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PARTE II – A EDUCAÇÃO NOS PRESÍDIOS: O EX-DETENTO E O ACESSO

2.1 O perfil do apenado

Para compreender a dinâmica dos problemas na organização prisional e enveredar na busca por possíveis soluções é sugestivo entender a origem do presidiário, ou seja, compreender que aquele que hoje cumpre pena, em algum momento não era criminoso ou transgressor da lei e vivia em algum lugar, sob alguma condição de vida. Fazemos isso, mesmo que brevemente, não com o intuito de estabelecer um padrão social que explique a criminalidade, mas para investigar se há alguns traços comuns que suscitem alguma conclusão acerca da relação de alguma situação social com a origem dos crimes e delitos que levam pessoas a serem presas.

Existe um número significativo de estudos e relatórios dedicados a investigar o perfil dos presidiários, desde relatórios de estudos acadêmicos, entes de governo, do Poder Judiciário, do Poder Legislativo, da imprensa, até de entidades e organizações de direitos humanos. Escolhemos apenas algumas fontes que consideramos confiáveis – apesar de possíveis ressalvas que se

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façam sobre a fidelidade de tais informações com a realidade – com análise de relatórios que versam sobre o tema.

Conforme dados do Ministério da Justiça21, em 2012, a população

carcerária do Brasil era de 548 mil pessoas, o que corresponde a um índice de 287,31 presos para cada 100 mil habitantes. Um número excessivamente alto, se comparado a outras nações do mundo. Iniciamos por destacar dados relativos à escolaridade dessa população carcerária.

De um universo de 513.713 presos contabilizados no levantamento sobre escolarização, temos os seguintes índices percentuais: a) analfabetos: 5,41% do total; b) alfabetizados: 12,47%; c) com Ensino Fundamental incompleto: 45,05%; d) com Ensino Fundamental completo: 12,1%; e) com Ensino Médio incompleto: 11,05%; f) com Ensino Médio completo: 7,54%; g) com Ensino Superior incompleto: 0,79%; h) com Ensino Superior completo: 0,39%; i) com estudos acima do Ensino Superior: 0,02%. Esses indicadores revelam que a maior parte dos presos brasileiros tem um histórico de insucesso na vida escolar.

Conforme o Censo Demográfico 201022, dos brasileiros com 15 anos ou

mais de idade, 44,9% são analfabetos, semianalfabetos ou não concluíram o Ensino Fundamental. Cruzando com os índices da população carcerária, nessa condição, estão 62,93%. Na outra ponta, ainda conforme o Censo Demográfico 2010, 9,3% dos brasileiros têm Ensino Superior completo, enquanto que, entre os presidiários, os que terminaram o Ensino Superior são apenas 0,39%.

Se compararmos os índices de analfabetismo e baixa escolaridade entre a população brasileira e a população carcerária, vemos que há uma disparidade entre ambos. Ou seja, há uma proporção maior de analfabetos, semianalfabetos ou com baixa escolaridade entre os presos do que o índice de analfabetismo ou baixa escolaridade entre os brasileiros. Então, ser analfabeto ou ter baixa escolaridade é uma condição que aumenta a expectativa de uma pessoa ser presa.

21 Percentuais calculados a partir de dados extraídos dos Relatórios Estatísticos/ Analíticos do Sistema Prisional/2012.

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Outro índice que suscita a reflexão é referente à idade dos presos. No Brasil, há uma concentração alarmante de jovens nas prisões. Com base no mesmo levantamento do ano de 2012 feito pelo Ministério da Justiça23, temos os

seguintes índices relativos à idade dos presos: 27,92% tem idade entre18 e 24 anos; 23,94% tem entre 25 e 29 anos; já com idade entre 30 e 34, são 18,01%; entre 35 e 45 anos são 16,45%; entre 46 e 60 anos são 6,09%; e com mais de 60 anos são 0,98%. Se fizermos um recorte dos presos com até 34 anos de idade, veremos que eles somam quase 70%. Em números absolutos, dos 513.713 presos no Brasil em 2012, quase 360 mil tem menos de 35 anos de idade.

Esse quadro de população carcerária jovem pode indicar que, entre tantos fatores que deveriam ser considerados, a educação, de alguma forma, está falhando. É fato que a maioria desses jovens faz parte dos índices de baixa escolaridade ou analfabetismo. A tenra idade indica que eles, em um momento recente da vida, deveriam ter estado na sala de aula. Se não estudaram na idade adequada, podemos concluir que a república falhou no seu propósito de garantir a educação a eles, enquanto eram crianças e adolescentes. E isso ocorreu agora, nas últimas duas décadas, quando na legislação, planos e programas, o Brasil tem avançado muito no que tange à universalização do acesso aos Ensinos Fundamental e Médio. Entretanto, mesmo não cabendo nos alargar nessa reflexão pontual, cabe ressalvar que, mesmo entre os que frequentam a escola, há muitos que rumam para a criminalidade. Mas estes são minoria, se relacionados à tendência de pouca escolaridade entre os presos.

Os indicadores até aqui apresentados nos permitem concluir que há uma relação entre determinados aspectos da condição social e a possibilidade maior de vir a ser presidiário. Isso significa que a expectativa de combater a criminalidade passa também por intervir na condição social do preso, mas, sobretudo, antes de o indivíduo ser preso. Ou seja, combater as desigualdades sociais no país, superar problemas históricos ligados à pobreza, certamente influenciaria nessa razão proporcional entre situação social e população carcerária.

23 Observe-se que a soma dos índices não alcança os 100% pela imprecisão no controle das informações sobre os presos no Brasil, admitido no próprio levantamento. Considere-se, portanto, 6,52% como idade não informada.

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De todos os elementos elencados, entre tantos outros que compõem estudos respeitáveis24 sobre o perfil dos presidiários, destacamos os índices

relativos à baixa escolaridade e ao analfabetismo. É uma realidade impactante, que merece a preocupação coletiva e que evidencia um problema de primeira grandeza na república. A educação republicana moderna, entre tantas abordagens inéditas, cria a expectativa de sua universalidade, ou seja, de que alcance a todos, não importando a classe social a que cada criança pertença. Todavia, evidencia-se que ainda há uma disparidade de classe na sociedade brasileira no que tange à educação: o analfabetismo e a baixa escolaridade concentram-se nas camadas mais pobres da população.

O relatório de 2010 do IBGE (2010, p. 47) sobre a condição de vida do povo brasileiro mostra essa relação entre situação social e tempo de escolarização:

A taxa de escolarização líquida, analisada pelos quintos de rendimento mensal familiar per capita, revela fortes desigualdades entre os mais pobres e os mais ricos: no primeiro quinto (os 20% mais pobres), somente 32,0% dos adolescentes de 15 a17 anos de idade estavam no ensino médio, enquanto no último quinto (20% mais ricos), essa oportunidade atingia quase 78% deste grupo, revelando que a renda familiar exerce grande influência na adequação idade/série frequentada.

Ao tentar compreender a condição de quem está preso, há de se levar em consideração, inicialmente, a origem das condições de vida e existência que precederam sua entrada na cadeia. Não é possível desresponsabilizar a sociedade e atribuir ao preso a absoluta responsabilidade pelos atos que o levaram à prisão. Seria muito cômodo e tentador apelar para o argumento simplista de que “cada um é livre para escolher e responsável por suas ações e consequências”, no entanto, sabemos que muitos atos e comportamentos estão condicionados pelo contexto social e cultural que os envolvem.

É necessário olhar para o problema da transgressão à lei e da reincidência na criminalidade fitando duas perspectivas: o preso, gozando de boa saúde mental, é responsável por seus atos; mas a sociedade é corresponsável pela violência praticada, principalmente quando se tratam de casos em que o perfil do

24 Inúmeros comentadores sublinham a relação de classe social e origem étnica (cor da pele) e a expectativa em ser preso, e apontam que a população carcerária é formada por maioria pobre e de negros e pardos.

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preso acomoda-se dentro de características sociais comuns, como a pobreza e a baixa escolaridade (ou analfabetismo). Não é possível desconsiderar a condição social como fator condicionante quando se conclui que boa parte das pessoas que estão presas são analfabetas ou passaram poucos anos de suas vidas dentro de uma escola. Tampouco seja possível ausentar de responsabilidade a sociedade, que, por sua organização, expôs tantos indivíduos a condições de pobreza e miséria, que lhes negaram o mínimo que a república deveria ter lhes garantido: a educação!

A identidade do sujeito “preso” é construída culturalmente. Cada sociedade elabora conceitos acerca da figura do presidiário que em muito ajudarão a definir a própria visão que os presos têm de si próprios. Se a sociedade se conforma em considerar os presos como bandidos e desimportantes, por exemplo, é provável que o próprio preso assuma essa identidade e passe a se conformar dentro desse conceito. Dessa maneira, certamente o resultado da punição de privação de liberdade será desastroso, tanto para o preso quanto para a sociedade. Assim, as expectativas que a sociedade atribui ao preso precisam ser revistas.

Ao estabelecer uma identidade negativa do sujeito preso, forçosamente se generaliza um comportamento e se submete o enquadramento a ele de todos os presos – salvas raras exceções –, o que tende a planificar também o tratamento dado aos presidiários. Isso, inclusive, acarreta por negar em cada um a individualidade – condição necessária para que cada ser humano se afirme individualmente no mundo, conforme Arendt.

Após a prisão, o foco que antes deveria ser em políticas preventivas, de superação dos problemas ligados à pobreza, se desloca para medidas de ação dentro dos presídios, para atender quem já transgrediu a lei. Esses indivíduos presos, além da condição social peculiar, agora estão submetidos a outro problema: a precariedade do sistema prisional, que favorece ao maior envolvimento e dependência da criminalidade. O problema, então, está agravado e, consequentemente, mais difícil de ser combatido. A tarefa da educação, nesse contexto, é ainda mais desafiadora. Pois, se os presos, em sua maioria jovens e de pouca escolaridade, tiveram o acesso à escola negligenciado pela primeira vez

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em sua infância e adolescência, não é razoável que tenham novamente esse direito negado agora na juventude ou na idade adulta.

“Educai as crianças e não será necessário punir os adultos”25, sentença

atribuída a Pitágoras, revela a consciência, talvez já da antiguidade, de que a educação, ao cumprir sua incumbência de bem acolher e instruir os novos ao mundo diminuiria a expectativa dos adultos de estarem em situações que o levassem à cadeia. No entanto, tratando-se de adultos que estão presos, muda a incumbência da educação. Sobre isso, refletiremos mais adiante.