua relação com a capacidade de fazer escolhas. Ao se referir sobre fazer escolhas das companhias e pensamentos tanto no passado quanto no presente, é possível

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supor que os romanos indiquem que conhecer a obra humana seja uma forma de melhor discernir quando desafiado por seu tempo a julgar e decidir.

De qualquer maneira, podemos recordar aquilo que os romanos – o primeiro povo a encarar seriamente a cultura, à nossa maneira – pensavam dever ser uma pessoa culta: alguém que soubesse como escolher sua companhia entre homens, entre coisas e entre pensamentos, tanto no presente como no passado (ARENDT, 1997, p. 281).

Continuemos a perseguir o pensamento de Arendt (2004, p. 257) investigando sobre a relação entre a atividade do pensamento e a faculdade do juízo. Em 1971, a autora conclui o texto Pensamento e considerações morais (ARENDT, 2004, p. 257), apoiada em Kant20, em que indica a relação da

faculdade do pensar e a faculdade do julgar:

A faculdade de julgar os particulares (como Kant a descobriu), a capacidade de dizer “Isto está errado”, “isto é belo etc.”, não é a mesma coisa que a faculdade do pensar. O pensar lida com os invisíveis, com representação de coisas que estão ausentes; o julgar sempre diz respeito a particulares e a coisas próximas. Mas os dois estão interligados de um modo semelhante como a consciência de si mesmo (consciousness) e a consciência (conscience) estão interligadas.

Em seguida, Arendt conceitualiza o julgar como o “subproduto do efeito liberador do pensar”, ou seja, o julgar empresta materialidade ao pensamento no mundo das aparências, ou ainda, o julgar é a manifestação do pensamento no mundo comum, no campo das relações da vida real.

Se o pensar, o dois-em-um do diálogo silencioso, realiza a diferença dentro de nossa identidade como ela é dada na consciência de si mesmo (consciousness), e desse modo resulta na consciência como seu subproduto, então o julgar, o subproduto do efeito liberador do pensar, empresta realidade ao pensar, torna-o manifesto no mundo das aparências, no qual nunca estou sozinho e sempre ocupado demais para ser capaz de pensar (ARENDT, 2004, p. 257).

20 Conforme Arendt, Kant estabelece a razão como a consciência (conscience) a nos dizer o que fazer e do que nos arrepender. Essa consciência se relaciona com a consciência de nós mesmos (consciousness), que implica na identificação da necessária existência do outro. É na atividade do pensamento – que somente é possível ao se estar só – que a consciência aparece como um pensar sobre as consequências de uma ação. Então, o que nos evita a fazer algo não desejável “é a antecipação da presença de uma testemunha que o aguarda apenas se e quando ele vai para casa” (ARENDT, 2004, p. 255). Na Crítica ao Juízo, Kant denominou de mentalidade alargada o “um modo de pensamento ao qual não bastaria estar em concórdia com o próprio eu, e que consistia em ser capaz de ‘pensar no lugar de todas as demais pessoas’” (ARENDT, 1997, p. 274).

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Ainda, no mesmo parágrafo das citações acima, a autora conclui, atribuindo ao pensamento, em sua potencialidade de manifestar-se como capacidade de julgamento, o poder de impedir catástrofes na política (como o Totalitarismo, por exemplo). Mas podemos deduzir que ela se refere também a assuntos de nível individual, em que catástrofes particulares podem ser evitadas.

A manifestação do vento do pensamento não é o conhecimento; é a capacidade de distinguir o certo do errado, o belo do feio. E isso, na verdade, pode impedir catástrofes, pelo menos para mim, nos raros momentos em que as cartas estão abertas sobre a mesa (ARENDT, 2004, p. 257).

Como já referido em outros momentos do texto, Arendt sempre escreve a partir da perspectiva republicana, preocupada com o mundo comum em que a política é o espaço das manifestações individuais. É nesse contexto que ela atesta que a faculdade do pensar, como somente experiência individual, do ego pensante, como de certa forma também a sede do conhecimento, torna-se atividade política ao transformar-se em faculdade do julgar. Arendt mostra-se preocupada com a incapacidade e a recusa em julgar que tomou conta da maioria (inclusive dos intelectuais) com a crise da Modernidade. Inclusive, mais uma vez reitera que a capacidade de julgar não é o resultado necessário da atividade do conhecer, em uma carta que escreveu a Jaspers: “Mesmo pessoas boas e no fundo valorosas têm, em nossa época, um medo extraordinário em relação a emitir juízos. Essa confusão a respeito do juízo pode vir de mãos dadas com uma inteligência firme e forte, assim como o bom juízo pode ser encontrado em quem não possua inteligência” (YOUNG-BRUEHL, 1997, p. 303).

Mesmo respeitando a ressalva de que ao escrever sobre a “banalidade do mal” Arendt não postulava estabelecer um conceito ao qual se aplicam situações corriqueiras, é possível pensarmos no mal como produto da atitude – comum em nossos tempos – de evitar o diálogo consigo mesmo, do que deriva a ausência da faculdade do pensamento e, em última instância, da faculdade do julgar. Como vimos, o acesso ao conhecimento, desprovido da capacidade de pensar e de julgar, não garante tal tomada de consciência (necessária para decidir em fazer ou não algo não desejável). Assim, justifica continuarmos pensando em como a educação, ao colocar as pessoas em contato com a obra humana acumulada na tradição, possibilita que se tornem mais cultas – no sentido de se reconhecerem

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como parte da humanidade e, portanto, assumir compromisso e responsabilidade para com ela, permitindo que seu raciocínio não se limite ao metabolismo da vida como espécime – pode desenvolver as faculdades do pensar e, em consequência, do julgar? Nesse caso, o julgar se apresentaria em uma perspectiva alargada, tendo como pressuposto necessário “o nós”.

É o mundo comum que está em jogo ao se considerar a capacidade ou não da faculdade do juízo. A faculdade do julgar, inerente à tomada de decisões razoáveis sobre nossas atitudes, é considerada por Arendt “a mais política das capacidades espirituais humanas” (2004, p. 257). Os gregos já haviam percebido, como Kant bem sintetizou,

“a faculdade de ver as coisas não apenas do próprio ponto de vista mas na perspectiva de todos aqueles que porventura estejam presentes; que o juízo pode ser uma das faculdades fundamentais do homem enquanto ser político, na medida que lhe permite se orientar em um domínio público” (ARENDT, 1997, p. 275).

Numa sociedade, a carência de boa formação educacional tem conseqüência na constituição moral das pessoas, o que nos leva a buscar compreender seus problemas estruturais e conjunturais, compreendendo assim os déficits culturais e sociais em torno do valor da vida e da valorização da capacidade de pensamento e participação no mundo público.

Recuperar a questão da faculdade do pensar e do julgar apresenta-se como fundamental para se pensar processos de formação humana. O trabalho da educação (em se tratando de educação para adultos, isso se torna ainda mais evidente) deve ser colocado na linha da formação de um horizonte mais amplo de percepções acerca da vida, conferindo ao sujeito condições de deliberar com critérios menos restritos. Na medida em que as pessoas se tornam mais cultas, através da educação, ampliam-se as bases para compreender a própria vida e o mundo.

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PARTE II – A EDUCAÇÃO NOS PRESÍDIOS: O EX-DETENTO E O