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Eichmann em Jerusalém: a ausência da capacidade de julgar

PARTE I – OS DIREITOS HUMANOS E A EDUCAÇÃO EM HANNAH ARENDT

2.2 Eichmann em Jerusalém: a ausência da capacidade de julgar

Levado ao banco dos réus, em Jerusalém, Eichmann em seu longo julgamento revelou mais do que detalhes de como se construiu o caminho que culminou com a Solução Final para o povo judeu. Interessa-nos mais analisar sua atitude e como ela revelou uma situação até então não considerada: como é possível alguém que teve participação tão ativa no funcionamento dos Campos de Concentração e na consequente morte de milhões de pessoas não ver responsabilidade sua em tal acontecimento? Ele alegava ser apenas um cumpridor de ordens, assim, como compreender que um homem aparentemente normal e sensível16 se constitui em um carrasco e não se reconhece como tal?

Após ter sido preso na Argentina, onde estava escondido há anos, Adolf Eichmann, um dos responsáveis pela operação dos Campos de Concentração para onde foram levados, pelo Nazismo, milhares de judeus, foi deportado para Jerusalém – por ser Israel reconhecido como um Estado Judeu – para ser julgado no Tribunal de Nuremberg sobre seus crimes contra o povo judeu. Hannah Arendt presenciou todo o julgamento como correspondente do jornal americano The New Yorker. De tal cobertura e de suas publicações periódicas surgiu o livro Eichmann em Jerusalém, obra magistral que, não sem causar alvoroço, estabeleceu bases para grandes reflexões acerca da questão judaica, do Totalitarismo, do nazismo, mas, especialmente, do comportamento humano em face do mal. As reflexões filosóficas das conclusões elaboradas por Arendt nessa obra se revelaram de muita valia.

Conforme a própria autora, o relatório do julgamento não agradou a maioria. Não obstante, o que foi surpreendente e causou desagrado à boa parte

16 Eichmann referiu várias vezes durante o julgamento o quanto lhe causava desconforto a crueldade nas mortes, tanto nas câmaras de gás quanto nos fuzilamentos e, sempre que pôde, evitou presenciá-las. Ao relatar como recebeu a decisão vinda do Fhürer sobre como se daria a eliminação física dos judeus, afirmou ter ficado perplexo, pois “nunca havia pensado numa coisa dessas, numa solução por meio da violência. Agora eu perdia tudo, toda a alegria no meu trabalho; (...) eu estava arrasado.” (ARENDT, 1999, p. 99) Em outra passagem, após ouvir sobre os preparativos técnicos de uma câmara de gás, revela: “Para mim também isso era monstruoso. Não sou duro o bastante para suportar uma coisa dessas sem reação [...] Hoje, se me mostrarem uma ferida aberta, acho que não sou capaz de olhar”. (ARENDT, 1999, p. 102)

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da humanidade foi a postura de Eichmann: todos queriam ver no banco dos réus um típico criminoso cruel, atroz, perverso, implacável com suas vítimas. Em lugar disso, se observou uma figura pacata, mais assemelhado a um bom pai de família e um bom funcionário público, muito preocupado, aliás, com sua ascensão na carreira militar.

(...) nada estaria mais distante de sua mente do que ‘se provar um vilão’. A não ser por sua extraordinária aplicação em obter progressos pessoais, ele não tinha nenhuma motivação. E essa aplicação em si não era de forma alguma criminosa; ele certamente nunca teria matado seu superior para ficar com o seu posto (ARENDT, 1999, p. 310).

Por detrás da aparência pacífica, que não revelou um assassino cruel, tampouco sinais de desvios ou transtornos psicológicos que pudessem lhe tornar um assassino frio e calculista, Arendt compreendeu outra característica: a incapacidade de pensar sobre o que havia feito como responsabilidade sua. Eichmann apresentou uma extrema incapacidade em julgar sobre seus atos. É a própria atividade do pensamento que se encontrava suspensa. Conforme Arendt (1999, p. 310,311),

para falarmos em termos coloquiais, ele simplesmente nunca percebeu o que estava fazendo. (...) Ele não era burro. Foi pura irreflexão – algo de maneira alguma idêntico à burrice – que o predispôs a se tornar um dos grandes criminosos desta época.

Arendt soube intuir que, o que mais interessava não era o julgamento de um criminoso individual. Importava o fato de “toda a espécie humana estar sentada atrás do acusado no banco dos réus” (ARENDT, 1999, p. 309), no esforço de entender esse inédito sentimento que acometia de certa forma a toda humanidade.

Ao cunhar a expressão “banalidade do mal”, Arendt conseguiu bem expressar uma situação inédita – a partir da perspectiva individual de Eichmann e, por extensão, de outros envolvidos – envolta na Solução Final nazista: o mal feito por pura inconsciência! Apesar de ressaltar que o termo somente foi usado por ela em uma situação circunstancial17, ele nos serve de lastro para pensarmos

17 “(...) pois quando falo em banalidade do mal, falo num nível estritamente factual, apontando um fenômeno que nos encarou de frente no julgamento” (ARENDT, 1999, p. 310).

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muitos acontecimentos que lamentamos no cotidiano. De todas as circunstâncias que podem levar ao cometimento de crimes e delitos, parece haver algumas situações em que um mínimo de reflexão deveria ser suficiente para que seu autor não as fizesse.

Cabe destacar que Arendt insistentemente refere sobre a circunstancialidade da expressão “banalidade do mal”, que se aplica dentro do contexto totalitário e de que não representa uma manifestação individual de Eichmann de cunho psicopatológico. Também, todas as vezes que ela fala da ameaça que representa para a humanidade, se refere ao risco de que situações políticas como o Totalitarismo voltem a acontecer. “É bem concebível que na economia automatizada de um futuro não muito distante os homens possam tentar exterminar todos aqueles cujo quociente de inteligência esteja abaixo de determinado nível” (ARENDT, 1999, p. 312), previne ela. Porém, para além da aplicação em situações políticas, a relação entre inconsciência e mal, provocada por suas elaborações, deve continuar a nos fazer pensar sobre o aparecimento do mal em muitas de suas formas.