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A educação nos presídios e os direitos humanos

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Academic year: 2021

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0 UNIJUÍ – UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO ESTADO DO RIO

GRANDE DO SUL

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM EDUCAÇÃO NAS CIÊNCIAS – MESTRADO

A EDUCAÇÃO NOS PRESÍDIOS E OS DIREITOS HUMANOS

LUÍS CARLOS ROSSATO

ORIENTADOR: PROFESSOR DOUTOR PAULO EVALDO

FENSTERSEIFER

IJUÍ (RS)

2015

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LUÍS CARLOS ROSSATO

A EDUCAÇÃO NOS PRESÍDIOS E OS DIREITOS HUMANOS

Dissertação final do Curso de Mestrado em Educação nas Ciências da UNIJUÍ – Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul.

ORIENTADOR: PROFESSOR DOUTOR PAULO EVALDO

FENSTERSEIFER

IJUÍ (RS)

2015

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A comissão abaixo assinada aprova a presente dissertação

A EDUCAÇÃO NOS PRESÍDIOS E OS DIREITOS HUMANOS

elaborada pelo mestrando

LUÍS CARLOS ROSSATO

como requisito parcial para obtenção do grau de

MESTRE EM EDUCAÇÃO NAS CIÊNCIAS.

COMISSÃO EXAMINADORA:

Professor Doutor Paulo Evaldo Fensterseifer (Orientador – UNIJUÍ)

Professor Doutor José Pedro Boufleuer (UNIJUÍ)

Professor Doutor Sidnei Pithan da Silva (UNIJUI)

Professor Doutor Rosalvo Schütz

(Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE)

Ijuí, 28 de agosto de 2015. Rio Grande do Sul

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AGRADECIMENTOS

Agradeço o apoio e o empenho de todos que partilharam comigo da iniciativa e da efetiva participação no Curso de Mestrado em Educação nas Ciências, distintamente à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), instituição financiadora da pesquisa.

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RESUMO

O estudo desta dissertação tematiza o lugar e o sentido da educação no universo do sistema prisional brasileiro. Vale-se dos escritos de Hannah Arendt para configurar o significado dos direitos humanos e da educação no contexto das instituições republicanas e a articulação desses temas na constituição do mundo humano e da cidadania como acesso ao mundo público e comum. Investiga, de forma particular, o Método APAC como forma de experiência alternativa de tratamento prisional e que tem obtido êxito no processo de reinserção social dos apenados, corroborado pelo baixo índice de reincidência na criminalidade dos egressos. O estudo reflete sobre a forma como a religião está presente no Método APAC, pois aposta que a educação republicana, promotora do contato com a tradição do pensamento acumulado na cultura, poderia cumprir um papel mais amplo e fecundo na capacidade de pensar e de julgar de forma alargada. Aposta também que o envolvimento integral do sujeito com um possível método educativo, tanto com a educação de adultos quanto com a reabilitação dos apenados, seja a chave para que o sujeito, considerado em sua totalidade, consiga se reposicionar no mundo, sinta-se partícipe do mundo comum, que possa, inclusive, agir politicamente, e assim viver plenamente sua condição de cidadania.

Palavras-chave: Educação. Direitos Humanos. Cidadania. Presídios. Método APAC. Método Educativo.

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ABSTRACT

The study of this dissertation thematizes the place and the meaning of education in the Brazilian prison system universe. It draws on the writings of Hannah Arendt to configure the meaning of human rights and education in the context of republican institutions and the articulation of these themes in the constitution of the human world and of citizenship as access to public and common world. It investigates, in particular, the APAC method as an alternative experience of prison treatment that has been successful in the process of social reintegration of convicted people, and that is corroborated by the low recidivism rate in the crime of the convicted who already served their time. The study reflects on how religion is present in the APAC method, because it bets that the Republican education, promoter of the contact with the tradition of accumulated thought in culture, could fulfill a wider and fruitful role in the capacity to think and judge in an enlarged way. It also bets that the full involvement of the subject with a possible educational method, both with adult education and with the rehabilitation of convicted people, can be the key to the subject, considered in his entirety, be repositioned in the world, feel participant of the ordinary world, and even have political acting, and thus fully live his citizenship condition.

Keywords: Education. Human Rights. Citizenship. Prisions. APAC method. Educational method.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 8

PARTE I – OS DIREITOS HUMANOS E A EDUCAÇÃO EM HANNAH ARENDT ... 14

1 A CIDADANIA E O ESPAÇO PÚBLICO: O DIREITO A TER DIREITOS ... 15

1.1 Hannah Arendt – Os direitos humanos e a ruptura com a tradição ... 15

1.2 Os direitos universais e a nacionalidade ... 16

1.3 O não pertencimento a uma comunidade: os apátridas e minorias ... 17

1.4 Cidadania: o acesso ao espaço público como condição do direito a ter direitos ... 19

1.5 Problemas contemporâneos: a moderna exclusão do mundo comum ... 21

2 A EDUCAÇÃO E A CONSTITUIÇÃO DO HUMANO NA OBRA DE ARENDT ... 23

2.1 O acolhimento aos novos no mundo ... 23

2.2 Eichmann em Jerusalém: a ausência da capacidade de julgar ... 30

2.3 Educar para o pensar/julgar ... 32

PARTE II – A EDUCAÇÃO NOS PRESÍDIOS: O EX-DETENTO E O ACESSO AO MUNDO COMUM ... 39

1 A EDUCAÇÃO E OS DIREITOS HUMANOS NA LEGISLAÇÃO E NAS POLÍTICAS DE ESTADO ... 40

1.1 Os direitos humanos na sociedade ... 40

1.2 Educar para os direitos humanos ... 41

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7 2 RADIOGRAFIA DO SISTEMA PRISIONAL CONVENCIONAL (E A

EDUCAÇÃO) ... 45

2.1 O perfil do apenado ... 46

2.2 O problema da reincidência ... 51

2.3 A educação nas penitenciárias convencionais ... 53

2.4 A educação e a desigualdade social ... 55

2.5 A história de Lacir Ramos, o Folharada ... 56

2.6 A educação, o pensar e o julgar (ou a educação necessária nas cadeias) ... 61

3 O MÉTODO APAC: UMA PERSPECTIVA DIFERENTE DE CUMPRIMENTO DE PENA ... 65

3.1 A constituição das APACs ... 66

3.2 O Método APAC ... 67

3.3 Impressões de uma visita (Destaques a partir da visita de estudos) ... 69

3.4 A religião como elemento de ligação ... 71

3.5 Todo ser humano é recuperável ... 73

3.6 A educação no Método APAC ... 74

3.7 Uma proposta de educação para os adultos aprisionados ... 77

3.8 O retorno ao convívio em liberdade / O ex-detento e a atividade do pensar ... 79

CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 82

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INTRODUÇÃO

Hannah Arendt sempre preferiu se autodescrever como uma pensadora da política, de tradição republicana. No entanto, é inconteste que sua obra é também filosófica. Escreveu sobre política e filosofia com a propriedade de quem esteve muito envolvida com as grandes questões de seu tempo e muito ligada à tradição do pensamento ocidental. Tanto na política quanto na filosofia soube buscar os fundamentos para compreensão dos acontecimentos marcantes da Modernidade. Com singularidade viveu, estudou, pensou e lançou luzes para a compreensão do Totalitarismo, segundo ela, a maior tragédia da humanidade. Ao compreender o passado, apoiado na tradição, se pode entender o presente e pensar no futuro. É isso que Arendt faz, mostra inclusive os limites da Modernidade que, no campo intelectual, ao romper com a tradição de forma abrupta, estabelece uma crise profunda no mundo contemporâneo. Pensar os problemas contemporâneos à luz da obra de Arendt é demasiado desafiador, seja pelo fato de não associar-se a correntes políticas, seja pela autenticidade de seu pensamento. No entanto, essa tarefa é muito profícua, tanto pela vastidão de sua obra, quanto por não ter aridez em seu pensamento, que a cada volta se abraça a discutir com coragem os acontecimentos de seu tempo. Sua obra nos autoriza a pensar com autenticidade e bem firmados na tradição do pensamento ocidental que, por meio dela, oferece sustentação para as reflexões necessárias. Importante salientar que não se deve tomar a obra arendtiana como doutrina, mas como inspiração de pensamento crítico e consequente.

No intuito de pensarmos os problemas contemporâneos à luz de sua obra, pode-se cometer incoerências – que talvez fossem inevitáveis dada a força que seus pensamentos tiveram e o consequente impacto no pensamento contemporâneo – das quais Arendt nos previne. Sobre o Totalitarismo – fenômeno inédito de forma de governo e dominação, que ela compreendeu de forma autêntica – preveniu que, embora uma tragédia seja sempre possível, a qualquer tempo e lugar, não se pode fazer análises de qualquer sociedade,

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recortando características isoladas que se equiparam ao evento totalitário e disso concluir que ele se reeditará aqui ou acolá. Sempre precavida, preferiu alertar que se evitassem generalizações de seu pensamento para tentar evidenciar que uma nação está mais ou menos propensa a chegar a tal experiência extrema que a Modernidade experimentou. A mesma precaução Arendt enfatizou sobre o termo banalidade do mal, que firmou ao tempo em que buscava compreender a postura de Eichmann em seu julgamento sobre os crimes cometidos durante o Nazismo contra o povo judeu. Nessa situação, o alerta foi ainda mais contundente: segundo ela, o termo se aplicou em um caso específico, não cabia a ele o espectro de conceito acerca de uma qualidade humana que pode ser generalizada e estudada como fenômeno em que se enquadrem comportamentos congêneres.

Fazemos tal ressalva ao mesmo tempo em que justificamos nossa escolha da obra de Arendt como orientadora de reflexões sobre os direitos humanos em nosso tempo, com desdobramentos de seu pensamento na educação e, em última instância, na análise de um problema real da sociedade brasileira que é o tratamento dispensado aos presos no sistema prisional. Em alguns momentos, nos sentimos inspirados a avançar em reflexões sobre os problemas cotidianos, buscamos apoio no pensamento de Arendt, e temos a sensação de estar arriscando ultrapassar os limites de sua concordância. No entanto, é o próprio legado de Arendt que nos autoriza a navegar por caminhos não trilhados a partir da obra que se herdou. Quem nos conforta também nessa angústia de ter ou não ultrapassados os limites da tolerância da autora na leitura de sua obra é Mário Osório Marques, quando escreve que a obra sempre está para o mundo mais do que está para o autor. Uma vez escrita, passará pelo crivo não mais de quem a escreveu, mas de quem a lê e a interpreta. Ao escrever, é como se estiverem sobre nossos ombros, de olho esticado, a fitar o que escrevemos, o leitor. Com ele e com as interpretações de sua leitura está toda a tradição, tudo o que foi pensado e escrito, e todo o potencial de pensamento e novidade que é congruente aos novos que virão ao mundo.

Escrever sobre temas relevantes é uma forma – muito adequada – de prestigiá-los e submeter nossa contribuição ao crivo dos demais. A escolha do

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que vamos escrever sempre se liga com as preocupações que temos com a humanidade. Por isso, trazemos ao espaço público a educação no sistema prisional, com seus desdobramentos a partir da obra arendtiana. Não temos a pretensão de apresentar soluções a problemas complexos que se enredam em torno do tema, mas o intuito de propor a sensibilização e o bom debate, bem como refletir conjuntamente sobre a busca de soluções possíveis.

Na parte inicial de nosso trabalho, escrevemos sobre as concepções de direitos humanos e educação a partir de Arendt, que tem sempre como pano de fundo ou ponto de partida a república: sua obra sempre parte do horizonte da república para pensar em como se assentam tais temas. É na república, com uma Constituição bem definida, que é possível se acreditar no enfrentamento dos problemas políticos da humanidade. Dessa forma, fizemos também o caminho para saber como o problema específico do tratamento aos presos se dá no Brasil e, em decorrência, como é possível combater a criminalidade e a sujeição dessas pessoas a reincidirem na criminalidade. Para isso, fizemos uso das categorias de Arendt acerca da condição humana, de acesso ao mundo comum e da faculdade do juízo, para elaborar nossa aposta de que a educação possa tornar as pessoas mais cultas, em um sentido talhado pelos romanos, ter condições de escolher com maior lucidez sua companhia entre os homens, coisas e pensamentos, tanto no presente como no passado – ficar mais próximos da obra humana – e, por conseguinte, ter condições de direcionar com maior propriedade os seus atos.

O sistema prisional brasileiro é ineficiente, especialmente ao que concerne àquilo que deveria ser seu principal propósito: recuperar as pessoas que são presas, obviamente por terem cometido algum crime ou transgressão à lei ou à moralidade, para restabelecer (ou estabelecer de forma inédita) as condições necessárias para que essas pessoas retornem ao convívio comum e abandonem a criminalidade ou os maus comportamentos. Para além de evidenciar os problemas muito conhecidos do sistema prisional brasileiro – importante para estabelecer o contexto em que o problema e as possíveis soluções se inserem – o objetivo deste trabalho é pensar de que forma a educação, como ação institucionalizada dentro dos presídios, pode contribuir para alicerçar tal recuperação das pessoas aprisionadas.

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Tema talvez de pouco apreço popular, o sistema prisional passa longe de estar entre as principais propostas políticas de governos e ocupa pouco lugar nos debates públicos e – tanto o tema quanto a própria figura do presidiário – goza de grande preconceito por boa parte da população. Quando aparece como assunto nos meios de comunicação – geralmente em sucessivas denúncias sobre a superlotação dos estabelecimentos prisionais – a abordagem é demasiadamente rasa, se quedando apenas na questão das vagas, não se aprofunda na questão que consideramos central: como criar condições nos presídios para que as pessoas aprisionadas se recuperem? Tais abordagens, inclusive, se dão apenas quando há pressão de organizações ou instituições de direitos humanos, inclusive em nível internacional.

Os direitos humanos, especialmente após o evento totalitário, ganharam status de tema importante no mundo, galgaram espaço em organizações internacionais e estabeleceram reflexões e consequentes documentos que significam avanços importantes.

No Brasil, por ação de organizações e instituições, os direitos humanos se fortaleceram como assunto de primeira ordem, especialmente após a Ditadura Militar. Passar por um modo extremo de cerceamento das liberdades e de perseguição aos pensamentos diferentes da ordem estabelecida provocou como reação um significativo movimento de massa e intelectual que, do questionamento à repressão, deu espaço para que a discussão sobre direitos humanos rumasse avante, na direção do alargamento dos direitos dos oprimidos, do combate ao preconceito e da conquista de espaço e respeito para as minorias. Em nosso texto, citamos alguns momentos – que se materializam em documentos e se expressam na Constituição – que marcam essa trajetória.

Fazemos, neste texto, esse percurso na história contemporânea dos direitos humanos em sua relação com a educação. A educação para os direitos humanos vem ganhando espaço no Brasil, assim como nos demais países da América Latina, após o evento político de cerceamento das liberdades democráticas da Ditadura Militar, nas décadas de 1980 e 1990, marcadas pela redemocratização do país e pela forte presença dos movimentos sociais no cenário político que, consequentemente, influenciaram nos rumos da educação.

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Tal influência se vê manifestada na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e, a partir daí, nos momentos e documentos elaborados para dar o rumo da educação básica desse novo momento da história do Brasil. Assim, o tema direitos humanos aparece articulado com a Educação na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) nº 9.3941, de 20 de dezembro de 1996, e

nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), publicados a partir de 1997, por exemplo.

Ao considerarmos a abordagem arendtiana de educação como acolhimento aos novos indivíduos no mundo, nos propomos uma questão relevante: qual é o papel da educação – institucionalizada – para com os adultos? Sem a pretensão – tampouco a capacidade – de responder conclusivamente, nos dedicamos a pensar se a educação pode fazer a diferença na vida de adultos que estão em condição de cumprimento de pena, dando a eles novas perspectivas de estar e de ver o mundo? Seguimos por dois caminhos, reunindo aspectos que podem se complementar: a) como instrução de adultos, a educação deve oferecer o conhecimento das leis, a formação para o trabalho e o desenvolvimento de aptidões e habilidades práticas, pois são elas que poderão se constituir em alternativa para ter uma profissão, o que garante subsistência; b) como formação humana, a educação pode se constituir em uma aproximação cultural com a humanidade, apropriar-se da obra humana e, consequentemente, ter condições mais adequadas de, ao desenvolver a capacidade do pensamento (enquanto reflexão com a obra humana acumulada na tradição), exercer a faculdade do juízo, poder julgar com maior propriedade seus atos e, em conseguinte, poder fazer escolhas melhores. Este último aspecto, obviamente, se constitui em uma aposta que fazemos, apoiados em Arendt, e alimentados da perspectiva otimista que colocamos na humanidade.

Se a precariedade do sistema prisional brasileiro, bem como as concepções (preconceitos) acerca dos presídios e especialmente das pessoas aprisionadas, nos causa perplexidade, existem situações que alimentam nossas expectativas em um mundo melhor e na busca de soluções para tal problemática.

1 Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional 9394 de 20 de dezembro de 1996, disponível em http://portal.mec.gov.br/arquivos/pdf/ldb.pdf.

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Entre elas, destacamos uma que, ao que nos parece, tem se apresentado como uma alternativa viável: o Método APAC. Justificamos nosso otimismo tanto pela boa impressão que o Método nos causou quando o conhecemos, quanto pelos resultados expressivos que ele apresenta sobre a recuperação dos apenados, ou, recuperandos, como são denominados. O baixo índice de reincidência na criminalidade corrobora tal assertiva: de cada dez recuperandos que cumprem sua pena em uma Associação de Proteção e Assistência aos Condenados (APAC), menos de um tornará a ser preso. No sistema prisional convencional esse índice passa dos 70%. Dedicamo-nos, além de apresentar o Método APAC e refletir sobre os motivos de seus supostos resultados, a investigar sobre o papel que a educação desempenha nele, comparando-a à função exercida pela religião (especialmente) e, finalmente, a questionar se a educação, conduzida por perspectivas mais alargadas, pode ainda participar de forma mais influente no processo de recuperação e da boa reintegração à sociedade e do acesso dos indivíduos aprisionados ao mundo comum.

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PARTE I – OS DIREITOS HUMANOS E A EDUCAÇÃO EM HANNAH

ARENDT

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15 1 A CIDADANIA E O ESPAÇO PÚBLICO: O DIREITO A TER DIREITOS

1.1 Hannah Arendt – Os direitos humanos e a ruptura com a tradição

O ineditismo do evento totalitário fez com que Hannah Arendt identificasse nele elementos que o colocam em outro patamar das catástrofes patrocinadas pela humanidade até então, o que exige novos conceitos para sua compreensão. Arendt identifica no evento uma ruptura, deflagrada por uma crise profunda no mundo contemporâneo e uma quebra com a tradição. Conforme nos aponta em sua análise do julgamento de Eichmann2, o fenômeno totalitário revelou que não existem limites às deformações da natureza humana e criou novas estruturas de governo e dominação, caracterizadas por sua perversidade extrema e sem precedentes, quer seja nas tiranias ou em qualquer forma de governo autoritário. Tal dominação total foi descrita em As Origens do Totalitarismo como “uma tentativa de organizar a pluralidade humana e a diferenciação infinita dos seres humanos” (ARENDT, 1989, p. 488). Tendo os Campos de Concentração como laboratório, o Totalitarismo pretendeu mostrar que os seres humanos podem ser reduzidos a meros espécimes do animal humano e que, por meio da perda da espontaneidade – característica primordial do ser humano, que dá a capacidade de pensar, de agir e de começar algo novo – os homens, individualmente, podem ser supérfluos.

É nesse contexto que Arendt analisa o surgimento dos direitos do homem no século XVIII e sua consequente falência conceitual e prática após o evento totalitário. Vamos percorrer alguns textos de Arendt para elucidar sua compreensão acerca da cidadania como direito a ter direitos, considerando que a igualdade em dignidade e direitos dos seres humanos não lhes é dada

2 A obra Eichmann em Jerusalém foi escrita por Arendt na ocasião em que foi enviada como jornalista americana para cobrir o julgamento, em Israel, de Adolf Eichmann, carrasco nazista, responsável pela operacionalização dos Campos de Concentração, parte integrante do plano da Solução Final da Questão Judaica.

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naturalmente, mas construída pela convivência coletiva, que requer o acesso ao espaço público; e, também, para caracterizar a relação intrínseca dos direitos humanos com a soberania nacional e as Constituições como portadoras dos direitos humanos em uma república. Nessa trajetória, destacamos que Arendt avista também o risco de que, para além da solução política sobre a quem compete a garantia dos direitos fundamentais a qualquer homem no mundo, a persistência de inúmeros grupos de homens que vivem privados da cidadania, à margem dos direitos mínimos de vida digna ou que sejam vítimas do preconceito étnico ou de posição social, estejam forçados a viver fora do mundo comum, não pertençam à comunidade alguma, não sejam partícipes do artifício humano e tenham sua existência reduzida a sua elementaridade natural. Buscamos ainda compreender como a autora pensa ser possível o assentamento de condições políticas e jurídicas de possibilidade de um mundo comum, assinalada pela diversidade e pluralidade e verificada pela criatividade do novo, que deriva do exercício da liberdade, a fim de não permitir a reconstrução de um novo estado totalitário.

1.2 Os direitos universais e a nacionalidade

O advento da Era da Razão no século XVIII conferiu ao homem a superação de toda tutela da História e de Deus, o emancipou e, assim, ele atingiu a sua maioridade. A edição da Declaração dos Direitos do Homem conferia essa emancipação para o campo do Direito, o que tornou o homem a fonte de toda Lei. Definindo os direitos humanos como universais, pretensamente válidos a qualquer tempo e lugar, pois pertenceriam à própria natureza humana, a Declaração é inspirada na teoria do Direito Natural, que se fundamenta em determinados princípios considerados bens humanos evidentes em si mesmos.

Porém, a pretensão iluminista de emancipação acabou provocando uma contradição: desprovidos da proteção divina, em um tempo em que ninguém estava a salvo nos estados em que havia nascido, qual seria a instância a ser invocada para garantir tais direitos aos homens, independentemente de qual parte do mundo habitassem? Para eles – os iluministas – o próprio homem seria a

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origem e o objetivo último da Declaração e de todas as leis. Presumia-se que nenhuma lei especial seria necessária para protegê-los, pois se supunha que todas as leis se baseavam neles (nos homens), o que indicava a soberania do homem em questão de lei, materializada na soberania do povo e na garantia do direito do povo ao autogoverno (agora livre do jugo dos deuses e da história). Pois o homem, recém-emancipado e que levava em si a sua dignidade, acabou por diluir-se no meio do povo, guardado na soberania popular e nacional. Nessa situação se evidencia o maior limite do intento iluminista: “no momento em que os seres humanos deixavam de ter um governo próprio, não restava nenhuma autoridade para protegê-los e nenhuma instituição disposta a garanti-los” (ARENDT, 2000, p. 325). As tentativas de entidades internacionais de investir-se de autoridades paralelas aos governos nunca vingaram3, seja pela oposição dos

governos ou das próprias nacionalidades que se negavam a reconhecer algo fora dos direitos nacionais, garantidos pela pátria-mãe.

A experiência totalitária consiste na inauguração do “tudo é possível”, que levou pessoas a serem tratadas como supérfluas e descartáveis. Essa possibilidade se deu jure e de facto4. Nisso se revela a ruptura com os padrões e categorias que constituíam a tradição ocidental baseada na ideia de um direito natural.

Em suma, os direitos humanos foram conjugados à soberania nacional, ou seja, os valores sociais, espirituais e religiosos não foram suficientes para garantir a efetivação dos direitos do homem, inspirados na Declaração homônima, visto que somente são possíveis dentro de uma nação e sob uma Constituição.

1.3 O não pertencimento a uma comunidade: os apátridas e minorias

Após a Primeira Guerra Mundial, a situação política da Europa se agravou, eclodiu a inflação, o desemprego e as guerras civis que desencadearam um

3 Os Tratados de Minorias, por exemplo, assinados na maioria dos governos europeus à época, nunca encontraram efetividade. Entregues à Liga das Nações, sem território próprio, estavam desprovidos do Estado para lhes salvaguardar.

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processo de migração de compactos grupos humanos que não eram bem-vindos e não encontravam lugar algum para se assentar. Fora de seu país, tornavam-se apátridas, permaneciam sem lar e, consequentemente, perdiam todos os seus direitos. Eram os “refugos da terra” (ARENDT, 2000, p. 300). E, um número cada vez maior de grupos, as minorias, – que por sua situação econômica e social deplorável ou por sua origem étnica haviam perdido aqueles direitos que até então eram tidos como inalienáveis e que supunha-se que a pátria lhes deveria garantir – passaram a ser um elemento fundamental no cenário.

Os apátridas, as minorias e os refugiados deixaram de gozar da proteção do Estado, pois somente os indivíduos nacionais eram considerados cidadãos e assim poderiam ser amparados pelas instituições legais. Ficavam sob regras de exceção até que fossem divorciados de sua origem e assimilados pela identidade dominante.5

Com a eclosão do Totalitarismo evidenciou-se de forma extrema a situação de uma parte considerável da humanidade que não teve lugar ao mundo. Os apátridas e as minorias ficaram desprovidos de governos que os protegessem e à mercê da absoluta ausência de lei. Consequentemente, não gozavam das garantias dos direitos humanos, nem de direito algum. Os campos de internamento, a partir dos anos 1930, passavam a ser o único espaço que o mundo reservava aos apátridas, como substituto de uma pátria. De outra forma, até a transgressão à lei acabava sendo uma forma de fugir da absoluta negligência: como criminoso – e somente assim – o apátrida estava guardado pela lei.

5 Leiamos Silvana Winckler, que conceitua as minorias, destaca o fato de que, ao serem, pela primeira vez, reconhecidos como instituição permanente, consequentemente há o reconhecimento de que milhões de pessoas necessitam de um amparo adicional para garantir seus direitos fundamentais, uma vez que estavam a margem do amparo legal normal: “As minorias surgiram na Europa, no período entre as guerras, como resultado dos tratados de paz e do movimento crescente de refugiados que seguiu às revoluções. Os tratados de paz foram um intento de regular o problema da nacionalidade na Europa oriental e meridional, mediante o estabelecimento de nações-estado e a introdução de tratado de minorias. Cerca de 30% da população europeia eram, naquele período, oficialmente conhecidos como minoria.” (WINCKLER, 2001, p. 116).

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Conforme nos ajuda a compreender Lafer6, os refugiados, as minorias e os

apátridas foram expulsos da trindade Povo-Estado-Território (LAFER, 1988, p. 21). Com a perda dos benefícios da legalidade e da cidadania, não puderam valer-se dos direitos humanos e se tornaram supérfluos e indesejáveis.

1.4 Cidadania: o acesso ao espaço público como condição do direito a ter direitos

Como podemos ver em As Origens do Totalitarismo, o ser humano, privado de seu estatuto político, perde suas qualidades substanciais e deixa de ser um semelhante em um mundo compartilhado. Pertencer a uma comunidade com amparo político e jurídico, em que possa expressar suas opiniões e ser julgado por elas, é um direito primordial que lhe garante a cidadania, ou seja, ser pertencedor a uma comunidade lhe confere o primeiro direito: o direito a ter direitos. E é na república que a ação e a liberdade no acesso ao espaço público, que configuram a política, que a Constituição torna-se a portadora dos direitos do homem.

A cidadania – tomada como direito a ter direitos, que indica a igualdade em dignidade e direitos – não é dada ao homem naturalmente, mas é construída na convivência coletiva, que requer o acesso ao espaço público. Privá-lo da cidadania significa expulsá-lo do espaço público; em outros termos, significa expulsá-lo do mundo, torná-lo supérfluo.

Ao considerar que a nacionalidade é um direito humano fundamental, nenhum homem na terra deveria estar órfão de um Estado que lhe guardasse. Os apátridas, por falta de um lugar ao mundo, acabaram levados pelo Nazismo aos Campos de Concentração, onde foram vítimas da ausência absoluta do resguardo de leis que lhes pudessem conferir a cidadania, perderam a existência humana individual e a espontaneidade, foram reduzidos a meros espécimes da raça humana.

6 Celso Lafer, um dos pioneiros dos estudos de Arendt no Brasil, escreveu em 1988 a obra A Reconstrução dos Direitos Humanos, referência na teoria do Direito.

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Observemos que o direito à vida e à liberdade, tidos como essência dos direitos humanos, somente foi violado nos Campos de Concentração após todo tipo de direito ter sido extinguido. Os judeus, antes de serem privados do direito à vida, foram privados de qualquer amparo legal. Leiamos Arendt (2000, p. 329):

A calamidade dos que não têm direitos não decorre do fato de terem sido privados da vida, da liberdade ou da procura da felicidade, nem da igualdade perante a lei ou da liberdade de opinião – fórmulas que se destinam a resolver problemas dentro de certas comunidades – Mas do fato de já não pertencerem a comunidade alguma. Sua situação angustiante não resulta do fato de não serem iguais perante a lei, mas sim de não existirem mais leis para eles; não de serem oprimidos, mas de não haver ninguém mais que se interesse por eles, nem que seja para oprimi-los. Só no último de um longo processo o seu direito à vida é ameaçado; só se permanecerem absolutamente “supérfluos”, se não se puder encontrar ninguém mais para “reclamá-los”, as suas vidas podem correr perigo.

Antes mesmo de ficarem desamparados de proteção legal, a primeira perda que os refugiados tiveram foi a do lar. E, a impossibilidade de encontrar um novo lar revela o fato de não existir lugar algum na terra onde pudessem ir. Quem não possuísse uma nacionalidade não possuía um lugar no mundo. Isso não se deve à falta de espaço ou à questão demográfica, mas à organização política. Além disso, esses refugiados não eram perseguidos pelo que tinham feito ou por natureza ideológica, mas sim, em virtude daquilo que inevitavelmente eram: sua identidade étnica, por exemplo.

Essa calamidade, referida no pensamento de Arendt, denota o fato de que os refugiados já não pertencem à comunidade alguma, de que já não existem leis para eles e não há mais ninguém interessado neles. É a perda total da cidadania conforme foi concebida pela comunidade das nações, não sendo digno de direitos e, em última instância, não sendo ninguém.

Na crítica de Arendt, a concepção recorrente do momento em que os direitos humanos foram proclamados fundou-se no homem em seu estado de natureza singular, acreditou-se que eles seriam válidos mesmo se o homem estivesse isolado da comunidade. No entanto, ao ser expulso da comunidade, o homem deixa o mundo civilizado e passa a retornar a uma condição de selvagem, expressa por Arendt como “nudez abstrata de serem unicamente humanos” (ARENDT, 2000, p. 333). Conclui-se, então, que a natureza não pode ser o fundamento de qualquer direito ou política. Ao contrário, é no espaço público, na

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relação entre iguais, que o direito, como “artifício humano”, pode ser construído. Ao enunciar que “não nascemos iguais: tornamo-nos iguais como membros de um grupo por força de nossa decisão de nos garantirmos direitos reciprocamente iguais” (Ibidem, p. 335), a autora indica que a efetivação de qualquer direito do homem passa pela política, ou seja, pelo espaço da ação e do diálogo em um mundo comum.

1.5 Problemas contemporâneos: a moderna exclusão do mundo comum

Ao final do capítulo que trata do fim dos direitos humanos7, Arendt nos alerta para a moderna exclusão do mundo comum que a humanidade opera, mesmo dentro de repúblicas com bom amparo legal, sobre um número sem conta de pessoas que se tornam um “ser humano em geral – sem uma profissão, sem uma cidadania, sem uma opinião, sem uma ação pela qual se identifique e se especifique – e diferente em geral, representando nada além de sua individualidade absoluta e singular, que, privada da expressão e da ação sobre o mundo comum, perde todo o seu significado” (ARENDT, 2000, p. 336). A autora arremata citando o perigo tanto da ameaça ao artifício humano – a nossa vida política – quanto da possibilidade de produzir bárbaros em seu próprio seio ao forçar milhões de pessoas a condições de selvageria.

Arendt aborda a necessidade de compreender os acontecimentos da primeira metade do século passado, que viveu tão intensamente e que tão originalmente interpretou como a ruptura com a tradição e que eram impossíveis de serem compreendidos pelas categorias da ética e da política da tradição Ocidental, como condição de reconciliar-se com o passado. Não com a intenção de diminuir sua gravidade ou minimizar a dor, mas de ter o “exercício do pensamento, do juízo e da escrita, como modos de ação capazes de nos dar acesso à experiência de pertencimento à realidade do mundo” (GARCIA, 2001, p. 151). É na defesa da dignidade da “política enquanto espaço fundado pela opinião e pela dignidade humana” (idem) que reside a chave de que, ao mesmo tempo

7 Trata-se de Origens do Totalitarismo, no final do Livro II Imperialismo, no capítulo 5 O Declínio do Estado-nação e o fim dos Direitos do Homem.

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em que prevenimo-nos das catástrofes sempre possíveis, também alcancemos as condições de possibilidades para que todo ser humano, em qualquer parte do planeta, esteja guardado pelos direitos humanos fundamentais.

Os homens não nascem iguais por natureza, mas tornam-se iguais como membros de um grupo, em que se constrói a decisão de assegurarem-se mutuamente os direitos iguais. Em A Condição Humana (ARENDT, 1993, p. 15), lemos:

O que assegura a singularidade do homem, o que o assegura de sua própria realidade e da realidade do mundo é, contrariamente ao dom natural, a pertença a uma comunidade, a um lugar no mundo em que se é visto e ouvido, em que a ação e a palavra têm um significado pelo fato da pluralidade humana.

Para os gregos, o conceito de cidadão refere-se a um sujeito ativo, que goza de seus direitos na medida em que tem consciência desses direitos. Não é, de forma alguma, um elemento passivo que as leis tivessem que salvaguardar, por exemplo. Disso decorre que eles não concebiam como era possível alguém estar parcialmente protegido em sua cidadania, mas que a cidadania somente era possível conforme ele fosse sujeito dela. As soluções para os problemas sociais que envolvem o cidadão, consequentemente, não podem ocupar-se de ações pontuais, são necessariamente soluções totalizantes, ou seja, o cidadão precisa estar integralmente envolvido com a solução dos problemas que lhe atingem. O acesso ao espaço público, em que ele apareça e seja percebido, fará o cidadão sentir-se partícipe do mundo comum, com condições de agir politicamente.

O espaço público da palavra e da opinião – e o acesso a ele por um elevado número de pessoas – é a condição de esperança de que os problemas do mundo em comum não deixem de ser debatidos, sob a pluralidade de perspectivas que derivam justamente da pluralidade humana. E, é dentro da república, com uma Constituição bem estabelecida, em que haja a manutenção da cidadania e do acesso aos direitos, que repousa a esperança da consolidação dos direitos do homem.

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23 2 A EDUCAÇÃO E A CONSTITUIÇÃO DO HUMANO NA OBRA DE ARENDT

2.1 O acolhimento aos novos no mundo

A escola, da forma como a concebemos hoje, é uma invenção recente. O surgimento do conceito moderno de república trouxe consigo um modelo de escola que, em suas bases conceituais, perdura até hoje. Na Revolução Francesa, Condorcet manifesta o pensamento da Modernidade acerca da educação, estabelece uma estrutura escolar que, atendendo aos preceitos da república, apresenta ao mundo novidades como a educação enquanto responsabilidade do estado, a universalização do acesso e a educação como promotora da igualdade – e, portanto, da liberdade.8 Ou seja, o surgimento do

conceito moderno de república traz a educação, como instrução pública, para o contexto político.9

Hannah Arendt, pensadora contemporânea, faz importantes observações sobre a educação, a partir da crítica à educação norte-americana e, em última instância, elabora contribuições à educação republicana. Especificamente, a autora abordou o tema apenas em dois momentos: no texto A Crise da Educação (no livro Entre o Passado e o Futuro) e em Reflexões sobre Little Rock (no livro Responsabilidade e Julgamento). Porém, o pano de fundo filosófico da obra de Arendt, em reflexões sobre a condição humana, por exemplo, contribui muito para

8 Importante ler Cinco memórias sobre a instrução pública, obra em que constam os princípios teóricos e ideológicos em que Condorcet embasou a proposta de decreto que organizaria o sistema público de instrução nacional, na instalação da república após a Revolução Francesa. Cabe destacar que não foi este o projeto escolhido pelos legisladores.

9 No texto Docência na Educação Superior, base de estudos para a disciplina homônima ministrada pelo professor José Pedro Boufleuer, lemos: “Já num período histórico mais recente, e especialmente com a instauração da moderna sociedade liberal, a educação ganha a dimensão de um fazer sistematicamente programado. Para a viabilização de uma ampla participação na dinâmica da vida econômica, política e social a educação universal se põe como condição necessária, configurando um direito do cidadão e uma responsabilidade do Estado” (BOUFLEUER, 2013, p. 2).

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debater conceitos que ajudam a estabelecer o papel da educação na tarefa de construir a república e de bem acolher os recém-chegados ao mundo.

Arendt atribui à educação a tarefa de contar o mundo às novas gerações. A cada nascimento, surge no mundo um novo ser que precisa ser recebido e que pelo qual o mundo passa a ser responsável.10 Da mesma forma, esse mesmo ser

representa para o mundo a possibilidade de renovação e de mudanças. A autora usa uma expressão contundente para representar essas duas possibilidades: tanto a criança precisa ser protegida do mundo, quanto o mundo precisa ser protegido da criança.

É prerrogativa dos adultos mostrar para a criança o mundo de forma otimista e comprometida com seu futuro, a ponto de Arendt referir que aqueles que não acreditam neste mundo não devem ter filhos ou tomar parte da educação dos filhos dos outros. A educação é responsável pela ancoragem da criança no mundo, ensina-a como o mundo é. No entanto, não cabe à educação a tarefa de instruí-las na arte de viver.

Normalmente a criança é introduzida ao mundo pela primeira vez através da escola. No entanto, a escola não é o mundo e nem deve fingir sê-lo; ela é, em vez disso, a instituição que interpomos entre o domínio privado do lar e o mundo com o fito de fazer com que seja possível a transição, de alguma forma, da família para o mundo (ARENDT, 1997, p. 238).

Ao falar sobre educação, Arendt destaca que a recepção da criança ao mundo se dá em dois ambientes: na família e na escola. A família corresponde diretamente ao ambiente privado da vida. A escola, apesar ser um espaço de acolhimento coletivo, não se configura como espaço que trata da vida pública, justamente pelo fato de ocupar-se com crianças. Poderíamos intuir que a escola está entre a vida privada e a vida pública. A distinção que Arendt faz entre esfera pública e privada ancora essa assertiva. A crítica da autora refere-se, em parte, justamente à confusão contemporânea entre os espaços da vida privada e da vida pública.11 Ao não conseguir estabelecer a distinção entre ambos, entre outras

10 “(...) face à criança, é como se ele [o educador] fosse um representante de todos os adultos, apontando os detalhes e dizendo à criança: Isso é o nosso mundo” (ARENDT, 1997, p. 239). 11 Hannah Arendt desenvolve os conceitos de esfera pública e esfera privada em A Condição Humana.

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consequências, a humanidade joga suas crianças ao mundo, deixando-os à mercê de situações para as quais não estão preparadas – sem ter o devido cuidado necessário que o ambiente doméstico deveria lhe oferecer. De igual forma, porém de banda oposta, o mundo é colocado em risco, uma vez que poderá estar refém de quem não tem ainda responsabilidade para conduzi-lo.

Esses posicionamentos revelam que a educação cumpre um papel de conservação, promove a separação entre política e educação e estabelece diferenciação entre mundo dos adultos e mundo das crianças. A política é concebida como espaço de ação entre iguais. Assim, como os adultos e as crianças são desiguais, não é possível estabelecer entre eles uma relação política. Aliás, como a política é direcionada somente para os adultos, cabe à educação justamente dar as bases necessárias para que, no futuro, essa criança seja um adulto que tenha condições de participar do mundo comum.

(...) o educador está aqui em relação ao jovem como representante de um mundo pelo qual deve assumir a responsabilidade(...). Essa responsabilidade não é imposta arbitrariamente aos educadores; ela está implícita no fato de que os jovens são introduzidos por adultos em um mundo em contínua mudança. Qualquer pessoa que se recuse a assumir a responsabilidade coletiva pelo mundo não deveria ter crianças, e é preciso proibi-lo de tomar parte em sua educação (ARENDT, 1997, p. 239).

Ao analisar o ocorrido em uma escola dos Estados Unidos, em que uma menina negra foi recebida, por ordem judicial vinda da Suprema Corte Federal, em uma escola para brancos, em um período em que a segregação entre brancos e negros ainda estava amparada em lei e sedimentada nos costumes e nas consciências, podemos compreender a postura de Arendt como de precaução, ela defendeu que não se deve expor as crianças – que ainda não tem maturidade para o debate de temas que devem ser resolvidos na política – a situações que não conseguem resolver. A menina negra que apareceu em uma foto – que estampou a capa de jornais americanos – amparada por um homem branco, amigo de seu pai, enquanto era perseguida por uma turba de estudantes brancos que a chacoteavam (no caso de Little Rock), foi submetida ao centro do debate acerca da segregação. Ou seja, a escola e as crianças foram usadas para uma ação política. A segregação racial, que é um problema político, deve ser debatido no cenário público, entre cidadãos que estão em igualdade de condições de

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argumentação, que têm maturidade suficiente para abordar temas que são duros e suportar suas consequências. Arendt aponta que, antes da solução se dar na escola, ela precisa estar resolvida entre os pais dessas crianças. Se os pais das crianças brancas não estão convencidos da necessidade do fim da segregação, não é razoável que os filhos – tanto os brancos quanto os negros – sejam obrigados a enfrentar pessoalmente esse tema. Transferir a solução desse problema para o ambiente escolar, no caso citado, expôs os estudantes a traumas que podem ter deixado marcas tão grandes quanto o próprio problema histórico da segregação.

Entretanto, a parte mais surpreendente de toda história foi a decisão federal de iniciar o processo de integração, dentre todos os lugares, nas escolas públicas. Certamente não havia a necessidade de muita imaginação para ver que isso sobrecarregaria as crianças, brancas e pretas, com a elaboração de um problema que os adultos por gerações se confessaram incapazes de resolver (ARENDT, 2004, p. 271).

Arendt, ao se referir ao caso de Little Rock, teceu duras críticas à educação progressista que “abolindo a autoridade dos adultos, nega implicitamente a sua responsabilidade pelo mundo em que puseram os filhos e recusa o dever de guiar as crianças por esse mundo” (ARENDT, 2004, p. 272). Identificamos com clareza a insistência arendtiana de que as gerações anteriores precisam assumir a responsabilidade pela condução das novas gerações, para protegê-las do mundo.

Conceber a educação como elemento do campo pré-político, em nenhuma forma significa não prezar pela democracia ou pelos valores republicanos. É importante perceber que, o que em uma análise rápida pode parecer paradoxal, faz muito sentido: apesar de considerar que a educação cumpre uma função “conservadora”, reconhece que essa posição seria desastrosa na política. A aposta republicana condizente é que, toda criança deve receber do mundo, e por decisão dos adultos, o melhor da cultura e do conhecimento elaborados para que, quando adultos, possam agir sobre o mundo e, possivelmente, transformá-lo.

Exatamente em benefício daquilo que é novo e revolucionário em cada criança é que a educação precisa ser conservadora; ela precisa preservar essa novidade e introduzi-la como algo novo em mundo velho, que, por mais revolucionário que possa ser em suas ações, é sempre, do ponto de vista da geração seguinte, obsoleto e rente à destruição (ARENDT, 1997, p. 243).

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Nesse contexto, é prudente também discutir o papel da autoridade na relação dos adultos e das crianças. Por ser um ambiente pré-político, a autoridade12 tem papel indispensável na esfera da vida privada. Reafirma-se a

necessidade dos adultos, sejam pais ou professores, de se responsabilizarem pela educação das crianças. Não é, de forma alguma, estranho que os adultos definam o que será ensinado nas escolas e quais devem ser os métodos e as formas de conduzir o processo de aprendizagem, por exemplo. Tendências educacionais – que apareciam com força na sociedade americana estudada por Arendt – que falam em autonomia da criança para aprender, que ensejam certa dispensabilidade da figura do professor como responsável pelo processo de ensino-aprendizagem, podem ter suas bases em concepções que são consequências do não discernimento apropriado entre a vida pública e a vida privada e, consequentemente, sobre o papel da educação para com as novas gerações. De igual ênfase, correntes políticas progressistas que atribuem à educação a tarefa de “criar consciência crítica” no intuito de preparar a transformação da sociedade ou preparar as crianças para a revolução, por exemplo, são derivados dos mesmos equívocos. Tais tendências são muito comuns e aparecem com frequência, o que revela que são reflexos de um movimento que vai além da questão escolar e que compõe o quadro de crise da Modernidade.13

José Pedro Boufleuer nos ajuda a compreender a tarefa da educação conforme Arendt, com pistas significativas. Em diversos textos e em suas aulas, reflete sobre a condição de imaturidade e menoridade do aluno no âmbito pedagógico, que necessita da educação para ancorar-se no mundo. Afinado com Arendt, Boufleuer atribui como tarefa da educação contar o mundo às novas gerações, de forma que propicie à criança estar ancorada no mundo. Para isso, a

12 A perda da autoridade é apontada por Arendt como um sintoma da crise da Modernidade. 13 Sobre a crise da Modernidade é importante referir que a Modernidade concebeu o conhecimento, desde que era fruto de rigorosa ação da razão materializada nas ciências, como objeto a ser desvendado. Nesse período de crise da Modernidade, o conhecimento perdeu seu apelo de fundamentação metafísica e assumiu como condição de existência possível a concepção de que o mundo humano é construção unicamente humana, em sua relação com o ambiente e com os outros. Conforme Habermas, nos distanciamos do mundo animal e construímos o mundo humano nas dimensões da cultura, da sociedade e da subjetividade.

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educação deve permitir que a criança perceba o mundo em sua lógica constitutiva. Do legado da tradição cultural (daquilo que a educação se ocupa em ensinar) é preciso que a criança se aproprie, fazendo-o o seu modo de ser. Dessa forma, o aluno torna-se cúmplice da construção própria.14

(...)aprender com base no já aprendido por quem “veio antes”, aliado à necessidade de fazê-lo em perspectiva própria, no sentido de tomar esse aprendizado como novo para cada aprendente, parece ser a questão central da educação. Uma questão que coloca, de partida, a responsabilidade tanto por parte dos educadores de ensinarem a tradição histórica e cultural aos educandos, bem como a responsabilidade dos educandos de fazerem desse ensinamento um modo possível de se situarem no mundo como sujeitos históricos, isto é, de fazerem dele um aprendizado (BOUFLEUER, 2010, p.116 - 117).

Cada geração precisa incorporar o legado humano. É isso que possibilita que o mundo resista ao risco iminente às novas gerações, tal como posto por Arendt. Compete à educação assumir a tarefa de bem conduzir essas novas gerações, até que estejam em condições de decidir o futuro. Em Arendt (1997, p. 247), lemos:

A educação é o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos a responsabilidade por ele e, com tal gesto, salvá-lo da ruína que seria inevitável não fosse a renovação e a vinda dos novos e dos jovens. A educação é, também, onde decidimos se amamos nossas crianças o bastante para não expulsá-las de nosso mundo e abandoná-las a seus próprios recursos, e tampouco arrancar de suas mãos a oportunidade de empreender alguma coisa nova e imprevista para nós, preparando-as em vez disso com antecedência para a tarefa de renovar um mundo comum.

14 Para compreendermos as reflexões arendtianas de Boufleuer, é imprescindível compreender a concepção de ser humano em que se afirma a consequente crítica à Modernidade. O humano é pura construção. Construímo-nos para além de nossa base animal e em tensão com ela. Não somos meros animais, tampouco somos deuses. A Modernidade, com sua aposta na autossuficiência da razão e confiança extrema na ciência, colocou o homem em condição de criador do mundo. Construindo metanarrativas, encontrou nas teorias a forma de expressão da razão para explicar como o mundo funciona. O caráter absoluto e conclusivo dessas teorias lhe conferiu uma categoria metafísica, que, uma vez tornada expressão da verdade, subjuga o próprio homem ao seu domínio. Eis que, na Modernidade, o homem, na tentativa de emancipar-se das verdades divinas, da tutela de Deus e de forças exteriores a ele próprio, acaba por construir nova forma de tutela, igualmente exterior a si e, portanto, metafísica. Essa confiança exagerada na razão e na ciência revela uma tentativa de encontrar porto seguro que dê ao homem a sensação de ter o domínio de si e do mundo. Essa saída construída para o problema da vontade de segurança contrasta com uma condição primordial do humano, tal como concebemos na contemporaneidade: a necessidade de fazer-se por conta própria, num mundo comum, em constante tensionamento, tanto com sua base animal, quanto com sua tentação de ser deus. E o lugar possível desse tensionamento é a linguagem, que implica o diálogo entre sujeitos históricos.

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Nessa direção, a responsabilidade do professor passa por um delineamento ético, que Boufleuer apresenta como ética a partir da condição humana. O primeiro princípio ético para quem se propõe a educar é gostar do mundo, apresentado-o em sua face positiva; em seguida, o professor deve apresentar “as razões” do mundo, justificando aos alunos o que se está ensinando; em terceiro, é fundamental o testemunho pessoal do conhecimento, pois o educador deve vivenciar aquilo que ensina; por fim, o professor deve apresentar o mundo como proposição, ou seja, em sua abertura fundamental para o novo. E, ao apresentar o mundo como proposição, refere-se justamente ao caráter provisório e histórico do conhecimento e do mundo humano, definindo o espaço em que o aluno, alguém que pela primeira vez está aí, terá para atuar.

Retomamos Boufleuer (2013, p. 3):

Sob o ponto de vista da ética a educação cumpre a sua tarefa quando, na responsabilidade para com as novas gerações, mostra o caminho já percorrido pelas gerações adultas, para que possa servir de referência a quem tem tudo por andar. Em transmitindo o legado histórico e cultural às novas gerações, a educação prepara para a política, para a inserção no debate acerca dos destinos da sociedade.

Ou ainda, como por Boufleuer referido em outra ocasião15, quem está

chegando ao mundo deve aprender com quem está aí há mais tempo; educamos para ganhar tempo e ser cidadão no tempo presente. Inspirados em Arendt, podemos acrescentar que devemos conceber que a busca de um mundo melhor depende da ação política dos adultos que, por meio de seu testemunho, chega aos pátios escolares como ensinamento. Isso fará com que cada criança seja bem acolhida ao mundo e, assim, se sinta tão segura que, no futuro, estará bem preparada para tomar as rédeas e enfrentar os problemas de seu tempo.

Estabelecida a diferenciação entre mundo dos adultos e mundo das crianças e a consequente função da educação para com os mais novos, nos cabe ainda pensar em qual é a função da educação quando os alunos são adultos. Essa questão fica em aberto, para ser tratada mais adiante.

15 Fonte oral, Professor Doutor José Pedro Boufleuer, em aula na Disciplina Docência no Ensino Superior, na Unijuí, no segundo semestre de 2013.

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2.2 Eichmann em Jerusalém: a ausência da capacidade de julgar

Levado ao banco dos réus, em Jerusalém, Eichmann em seu longo julgamento revelou mais do que detalhes de como se construiu o caminho que culminou com a Solução Final para o povo judeu. Interessa-nos mais analisar sua atitude e como ela revelou uma situação até então não considerada: como é possível alguém que teve participação tão ativa no funcionamento dos Campos de Concentração e na consequente morte de milhões de pessoas não ver responsabilidade sua em tal acontecimento? Ele alegava ser apenas um cumpridor de ordens, assim, como compreender que um homem aparentemente normal e sensível16 se constitui em um carrasco e não se reconhece como tal?

Após ter sido preso na Argentina, onde estava escondido há anos, Adolf Eichmann, um dos responsáveis pela operação dos Campos de Concentração para onde foram levados, pelo Nazismo, milhares de judeus, foi deportado para Jerusalém – por ser Israel reconhecido como um Estado Judeu – para ser julgado no Tribunal de Nuremberg sobre seus crimes contra o povo judeu. Hannah Arendt presenciou todo o julgamento como correspondente do jornal americano The New Yorker. De tal cobertura e de suas publicações periódicas surgiu o livro Eichmann em Jerusalém, obra magistral que, não sem causar alvoroço, estabeleceu bases para grandes reflexões acerca da questão judaica, do Totalitarismo, do nazismo, mas, especialmente, do comportamento humano em face do mal. As reflexões filosóficas das conclusões elaboradas por Arendt nessa obra se revelaram de muita valia.

Conforme a própria autora, o relatório do julgamento não agradou a maioria. Não obstante, o que foi surpreendente e causou desagrado à boa parte

16 Eichmann referiu várias vezes durante o julgamento o quanto lhe causava desconforto a crueldade nas mortes, tanto nas câmaras de gás quanto nos fuzilamentos e, sempre que pôde, evitou presenciá-las. Ao relatar como recebeu a decisão vinda do Fhürer sobre como se daria a eliminação física dos judeus, afirmou ter ficado perplexo, pois “nunca havia pensado numa coisa dessas, numa solução por meio da violência. Agora eu perdia tudo, toda a alegria no meu trabalho; (...) eu estava arrasado.” (ARENDT, 1999, p. 99) Em outra passagem, após ouvir sobre os preparativos técnicos de uma câmara de gás, revela: “Para mim também isso era monstruoso. Não sou duro o bastante para suportar uma coisa dessas sem reação [...] Hoje, se me mostrarem uma ferida aberta, acho que não sou capaz de olhar”. (ARENDT, 1999, p. 102)

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da humanidade foi a postura de Eichmann: todos queriam ver no banco dos réus um típico criminoso cruel, atroz, perverso, implacável com suas vítimas. Em lugar disso, se observou uma figura pacata, mais assemelhado a um bom pai de família e um bom funcionário público, muito preocupado, aliás, com sua ascensão na carreira militar.

(...) nada estaria mais distante de sua mente do que ‘se provar um vilão’. A não ser por sua extraordinária aplicação em obter progressos pessoais, ele não tinha nenhuma motivação. E essa aplicação em si não era de forma alguma criminosa; ele certamente nunca teria matado seu superior para ficar com o seu posto (ARENDT, 1999, p. 310).

Por detrás da aparência pacífica, que não revelou um assassino cruel, tampouco sinais de desvios ou transtornos psicológicos que pudessem lhe tornar um assassino frio e calculista, Arendt compreendeu outra característica: a incapacidade de pensar sobre o que havia feito como responsabilidade sua. Eichmann apresentou uma extrema incapacidade em julgar sobre seus atos. É a própria atividade do pensamento que se encontrava suspensa. Conforme Arendt (1999, p. 310,311),

para falarmos em termos coloquiais, ele simplesmente nunca percebeu o que estava fazendo. (...) Ele não era burro. Foi pura irreflexão – algo de maneira alguma idêntico à burrice – que o predispôs a se tornar um dos grandes criminosos desta época.

Arendt soube intuir que, o que mais interessava não era o julgamento de um criminoso individual. Importava o fato de “toda a espécie humana estar sentada atrás do acusado no banco dos réus” (ARENDT, 1999, p. 309), no esforço de entender esse inédito sentimento que acometia de certa forma a toda humanidade.

Ao cunhar a expressão “banalidade do mal”, Arendt conseguiu bem expressar uma situação inédita – a partir da perspectiva individual de Eichmann e, por extensão, de outros envolvidos – envolta na Solução Final nazista: o mal feito por pura inconsciência! Apesar de ressaltar que o termo somente foi usado por ela em uma situação circunstancial17, ele nos serve de lastro para pensarmos

17 “(...) pois quando falo em banalidade do mal, falo num nível estritamente factual, apontando um fenômeno que nos encarou de frente no julgamento” (ARENDT, 1999, p. 310).

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muitos acontecimentos que lamentamos no cotidiano. De todas as circunstâncias que podem levar ao cometimento de crimes e delitos, parece haver algumas situações em que um mínimo de reflexão deveria ser suficiente para que seu autor não as fizesse.

Cabe destacar que Arendt insistentemente refere sobre a circunstancialidade da expressão “banalidade do mal”, que se aplica dentro do contexto totalitário e de que não representa uma manifestação individual de Eichmann de cunho psicopatológico. Também, todas as vezes que ela fala da ameaça que representa para a humanidade, se refere ao risco de que situações políticas como o Totalitarismo voltem a acontecer. “É bem concebível que na economia automatizada de um futuro não muito distante os homens possam tentar exterminar todos aqueles cujo quociente de inteligência esteja abaixo de determinado nível” (ARENDT, 1999, p. 312), previne ela. Porém, para além da aplicação em situações políticas, a relação entre inconsciência e mal, provocada por suas elaborações, deve continuar a nos fazer pensar sobre o aparecimento do mal em muitas de suas formas.

2.3 Educar para o pensar/julgar

O julgamento de Eichmann levou Arendt a concluir que a incapacidade de o acusado julgar sobre seus atos abomináveis é resultado de sua incapacidade de pensar. Ao enunciar que, no Totalitarismo, estamos diante de questões que não podem ser respondidas com as categorias do passado, Arendt aponta que há uma crise no pensamento – e na educação – derivada da quebra com a tradição, que se configura em uma lacuna entre o passado e o futuro.

Talvez entre os maiores desafios da educação contemporânea esteja, frente a esse contexto extremo revelado pelo Totalitarismo, o de propiciar aos

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homens o exercimento pleno de sua capacidade de pensar18 e,

consequentemente, de julgar. Ao ensinar a ler e a escrever, a escola ensina ao estudante a possibilidade de acessar o melhor que a humanidade produziu e que está acumulado na tradição. As duas faculdades que se espera que o estudante desenvolva são, em primeiro lugar, o conhecer e, em segundo lugar, o pensar. O pensar nunca está desvinculado do conhecer. Já o contrário pode acontecer: podemos ter estudantes que dominem uma quantidade significativa de informações sobre o mundo, mas que, no entanto, não desenvolvam a capacidade de pensar sobre elas em sua relação com o mundo comum e, em última instância, sobre as consequências da aplicação dessas informações.

Quando pensamos em educação para adultos, admitimos inicialmente que tratam-se de pessoas que não tiveram acesso à educação institucional no tempo adequado (na infância e na adolescência) e, portanto, não passaram por esse estágio fundamental que cabe à educação institucionalizada cumprir: do bom acolhimento aos novos ao mundo, apresentando-o em suas diversas dimensões e possibilidades a partir do que melhor se produziu – e então merece ser ensinado – pela tradição. Destaca-se precavidamente que não ter frequentado a escola não significa não ter sido educado. Significa apenas que esse período de formação foi desempenhado por outras instituições: pela família, pela comunidade, pelas companhias de convivência. Porém, cabe ressaltar que, na república, a escola é a instituição preparada para tal e é nela que se deposita todo esforço para o bom acolhimento dos infantes. Uma pessoa que não passou pelos bancos escolares, provavelmente tem uma carência que lhe limitará o acesso ao mundo comum e ao exercício pleno da cidadania. Ademais, não passar pela escola a deixará mais distante da obra humana, possivelmente terá menos condições de compreender o desenrolar dos acontecimentos do mundo humano. Considerando que o mundo humano em nenhuma hipótese é congruente com o mundo natural – é expressamente um mundo não natural – então, estar mais distante da obra

18 Destacamos que a faculdade do pensar apresenta-se aqui como forma de propiciar ou até mesmo de exigir o exercício do pensamento que, por sua vez, se torna condição do julgar. Não se trata, portanto, de se “ensinar a pensar”, tampouco de um “pensar certo” de acordo com um pensamento modelar. No desenvolvimento dos temas “religião” e “educação”, nos capítulos subsequentes, notaremos tal diferenciação de concepções.

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