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A tese desenvolvida até aqui pretende mostrar como a fantasia em seus diversos pontos de intersecção com os conceitos centrais da fenomenologia pode ser pensada como a consciência privilegiada na construção, execução e auto-fundação da consciência pura, esta pensada como campo transcendental instaurador e doador de todo sentido de qualquer mundo, seja o existente, seja os mundos inexistentes e possíveis. A descrição das essências ou do sentido (Sinn) das relações entre noese e

noema é capturada de forma evidente através da fantasia. A

“intuição de essência” (Wesensschau) é a intuição do próprio ser

do indivíduo409, de seu sentido, unidade ideal de significação como diz Husserl nas Investigações Lógicas. Esta intuição é realizada pela fantasia.

A famosa frase do § 70 de Ideias I é a prova da necessidade de se elevar o valor da fantasia na fenomenologia de Husserl: “Assim, caso se goste de discursos paradoxais e se entenda a plurivocidadedo sentido, pode-se efetivamente dizer, com estrita verdade, que a ‘ficção’ constitui o elemento vital da fenomenologia, bem como de todas as ciências eidéticas, que a ficção é a fonte da qual o conhecimento das ‘verdades eternas’ se alimenta”410. Tal

afirmativa não pretende desqualificar o modo de consciência perceptiva, mas antes garantir a validade do estatuto idealista ao processo metódico de construção da fenomenologia.

A percepção sempre será a base originária da consciência pura, mas isto não significa sua superioridade no todo da construção fenomenológica. Ao contrário, a citação acima mostra a superioridade da fantasia pensada no aspecto mais importante da fenomenologia, a saber, a idealidade da descrição das essências (do sentido) dos atos e correlatos puros. Nas Ideias I, mas exatamente no § 4, tem-se mais um importante pensamento sobre a fantasia no processo de visão dos eidos. Diz: “O eidos, a essência pura, pode exemplificar-se intuitivamente em dados de

409 HUSSERL. Ideias I, §3. 410 HUSSERL. Ideias I, § 70, p,

experiência, tais como percepção, recordação, mas igualmente também em meros dados de fantasia. Por conseguinte, para apreender intuitivamente uma essência ela mesma e de modo

originário, podemos partir das intuições empíricas

correspondentes, mas igualmente também de intuições não- empíricas, que não apreendem um existente ou, melhor ainda, de intuição meramente fantásticas”411.

Aqui, a apreensão da essência (eidos), da unidade ideal de sentido, ainda é dita captável pela percepção e também pela fantasia. Tem-se a definição de fantasia como intuição, uma das formas de interpretar a função dessa consciência é pensa-la como intuição, pois intuir na fenomenologia significa ‘ver diretamente e sem obstáculos, ver clarificado, explicado como método de clarificação, através do qual se torna evidente uma vivencia pura. A fantasia pode intuir de forma clara: “No entanto, como acabamos de mostrar, a presentificação, por exemplo, a imaginação pode ser tão perfeitamente clara que possibilita apreensões e evidências eidéticas perfeitas”412. A fantasia tem por ponto forte da tese da novidade, a concepção de uma consciência doadora de verdades eidéticas, deixando de lado o paradigma da falsidade da cópia do real. Importa recordar aqui uma questão terminológica, a fantasia sempre é pensada como presentificação, disso resulta a preferência no termo presentificação de fantasia para um estudo mais condizente com as teses defendidas por Husserl.

O § 70 apresenta uma importante distinção da relação entre o primado da percepção com seu privilégio originário e o primado da fantasia como privilégio metodológico. Disto constata-se o nascimento de um duplo primado na fenomenologia, um primado ontológico da percepção e um primado metodológico da fantasia, ambos tem seus privilégios frente a determinados problemas. O equilíbrio dessa balança tende a se alterar em favor da fantasia quando o assunto é o fazer fenomenológico, a construção e exploração dos níveis de constituição e autoconstituição da consciência pura. O progredir na pesquisa fenomenológica depende muito mais do primado da fantasia, como forma de analise privilegiada. A constatação de um duplo primado como forma de sublinhar igualmente as intencionalidades da percepção

411 HUSSERL Ideias I, § 4. 412 HUSSERL. Ideias I, § 70.

e da fantasia, e do valor de excelência da fantasia diante da ciência fenomenológica é um tema desprezado pela maioria dos comentadores.

O privilégio da fantasia pensado metodologicamente é defendido no § 70; em oposição, tem-se o perceber com sua originalidade inferiorizada nesse ponto da discussão. Cita-se;

“Ora, se as vantagens da originalidade fossem

metodologicamente muito importantes, teríamos de fazer agora considerações sobre onde, com e em que amplitude ela é realizável...” importa apenas apontar que a vantagem da originalidade da percepção tem sua vantagem reduzida. A fantasia é elevada nesse ponto: “Na fenomenologia, assim como em todas as ciências eidéticas existem razões em virtude das quais as presentificações e, para ser mais exato, as livres fantasias conseguem uma posição privilegiada em relação às percepções, e isso mesmo na própria fenomenologia das percepções, com exceção, naturalmente, da fenomenologia dos dados de sensação”413. O motivo desse privilégio da fantasia na compreensão da esfera eidética está no tipo de aparecimento descrito na fantasia. A fantasia trabalha no plano da inefetividade, ela já é em si mesma neutralidade e exclui de seu horizonte toda experiência dos fatos, em favor de fenômenos ficcionais.

Está na irrealidade o ponto de conexão com os eidos. Enfatiza-se em outra passagem do § 70: “Não obstante, a liberdade da investigação de essência também requer necessariamente aqui que se opere na fantasia”414. Estas citações do § 70 reforçam a ideia de uma disputa entre percepção e fantasia. Esta disputa entre um âmbito de doação na presença e outro na não-presença, torna o problema um paradoxo, como diz o próprio Husserl, entre um primado e outro na formação da fenomenologia. A disputa entre percepção e fantasia através da

Ideia de um privilégio ontológico em oposição ao privilégio

metodológico, a proporção de cada um na fenomenologia de Husserl é discutível. A fantasia possui sem dúvida exclusividade no processo de construção das pesquisas. Esta construção se caracteriza pela própria descoberta das essências e de um método capaz de atingi-las. O paradoxo entre percepção e

413 HUSSERL. Ideias I, § 70. 414 HUSSERL. Ideias I, § 70.

fantasia não é apenas uma disputa entre intencionalidades e seus respectivos horizontes, mas é um problema alargado a todos os principais temas, incluindo tanto a filosofia estática da constituição das vivencias, quanto a pré-constituição ou a autoconstituição da consciência pura. A oposição entre percepção e fantasia imerge também na temporalidade através da relação presentação e presentificação, ou melhor, presença/não presença.

Cabe apontar ainda alguns comentadores e suas explanações acerca da ficção. Entre os comentadores que ressaltam o privilégio da fantasia e da ficção está Ronald Kuspit com seu artigo Ficção e fenomenologia. Neste texto datado de 1968, Kuspit já começa falando do descaso ao tema da fantasia: “Pouco se tem dito sobre o especial significado de fantasia na filosofia de Husserl”415. Ainda acrescenta: “os meios que Husserl usa para fazer a distinção mais central de sua ciência fenomenológica foram ignoradas.”416. Kuspit resgata importantes definições de essência e de sua relação com os fatos, como aparecem na obra Ideias I. Diz sobre essências: “As essências seriam o símbolo do sentido dos fatos, ou pelo menos as figuras de linguagem expressiva da auto-evidência dos fatos na experiência. Apreender uma essência não vai além da importância atribuída aos fatos. Uma essência é um fato hipostasiado, o supremo da experiência”417. E continua definindo as essências e a ficção: “As livres fantasias não são meramente elucidações dos fatos experienciados. Ficção não são nem impressões, nem produtos da percepção, nem reduzíveis aos datas sensoriais”418. Apesar da leitura favorável ao tema da fantasia Kuspit não deixa de enfatizar as contradições existentes na teoria da fantasia de Husserl.

Nos manuscritos, as vertentes de leitura para pensar a relação entre “ficção” e “eidos” não está ali bem estabelecida, pois falta a ideia de fundar a fenomenologia no idealismo transcendental. Este idealismo presente nas Ideias é o motor para entender a relação entre “fantasia” (noese), “ficção” (noema) e “essências” (unidade de sentido da noese-noema). Fala-se de leis de essências, e ficção como correlato de intencionalidade da

415 KUSPIT. R. Fiction and phenomenology, p, 16. 416 KUSPIT.R. IDEM.

417 KUSPIT. Fiction and phenomenology. P, 17. 418 KUSPIT. IDEM.

figuração, e mesmo da memória, mas a definição de essência escapa aos manuscritos ali apresentados. No apêndice Nº 15, aparece a ideia de ficção como fingimento dada pelo emprego de um recorda na fantasia. Diz assim: “Na fantasia se procede por ficção (fingierend). O fantasma mantém um conflito com a memória, por exemplo, o centauro fingido que eu fantasmo ter reencontrado ali em uma rua conhecida está ali ou não está ali, cobre uma parte do fundo do memorar. É diferente do conflito do memorar entre duas apreensões de memorar: o analogon do conflito na esfera perceptiva”419. Sobre a fantasia completa: “A fantasia procede por ficção (fingierende) não é em si uma intenção (posicionalidade), ela não tem nenhum modo de crença, porque ela não é uma intenção, e ela não é em si mesmo um modo de crença, este seria um modo do memorar”420. Quando em relação à outras presentificações como é o caso da memória, esta gera conflito com a fantasia, pois atua na percepção.

4.5 NEUTRALIZAÇÃO DO EU FANTÁSTICO: REFLEXÃO

FANTÁSTICA

A presentificação de fantasia é em si mesma uma neutralização. Ela atua primeiramente neutralizando o conteúdo de seus noemas através de uma neutralização restrita, mas depois ela se alarga e atua neutralizando as vivências da percepção e da recordação através da neutralização universal. A neutralização relacional entre noese e noema, entre fantasia e fantasiado é apenas o nível inicial das neutralizações no campo da consciência pura. A neutralização também opera em relação a este ego fantástico. O primeiro passo da neutralização é abrir o acesso ao âmbito da consciência pura constituinte, este acesso é percorrido através da neutralização fantástica, a qual tem a missão metódica de descrever as conexões de essência formadoras das relações intencionais. O último nível da modificação de neutralidade é a neutralização do eu fantástico efetuada por uma reflexão de segundo grau, uma reflexão do próprio eu no seu papel de neutralizador fantástico. A reflexão do eu fantástico é como um

419 HUSSERL. Phantasie. Nº 15, [408]. 420 HUSSERL. Phantasie. Nº 15, [408].

olhar o olho olhando de modo absoluto e totalizante, este olhar implica um olhar as conexões de essências.

Descrever este nível de instauração de sentido através da reflexão do ego fantástico é difícil, pois se trata de um tema pouco desenvolvido da obra husserliana. Acredita-se ser este nível de neutralização do eu fantástico o último nível ao alcance da auto- reflexão do Eu puro, ou a chave para alcançar o problema do presente vivo, âmbito de doação pré-temporal da consciência. O tema é tratado como uma “dupla epoché” ou “dupla neutralidade”. Diz Husserl: “A neutralidade pode ser motivada de diferentes modos, ela pode entrar em jogo como ideia súbita – consciência de objeto imagem, num figuração por imagem cópia, livre jogo de reproduções que se impõem e perdem em posicionalidade. Falar

de fantasia só convém nesse último caso, no discurso corrente a palavra designa uma ação do espírito com o caráter do desinteressado, que não se reporta a nenhuma esfera temática.

Toda tomada de atitude, toda crença, toda posição da direção em questão é retirada afim de reunir novas posições e melhores, “a fantasia é o domínio da ausência de fim, do jogo”. É preciso lhe atribuir os acontecimentos não temáticos, pré-temáticos ou o inverso do jogo.”421.

Saraiva também fala desse problema: “Encontramo-nos aqui perante um fenômeno importante. Existe uma reflexão, uma espantosa reflexão, segundo Husserl, que se exerce na presentificação e que permite à atenção atravessar noemas sobrepostos, deslocar-se de grau em grau, fixar-se no objeto do último grau ou par num grau qualquer”422. Esta reflexão do eu fantástico que permite ao ego atravessar todo plano da consciência de modo igual é dado através do flutuamento da imagem diante da consciência. Este poder de deslocar-se indiscriminadamente é a chave da liberdade na fantasia, liberdade essa que se funda também na compreensão do ego puro em sua totalidade.

A Ideia da neutralização do eu fantástico é mostrar um voltar-se sobre si no modo fantástico. Esta ideia surge como modo de pensar o terceiro eu, o ego puro desinteressado. Este então seria como um eu fantástico diante de um fantasiado, uma

421 HUSSERL Phantasie. Nº 20.

imagem. Este ego como apenas contemplador do campo transcendental, e visionário dos egos intencionais em suas relações com seus horizontes de sentido próprios. Neste sentido parece coerente falar dessa neutralização. O tema é apenas indicado, mas acredita-se que o caminho metodológico desenvolvido pelo idealismo tendo como foco a fantasia, parece adentrar ao campo da filosofia genética. Diz Husserl: “Me transporto em fantasia ao lado da imagem. Eu coloco fora de circuito minha atualidade. Eu me torno mesmo então o eu modificado, aquele sem posição. Minha participação é em consequência a participação de um espectador em imagem, e aquele de um espectador em simpatia diante de uma imagem”423. O eu como observador desinteressado tem o mesmo princípio essencial da fantasia, ele se rege pela possibilidade e pela liberdade de apreensão desta consciência neutralizada ao modo do como-se.

Nas Meditações cartesianas, encontra-se uma importante explicação acerca da relação entre auto-reflexão e método, mostra-se ainda como essa reflexão permite ver o campo das essências puras: “Só há, porém, uma auto-refexão radical, e ela é a fenomenologia. Auto-reflexão universal e auto-rreflexão plenamente radical são, contudo, inseparáveis e, ao mesmo tempo elas são também inseparáveis, uma e outra, do método fenomenológico autêntico da auto-reflexão sob a forma de redução transcendental, da auto-explicitação intencional do ego transcendental, que é aberto através dela e da descrição sistemática na forma lógica de uma eidética intuitiva. A auto- explicitação universal e eidética significa, porém, um domínio sobre todas as possibilidades constitutivas concebíveis, inatas a um ego e a uma intersubjetividade transcendental”424. A auto- reflexão universal do ego assemelha-se ao esquema da neutralização do eu fantástico, acredita-se serem expressões para tratar do mesmo campo de problemas, o âmbito prévio a toda egoidade. Saraiva cita das Meditações cartesianas uma passagem associando reflexão e atitude metodológica da fenomenologia: “Se dizemos que o eu que percepciona o mundo e naturalmente nele vive está interessado no mundo, teremos

423 HUSSERL. Phantasie. Nº 17. P, 148.

então na atitude fenomenologicamente modificada, um desdobramento do eu, acima do eu ingenuamente interessado do mundo ir-se-á estabelecer, como espectador desinteressado, o eu fenomenológico. Este desdobramento do eu é por sua vez acessível a uma nova reflexão, reflexão que, enquanto transcendental, exigirá mais uma vez ainda a atitude ‘desinteressada do espectador, apenas preocupado em ver e descrever de maneira adequada.”425